A tragédia de um Judiciário policial

“O que se observa é que temos, cada vez mais, um judiciário ativo, defensor do “cidadão de bem”, representante da voz do povo e combatente ao crime. Essas virtudes caem bem para a polícia, mas não para o judiciário”.

Por Actos Roosevelt, no Justificando

As cenas dos últimos capítulos da história constitucional brasileiras revelaram, sem dúvidas, densas trevas sobre nossas cabeças, sobretudo provocando desalento para os abnegados defensores dos princípios fundamentais aplicáveis ao processo penal. No julgamento do HC 126292, o STF relativizou o princípio da presunção de inocência ao autorizar a execução de pena antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Apesar de não ter efeito vinculante, a decisão tem razão para ser preocupante.

O instituto mitigado pelo STF merece nossa reflexão. O texto constitucional é claro:

“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; ” (CF. Art. 5º, inciso LVII).

O texto em destaque positiva o princípio da presunção de inocência. Tal postulado, obviamente, é vinculante e não pode se subordinar à vontade do intérprete, ou seja: os órgãos envolvidos no processo penal não gozam de autonomia para decidir se o aplicam ou não. Veja que a exigência é simples: não tratar o acusado como culpado até que o processo culmine em uma sentença condenatória transitada em julgado. Tratar como inocente não é o mesmo que acreditar na inocência. Dessa forma, ainda que haja elementos inabaláveis que apontam a culpa do réu, deve ele ser tratado, no processo, como se inocente fosse. Tal exigência não se aplica à sociedade em geral. É uma regra processual que se impõe ao Estado e se aplica no processo penal. A única ressalva legal e aceitável é para os casos em que o réu compromete, objetivamente, à ordem pública ou econômica, ameaça testemunhas ou compromete o andamento das investigações e do processo (Nos termos do Art. 312 do CPP).

Creio que até um estudante do primeiro período do curso de Direito não teria dificuldade em interpretar esse princípio fundamental e mantê-lo salvaguardado como cláusula pétrea. Porém, por incrível que pareça, foi ignorado por cidadãos de “notável saber jurídico e de caráter ilibado”.

Sua excelência, o meritíssimo juiz Sérgio Moro, foi entrevistado pelo Estadão [1] e demonstrou apoio ao julgado do Supremo. Na oportunidade, foi tratado como o “juiz da operação lava jato” (talvez algum leitor leigo até acredite que exista operação policial promovida pela Justiça Federal). Disse o juiz:

O argumento de que o novo precedente viola a presunção de inocência não resiste à rápida análise do Direito Comparado e da história. Nos Estados Unidos e na França, por exemplo, dois dos modernos berços históricos da presunção de inocência, a prisão segue como regra a condenação na primeira instância. Dizer que a decisão do Supremo viola a presunção de inocência equivale, portanto, a afirmar que não existe esta presunção nos Estados Unidos ou na França, o que é argumento inconsistente. Então nas críticas à decisão, há, com todo o respeito aos autores, mais excesso de retórica do que conteúdo argumentativo consistente.

Com igual respeito, me atrevo a discordar, pois o STF não existe para defender a constituição dos Estados Unidos, nem para interpretar a literalidade da constituição francesa. O Supremo Tribunal Federal existe para ser guardião da Constituição Federal brasileira, constituição essa que não admite ser o réu considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória e que tem tal princípio no rol das cláusulas pétreas, não passíveis de alteração sequer por Emenda Constitucional, quem dirá por decisão judicial. O tema não deve ser interpretado por critérios de Direito comparado ou pela história, isso por que se assenta em norma constitucional sob a qual não paira ambiguidade ou contradição.

O que se observa é que temos, cada vez mais, um judiciário ativo, defensor do “cidadão de bem”, representante da voz do povo e combatente ao crime. Essas virtudes caem bem para a polícia, mas não para o judiciário.

Os casos criminais provocam a paixão e a fúria popular. Em meio aos reclames por justiça, é comum que inocentes sejam atingidos e que culpados sejam acusados além daquilo que realmente cometeram. A polícia faz bem se investigar e prender. O Ministério Público atua institucionalmente correto ao acusar e pedir aplicação da lei penal. E o juiz? A este cabe, nada mais nada menos, do que dizer o Direito. O Estado-juiz não pode ceder à tentação de se tornar herói, de se tornar “operacional”, “faca na caveira”, veneno para os inimigos do povo. Não é só porque isso não é ético. É também por que é perigoso e injusto. O juiz comprometido com a promoção de uma segurança pública irá, lamentavelmente, ser incapaz de julgar sempre com justiça. Seu dever é condenar, mas não porque o povo quer, e sim porque a autoria restou comprovada e a lei exige a pena. Deve absolver, mesmo que o povo não aplauda, quando há exigência legal para tanto. Deve decidir, na dúvida, em favor do réu.

Ainda me referindo à entrevista do mm. Juiz Dr. Moro: É preocupante que seja tão natural que um magistrado seja chamado pela mídia de “o juiz da operação lava jato” (dando impressão de se tratar de uma operação policial da Justiça Federal), ou de juiz que desmontou o esquema de propinas. Todo nós queremos ver o Brasil menos violento, menos corrupto e com baixos índices criminais, mas um “judiciário policial” só legitima o estado de exceção, oculta e relativiza abusos, e se torna deslegitimado para se posicionar contra o extermínio cometido em nome do combate ao crime. Isso porque é dever do magistrado agir longe da emoção para frear a sanha punitiva que é irracional e desgovernada. Queremos que o Estado-juiz seja fiel à Constituição. Isso não é pedir muito. É dever, é objetivo e inquestionável.

Nas palavras de sua excelência “juiz da lava jato”:

“O problema da sistemática anterior, que exigia o trânsito em julgado, era incentivar a interposição de recursos infinitos mesmos por quem não tem razão”.

Pergunta-se: Por causa dos que recorrem sem razão é justo fazer sofrer os que recorrem com razão? Também já foi devorado o princípio do in dubio pro reo?

Me atrevo a pesar também as palavras do excelentíssimo desembargador do TJ-SP, Dr. Renato Salles de Abreu Filho, que também opina favoravelmente à decisão do Supremo. Aduz:

“Hoje a sociedade não compreende o nosso sistema recursal e o excessivo número de processos no Judiciário brasileiro amarga uma sensação de impunidade”. [2]

Ocorre, excelência, que malgrado a sociedade não compreenda a morosidade do nosso sistema recursal, não é dever do judiciário sanar essa incompreensão. Igualmente não cabe ao poder julgador combater a sensação de impunidade experimentada pela população. Sustento minhas afirmações no fato de que ao Estado-Juiz cabe apenas dizer o Direito, aplicar e interpretar honestamente a lei. A causa da impunidade em nosso país não é o sistema processual ou então as regras recursais. A impunidade se perpetua pela falta de efetividade do sistema persecutório. Veja que nossas polícias judiciárias estão sucateadas. Inúmeros inquéritos, especialmente de homicídios, não resultam em solução de crimes puramente por má qualidade das investigações, o que ocorre por falta de investimentos do Estado em infraestrutura investigativa. Não passa de 8% o número de homicídios elucidados no nosso país. A ineficácia é gritante também na investigação de outros crimes. Eis a raiz do amargo sentimento de impunidade.

Ainda creio que havendo quem se utilize dos recursos apenas com intuito de ganhar tempo, a única medida acertada é promover a celeridade dos julgamentos e não relativizar direitos fundamentais. Não importa a complexidade ou a dificuldade em promover a invocada celeridade, pois que as cláusulas pétreas não estão para serem discutidas.

Deveria partir dos nossos magistrados a percepção de que há muito tempo o país vem lançando mão do Direito Penal como exclusiva ferramenta de combate à criminalidade e que isso sequer moveu nossos índices criminais. Segundo a Defensoria Pública do Rio de Janeiro, nossa população carcerária cresceu 600% em 15 anos [3]. E o que mudou no cenário da violência e da criminalidade? Já exaurimos o sistema de justiça criminal editando incontáveis tipos penais, aumentando penas e criando novos crimes hediondos. A estrutura está para se romper. Nada de prático se fez para diminuir desigualdades e fortalecer inteligentemente os mecanismos que deveriam evitar que a maioria dos crimes ocorram. A maior parte das forças policiais está empregada em promover a guerra às drogas. Volto a perguntar: Diminuímos o consumo de entorpecentes? Reduzimos a quantidade de drogas disponíveis no mercado?

A população não entende que as coisas são mais complexas do que parecem. Mais amplas do que os políticos populistas pregam e do que os jornais policialescos gritam.

Devemos reconhecer que a função de julgador não é fácil. Nossos juízes são forçados a produzir decisões em série como em uma linha de montagem. A sedução de atender aos reclames do senso comum é forte até para o mais esclarecido humanista. É, todavia, inafastável o dever de ser isento, imparcial e comprometido com as garantias fundamentais. O problema de um “judiciário policial” é que ele é reflexo de uma crise de identidade institucional e tende a desrespeitar as regras do jogo, negar direitos caros, estranhar o ofício da defesa e não enxergar o inocente. Somente em uma sociedade evoluída – provavelmente ainda distante do nosso tempo, será louvado o juiz que não se reduz à opinião alienígena em relação ao processo e que se compromete exclusivamente com o império do Estado de Direito.

REFERÊNCIAS

[1] Entrevista publicada na edição do dia 20/02/16 no Estadão. Versão digital. Manchete: ‘O maior impacto recairá sobre o colarinho-branco’, prevê Moro.

[2] Site Consultor Jurídico, ‘Magistrados e entidades da advocacia divergem sobre decisão do Supremo’. Opinião do desembargador Renato Salles.

[3] Dado publicado no mesmo tópico ‘Magistrados e entidades da advocacia divergem sobre decisão do Supremo’ do site Consultor Jurídico.

Actos Roosevelt é Graduando em Direito Pelo Centro Universitário de Belo Horizonte Uni-BH.

Destaque: ilustração da internet.

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