Funai e Incra em situação de abandono

Por Roberto Liebgott, Coordenador do Cimi Regional Sul

Num governo de coalizão à direita as causas sociais são, inegavelmente, aquelas mais drasticamente afetadas, especialmente quando se prioriza, nos cortes de recursos públicos, retirar os poucos benefícios destinados aos pobres para com eles alimentar o caixa da lucratividade política e preservar o sistema financeiro. Para a governabilidade de coalizão, se impõe o envolvimento de um governo democraticamente eleito à politicagem e aos interesses econômicos.

Em tal contexto, a presidente da República Dilma Rousseff – assim como seu partido político -, com medo de definhar e afundar na areia movediça dos especuladores da economia, optou pela paralisação dos procedimentos de demarcações das terras indígenas e quilombolas. Um dos métodos adotados é a promoção do desmonte da Funai e do Incra – alvos de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados. Não por coincidência, comandada pelos parlamentares Alceu Moreira (PMDB/RS) e Luís Carlos Heinze (PP/RS), os mesmos que disseram que indígenas e quilombolas são tudo o que não prestam.

O governo federal, preocupado com a crise econômica e política, decidiu que deveria “enxugar as folhas de pagamentos” e cortar gastos. E começou, para não prejudicar o agronegócio e os ruralistas, pela Funai e Incra. Apresento como exemplo o que o governo vem fazendo com o seu órgão indigenista. De acordo com o LOA 2016 (Lei Orçamentária Anual), o orçamento para 2016 será de R$ 533,7 milhões, mas com o anúncio inerente de que deste valor ainda será cortado 40%.

Se destaca que este é o menor volume desde 2012, quando a Funai recebeu R$ 519 milhões. Em 2013, o orçamento do órgão foi de R$ 608 milhões. Em 2014, foi de R$ 589 milhões, e em 2015 foi de R$ 639 milhões. Relacionado ao orçamento do ano passado, o de 2016 representa uma queda de pelo menos 24% (já considerando a inflação de 2015 corrigida pelo IPCA).

Entre as ações destinadas aos povos indígenas, que mais sofreram reduções, está a que prevê a “Fiscalização e Demarcação de Terras Indígenas, Localização e Proteção de Índios Isolados e de Recente Contato”. Em 2014, foram gastos R$ 28 milhões (valor corrigido pelo IPCA). Em 2015, em contrapartida, foram gastos R$ 15,6 milhões, uma queda de 44%.

Junto aos cortes de recursos, vem sendo anunciado que 104 profissionais DAS, aqueles que trabalham por contrato, serão afastados, comprometendo, dessa forma, com a capacidade técnica do órgão. Entre os profissionais a serem descartados encontram-se, não por acaso, os antropólogos, que são os responsáveis pela qualificação das defesas jurídicas e pelo desenvolvimento de ações e políticas constituídas a partir de preceitos culturais e de tradicionalidade, pilares fundamentais a serem respeitados segundo a Constituição Federal de 1988. Além de mais de 30 CTL’s – Coordenadorias Técnicas Locais –, instâncias que garantem a implementação de algumas ações e serviços junto às aldeias.

Concomitante ao descarte de profissionais, centenas de servidores do órgão indigenista estão prestes a se aposentar. Não há perspectivas de que sejam anunciados novos concursos públicos – os últimos ocorreram em 2007 e 2010, quando foram efetivados 730 novos servidores. O quadro atual de servidores é de um pouco mais de 2 mil sendo que destes 1300 ingressaram no órgão indigenista no período anterior à Constituição Federal de 1988.

Ao longo dos últimos três anos, por ordem do governo, a Funai ficou estagnada e não demarcou nenhuma terra indígena. O mesmo ocorreu com o Incra no tocante aos territórios quilombolas. O desmonte destes dois entes do estado trouxe à tona aspectos nefastos da política: as violações aos direitos individuais e coletivos dos povos indígenas, impondo que comunidades fiquem submetidas à miséria, às margens das estradas; submetidas ao confinamento em pequenas reservas ou nas áreas de preservação obrigatória, próxima ou mesmo dentro de fazendas, onde permanecem sem terra, sem alimentos, sem água potável, sem saneamento básico; submetidas a permanente situação de fome, e onde as crianças, logo ao nascerem, são condenadas a viver sem uma alimentação adequada, crescendo desnutridas e vulneráveis a todo tipo de doenças. Lutam pela garantia de seus direitos constitucionais, sendo expostos a inimigos históricos, que ameaçam, perseguem, espancam e matam.

Lamentavelmente os “donos da política” em nosso Brasil são aqueles que também se dizem “donos das terras” – os latifundiários que criam boi e plantam soja e milho transgênicos. E são, em síntese, aqueles que recebem os investimentos públicos – 187 bilhões no Plano Safra de 2015. O governo alimenta esse setor da economia para assegurar o que considera “produtores”, independentemente da localização geográfica, fundiária e as situações jurídicas das terras desses ‘donos’– se em terras públicas, terras indígenas, terras quilombolas, terras griladas, terras tituladas, terras arrendadas. Romper com essa lógica significa o estabelecimento de um confronto (político e econômico) com aqueles que mandam e que fazem as regras para os que governam.

A opção política da presidente da República em governar a partir de alianças marcadamente eleitoreiras, mercantilistas e antiéticas impuseram aos povos indígenas e quilombolas o esvaziamento do alcance dos seus direitos constitucionais. Mais grave, o governo passou a negociar estes direitos, inclusive chegando ao cúmulo de o ministro da Justiça anunciar publicamente que os direitos dos indígenas precisam ser ajustados. Ajustados, logicamente, aos interesses daqueles que efetivamente têm a máquina pública sob seus domínios.

O governo com essa nova concepção “dos ajustes de direitos” quer que os povos e comunidades indígenas renunciem ao direito sobre terras já demarcadas. Incentiva, com isso, os conflitos entre indígenas/quilombolas e os ocupantes de suas terras. É importante destacar que muitos ocupantes de terras indígenas reconheciam a legitimidade das demarcações e aguardavam o pagamento das indenizações (justas e devidas), especialmente na região Sul do Brasil.

A situação fundiária é inegavelmente o centro dos conflitos – demarcação e regularização das terras – e todos os demais aspectos da política assistencial (a ser prestada aos povos indígenas e quilombolas) estão condicionadas às demandas fundiárias. Ou seja, o governo, quando negligencia o direito à terra, acaba fragmentando e fragilizando o alcance das demais normas legais que assegurariam uma política diferenciada e específica para as populações. Essa concepção de política, em prática no Brasil, impõe aos povos indígenas e quilombolas a pecha de que eles são “estorvo e ou penduricalhos”, e como tal precisam ser removidos ou excluídos.

O desmonte da Funai e do Incra estão efetivamente vinculados a estas concepções. A condição de subserviência do governo aos setores que promovem oposição aos direitos indígenas e quilombolas permite os incentivos, na vida cotidiana, do preconceito, da perseguição, da criminalização e o assassinato de lideranças que lutam pela terra.

Para aniquilar com qualquer possibilidade de que os órgãos de Estado venham a executar as políticas de demarcação das terras, de sua proteção e fiscalização, o governo federal permitiu que no Congresso Nacional os ruralistas criassem uma CPI contra a Funai e o Incra, e, concomitantemente, limitará a capacidade de intervenção das Coordenações Regionais e das Coordenadorias Técnicas Locais.

Caracteriza-se, portanto, uma intencionalidade de inviabilizar as ações e serviços destinados a indígenas e quilombolas em nosso país. A Funai e o Incra tornam-se inertes. Fazendo alusão a vida cotidiana, estes órgãos são como doentes tratados por um sistema de saúde tão doente quanto, que não consegue tem alternativa a não ser colocá-los numa UTI sem condições de trazer a vida há quem clama por ela.

Imagem: autodemarcacaonotapajos.wordpress.com

Comments (2)

  1. A imagem é do blog autodemarcacaonotapajos.wordpress.com. Por lapso nosso, esta informação não estava prestada no post.

  2. Ola, gostaria de utilizar esta foto no corpo da minha dissertação de mestrado. Como consegui o contato do autor?

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