Justiça de transição e Ministério Público: resquícios coloniais e autoritários numa instituição republicana

Por César Augusto Baldi, no Empório do Direito

Flávia Piovesan sintetiza, com argúcia, a questão da Justiça de Transição, salientando que ela tende a ritualizar a passagem de um regime autoritário para um regime democrático, assentando-se em direito à verdade, direito à justiça, reparações históricas e reformas institucionais. Tanto a Comissão Nacional da Verdade, com todas as suas limitações legais, quanto o julgamento Gomes Lund, pela Corte Interamericana, salientaram que tal tarefa não diz respeito apenas aos Poderes Executivo e Legislativo, mas também às demais instituições relacionadas à questão, dentre elas as polícias, as Forças Armadas, o Poder Judiciário, as Defensorias Públicas e também os Ministérios Públicos, estadual e federal.

Salientem-se, aqui, apenas, uns pontos de um necessário repensar da Justiça de Transição em relação ao Ministério Público, inclusive em virtude de seu protagonismo atual na situação jurídica e política do país.

Primeiro: a Constituição de 1988, aparentemente, criou uma nova formatação da instituição, ao permitir que, não sendo especificamente um quarto poder, teria atribuições, tanto no sentido da titularidade penal, quanto da defesa dos direitos fundamentais, dotando-lhe de autonomias funcional e administrativa, mas também de independência funcional e indivisibilidade. Isto, contudo, teve alguns aspectos pouco analisados, no geral.

De um lado, ficou mantida, aos ocupantes do Ministério Público, tanto a possibilidade de advogarem, quanto de opção pelo sistema anterior, ou seja, de vinculação ao Poder Executivo, no sentido de que exerciam o que, na configuração da Constituição de 88, veio a ser a Advocacia-Geral da União. A indicar, como salientado no recente julgamento do STF, que aos novos ocupantes era vedado exercício de atividade no Executivo, sob pena de subordinação (uma incongruência lógica se, ao contrário, permitida aos integrantes anteriores a 1988, se corretas as premissas da argumentação). Por outro lado, seria necessário repensar como compatibilizar o instrumento da ação penal com a defesa dos direitos fundamentais previstos na Constituição. Não é demais lembrar que a nova configuração previa não somente a existência de crimes hediondos, mas também de “graves violações a direitos humanos”, bem como a previsão de racismo como crime inafiançável e imprescritível.

Na prática, as ações da instituição, no âmbito federal, foram voltados para a apuração de crimes ambientais e econômicos-financeiros e nunca numa eventual lógica de promoção de direitos fundamentais. Não é casualidade, pois, que as ações envolvendo racismo e também a própria inovação de 2014 na lei de ação civil pública para “proteção de grupos étnicos, raciais e religiosos” tenham sido poucos utilizadas. Prevaleceu uma lógica punitivista, dentro de uma estrutura que não rompeu com os alicerces do regime autoritário, relembrando-se, apenas, quando dos excessos, das previsões relativamente aos direitos constitucionais de presos e indiciados, arrolados no artigo quinto da Constituição. Isso talvez explique o paradoxo de, ao mesmo tempo em que se salienta um alto grau de “impunidade” do sistema penal, o país detenha, hoje, a quarta população carcerária do mundo, predominantemente de negros e mulheres. Um processo de racialização e seletividade da atividade penal, que nunca foi pensada numa lógica de direitos humanos. Um paradoxo que poderia ser resumido nestes termos: depois da Constituição de 88, que criminaliza de forma grave o racismo, poucas são as ações propostas para eliminar tal conduta nas relações sociais, mas a população carcerária é majoritariamente negra. O cárcere parece demonstrar que o racismo está na própria aplicação da legislação penal que o deveria combater.

Segundo: se no sistema anterior, o Ministério Público fazia a assessoria jurídica da União, e o país vivia uma ditadura (e não um “regime militar”), era natural que a instituição fizesse, internamente, sua própria justiça de transição, no sentido de recuperar a verdade, a memória, a reconstituição institucional e a própria prevalência dos direitos humanos consagrados na Constituição de 1988. Se é verdade que o MPF de São Paulo, em especial os procuradores da República Marlon Weichert  e Sergio Suiama, foram dos primeiros a entrar com ações de reparação por conta de torturas praticadas por militares, o fato é a existência de um não tema em relação à própria colaboração, por ação ou omissão, de membros  da própria instituição, tanto no âmbito estadual, quando no âmbito federal.

Um exemplo é simbólico neste sentido: em 1967, o procurador da República Jader de Figueiredo elaborou um amplo relatório que levou seu sobrenome, envolvendo as violações de direitos indígenas no período ditatorial. O resultado implicou a extinção do antigo Serviço de Proteção ao Índio e a criação da atual FUNAI. Observe-se, contudo, que o relatório constou de 30 volumes, com um total de mais de sete mil páginas e se supunha desaparecido. Foi descoberto quando da tentativa de reintegração de posse do então Museu do Índio, cuja defesa foi feita, paradoxalmente, pela Defensoria Pública e não pelo MPF, e que acarretou o “encontro” de 29 volumes, devidamente catalogados. A “descoberta” do relatório convive, sem maiores arroubos, com o fato de que sete mil páginas, devidamente catalogadas, não poderiam, em hipótese alguma, estarem “desaparecidas” ( o que seria equivalente a mais de dois metros de processo ao chão ou dois armários cheios), mas sim deliberadamente ocultadas e guardadas. A divulgação das violações aos direitos indígenas permite, paradoxalmente, a não tematização de eventual colaboração de membros da instituição no sentido de seu ocultamento.  Não é demais lembrar que Juan Pablo Bohoslavsky mostrou, para o caso argentino, que houve colaboração tanto econômica, quanto judicial no sentido de manutenção da ditadura. Uma parte dos resultados está na revista número 10, “Direito e Anistia”, do Ministério da Justiça. Mas, em relação ao Ministério Público, a questão continua sendo um “não tema”.

Terceiro: a Constituição de 1988 estabeleceu que ao Ministério Público compete o “controle externo da atividade policial” ( art. 129, VII), na forma de lei complementar que veio a ser editada em 1993. O relatório da Comissão Nacional da Verdade foi muito contundente no sentido de salientar que as polícias, em especial as estaduais, eram, no mínimo, coniventes com práticas de maus tratos, tortura ou tratamento degradante ou cruel em relação aos presos e investigados. O último relatório da ONU sobre o tema destaca os índices alarmantes de “tortura institucionalizada”. Na prática, contudo, o que se tem visto é a chancela da instituição em relação às informações advindas dos inquéritos policiais e isso merece especial atenção, nos dias de hoje, em relação à Polícia Federal.

Dois acontecimentos são extremamente instrutivos em relação a isso. A naturalização da “condução coercitiva” pela operação Lava Jato- até o presente momento, já são mais de 144 ( o que equivale a mais de uma por semana)- revela que o próprio Código de Processo Penal não venha sendo lido em perspectiva democrática, e o que deveria ser exceção, passa a ser quase que regra. Não é demais lembrar a própria conotação colonial e racista da referida condução, que, originalmente, era denominada “condução mediante vara” ou “sob vara”, a relembrar aspectos da escravidão e do colonialismo e, pois, aplicável, predominantemente, até então, a negros e negras. O fato de sustentar que, num regime democrático, ninguém está imune à aplicação da lei, pode ser lido, ao revés, como determinação para que o sistema penal seja aplicado, de forma mais forte ainda, em relação aos “tradicionais” destinatários da norma: pretos, pobres e prostitutas. O estado de exceção, que em termos raciais, já era a regra, expande-se para fora dos seus limites habituais e passa a justificar ampliação para outros âmbitos, agora sob alegação de “combate à corrupção”. A “delação premiada”, associada à banalização da “prisão cautelar”, acarreta o paradoxo de  liberar da prisão “quem colabora com a justiça”, ao mesmo tempo que mantém preso quem assim não procede, mesmo que inocente ( e assim deveria o ser, até o trânsito em julgado de sentença condenatória). Algo que naturaliza, com “fins de combate à corrupção”, um tratamento que está próximo de ser algo degradante ou cruel e, pois, uma extensão do regime ditatorial e também da escravidão. Não é demais lembrar que as justificativas de maior punitivismo exacerbam a aplicação, colonial e racialmente, aos mesmos destinatários de sempre.

O segundo acontecimento é a mensagem deixada pelo Conselho Superior do Ministério Público Federal, que, recentemente, não exonerou – e mais que isso, vitaliciou- por cinco votos a quatro (com voto contrário conduzido pela SubProcuradora-Geral da República Ela Wiecko), um procurador da República que foi acusado de tortura física e psicologicamente à própria esposa. Segundo a maioria dos votos, o agressor era, de fato, a vítima e tinha sofrido “lavagem cerebral” e “transtornos mentais”, movido pela “fé”, que não permitiriam seu afastamento da instituição. Não é demais lembrar que a própria PGR, por meio da ADI 4424, sustentou que a violência contra mulher era “grave lesão de direitos humanos” e deveria ser objeto de ação penal pública, tendo sido julgada de forma unânime pelo STF. A instituição passa a mensagem, pois, de que a violência contra a mulher não merece tamanha reprimenda, se feita “em nome da fé”, e que manter em cárcere privado, além de surra com cinta, não configuraria sequer “tortura”. Recorde-se, neste sentido, que tanto Balakrishnan Rajagopal quando Upendra Baxi, mostram como a tortura é construída, já no período colonial, como a distinção entre “sofrimentos necessários” e “sofrimentos não necessários”, de forma a criminalizar as práticas dos colonizados e não a dos colonizadores. A tortura é, desde o início, um instrumento colonial, e o fato de não reconhecer determinados sujeitos como sendo “torturados” demonstra o quanto ela é construída racialmente, colonialmente e em termos de gênero.

Quarto: Uma rápida pesquisa jurisprudencial demonstra que o MPF, em especial a PGR, não ajuizou temas relacionados a militares. A exceção que confirma a regra é a ADPF nº 289, que busca o reconhecimento da incompatibilidade com a Constituição das normas que preveem competência da Justiça Militar para julgar civis. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, a ONU e a Corte Europeia de Direitos Humanos têm destacado que  a jurisdição militar deve ter um alcance restritivo, ligado à proteção de interesses jurídicos característicos das forças militares. O caso revela, por outro lado, outro não tema: a crescente militarização da segurança do país, de que são exemplos a Força Nacional de Segurança, a atuação das Forças Armadas para ocupação de favelas ou para “controle” de manifestações populares e a “garantia da lei e ordem” ( que deveria ser vista, na prática, como uma semi intervenção nas atribuições dos entes federados e supressão parcial de direitos fundamentais). Após mais de vinte anos de ditadura, a segurança do país é vista, contudo, cada vez mais dentro de uma ótica militar e de utilização de Forças Armadas, que também ainda precisa fazer sua justiça de transição, como bem salientado no julgamento Gomes Lund vs. Brasil. O maior paradoxo, contudo, é que essa militarização das forças de segurança não vem sendo questionada, em termos programáticos, pelo próprio Ministério Público, que, muitas vezes, solicita o auxílio da FNS ou instauração de GLO, nos casos de conflitos envolvendo reintegração de posse de terras indígenas. Para tal constatação, bastaria uma breve consideração dos orçamentos do Ministério da Justiça e, provavelmente, do próprio Ministério Público Federal (recorde-se, a título exemplificativo, que a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão teve seu orçamento reduzido em 90%, a revelar a dificuldade no tratamento de direitos fundamentais, quando existe exacerbação da dinâmica penal dentro da instituição). Aqui, novamente, a dificuldade da instituição- e também da sociedade civil- de trabalhar direito penal e efetivação de direitos humanos.

O parecer da PGR na ADPF 153 salientando que a anistia tinha sido ampla, geral e irrestrita, no que foi seguido pela quase unanimidade do STF, é outro exemplo neste sentido, e acarreta, dentre outros pontos: a) equivalência entre atos de torturados e torturadoxs, ignorando o próprio direito de resistência; b) a admissão de seu uso para fins políticos ( respaldando, ainda que em parte, práticas policiais); c) ignora a jurisprudência de crimes de lesa humanidade. O mesmo pode ser dito em relação à ADPF 291, proposta por uma PGR interina que logo após se aposentou e que teve parecer contrário do atual PGR: apesar de ser parcialmente acolhida pelo STF, em termos institucionais, não houve o questionamento das rígidas hierarquias e das discriminações envolvendo homossexuais. Recorde-se que a resistência à ditadura por “sexualidades dissidentes” é, de fato, uma pendência dentro da justiça de transição, ainda que tenha merecido um apartado no relatório da Comissão Nacional da Verdade.  E existem poucas discussões dentro do MP no sentido de reconhecer o “homonacionalismo” das Forças Armadas e uma construção de lealdade à pátria em termos masculinos, com evidentes traços de discriminação de gênero. Os casos revelam, portanto, a dificuldade de a instituição enfrentar o legado autoritário em relação às próprias Forças Armadas. Um paradoxo pode ser salientado: a ADPF 130, discutindo a lei de imprensa, e julgada unanimemente pelo STF, não foi proposta pela PGR, mas sim pelo PDT. A lei de Segurança Nacional, por sua vez, nunca foi impugnada em relação à sua incompatibilidade, total ou parcial, em relação à Constituição de 1988.

Quinto: A Constituição de 1988 previu, no art. 129, V, que compete ao MP “defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas”. Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, em capítulo dedicado especialmente ao tema, as vítimas indígenas ultrapassam o número de seis mil pessoas, o que implica reconhecer, por via oblíqua, que foram, de fato, as maiores vítimas do sistema ditatorial e da implantação das políticas públicas no período posterior a 1964. Paradoxalmente, a PGR, inclusive no período anterior ao atual Rodrigo Janot, nunca questionou a incompatibilidade, parcial ou total, da Lei nº 6001, de 1973, com a Constituição de 1988, ainda que, não somente dentro de uma lógica assimilacionista, incompatível com o referido texto constitucional e com os instrumentos de direito internacional, mas mais que isso, dentro de uma lógica militar, de preservação de fronteiras e de implantação de projetos coloniais de desenvolvimento (“colônias agrícolas” é um nome por demais colonial para ser ignorado). Não é demais lembrar que, mesmo depois do advento da Declaração de 2007, a própria Sexta Câmara mantém o nome “populações indígenas e comunidades tradicionais” e não “povos indígenas”, tal como salientado em todos os documentos da ONU.  Talvez seja a dificuldade, existente na instituição, de reconhecer a plena eficácia do art. 232 da CF que confere a legitimidade indígena para ações em seu próprio interesse,  a imaginar, quiçá, que a “tutela” deixou de existir em relação à FUNAI e continuou a ser exercida, agora, pelo MPF, muito mais “iluminado”.

Em relação à justiça de transição é importante salientar que, até o presente momento, somente o povo Suruí teve o reconhecimento de reparação por conta de torturas, maus tratos e privação de liberdade durante a Guerrilha do Araguaia, em 2014, pela Comissão da Anistia, sessão em que, paradoxal e simbolicamente, nenhum membro do Ministério Público esteve presente. Os pedidos continuam sendo analisados na forma de reparações individuais, o que ensejou a atuação do procurador da República Edmundo Dias, em relação ao povo Krenak, não somente por conta da existência, no município de Resplendor, do denominado “reformatório Krenak, mas também de sucessivos exílios e da criação da Guarda Rural Indígena. O pedido foi realizado em caráter coletivo, o que ainda não é aceito no âmbito da Lei nº 10.559, de 2002. Encontra-se em estudo, por parte do procurador Wilson Rocha de Assis, pedido similar em relação ao povo Xavante. A existência de grupo de trabalho específico sobre o tema, no âmbito da Sexta Câmara, revela, contudo, a não tematização, durante todo o período constitucional destas violações no período da ditadura militar, a mostrar como a própria construção da narrativa das vítimas revela uma forte racialização, ignorando negrxs e indígenas e, ao mesmo tempo, sendo pensado como uma justiça de transição branca, colonial, heterossexual e eurocentrada.

Os poucos aspectos acima narrados mostram que, apesar de a justiça de transição vir sendo demandada em termos de Poder Executivo, ela ainda é muito incipiente dentro do âmbito do Ministério Público, além de estar dominada por considerações que não levam em conta a racialidade,  gênero, sexualidades dissidentes e aspectos coloniais das estruturas autoritárias. A não tematização destes pontos, num país que mantém estruturas judicais e policiais com forte traços de hierarquia, bacharelismo e pouca tradição de controle social, é algo que merece destaque. A luta por direitos humanos é também uma luta simbólica. O combate aos resquícios autoritários nas instituições é um imperativo para vencer os sexismos, racismos e o colonialismo ainda presentes em nosso país.

*César Augusto Baldi é mestre em Direito (ULBRA/RS), doutor em “Derechos Humanos y Desarrollo”, pela Universidad Pablo Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde 1989, é organizador dos livros “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004) e “Aprender desde o Sul” (ed. Forum, 2015).

Imagem: Reprodução do Empório do Direito

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