A República dos Ratos, dos cidadãos civilizados

Por Brenno Tardelli, em Justificando

A delação is the new black. A prova moderna de nossos tempos faz uma metaformose na figura do pária – réu no processo penal – transformando-o em messias que trará a redenção à sociedade cansada de tanta corrupção. Em outras palavras, ao supostamente “desmascarar” outras pessoas, o delator – Dedo-duro, Judas, X9, Rato, enfim, cada pessoa tem um nome para essa personalidade – ganha status de dono da verdade.

Ele ganha o status de dono da verdade, mas – dirão os crédulos – “tem que comprovar o que diz. Não basta apenas sua palavra”. O jurista é realmente rápido para construir chavões. Já existem vários como esse: “a delação deve ser corroborada com outros elementos dos autos” e por aí vai. Daremos uma colher de chá: essas pessoas repetem chavões por ingenuidade.

Em primeiro lugar, porque a delação vive uma paixão intensa com os destaques dos jornais e redes sociais, ganhando o peso e qualificação para – pelo menos –  sujar a imagem do delatado. Somente em 2016, esse ano que nunca acaba, quantas foram as manchetes com palavra do delator? A Revista Istoé fez seu palanque com base nas palavras do Delcídio. Estamos no mundo real: aqui a palavra do delator não precisa ser corroborada por nada não. Ela nos basta – digo isso enquanto jornalista ou usuário de redes sociais – para julgarmos o delatado.

Jornalistas e leitores não são técnicos quanto supostamente o Judiciário é, dirão de novo os crédulos como se tivessem descoberto a gravidade. Isto é, em tese, confiamos que nosso Reino do Olimpo faça uma análise retida para manter a delação dentro dos chavões. Em tempos que juiz divulga um áudio para a mídia e é alçado à condição de herói pelos seus pares, trata-se de outra ingenuidade.

Além disso, um detalhe sórdido é fundamental no depoimento do traíra: ele fala o que o acusador quer ouvir.

Ricardo Darín, fantástico ator argentino, interpreta Roberto Bermudez, um conceituado Professor de Processo Penal no filme “Teses sobre Homicídio”. A obra trata da morte brutal de uma de suas alunas no estacionamento da universidade. Diante do fato, Bermudez põe na cabeça que o culpado é um colega de sala da estudante, seja porque não era simpático a ele, ou porque ele sorriu de forma estranha. Enfim, cismou com o aluno e da cisma passou a construir sua… tese sobre o homicídio. A premissa “Ele é o culpado”  tornou a acusação muito mais fácil e conspiratória.

Uma pausa no texto para uma afirmação evidente: é óbvio que delatores muitas vezes falam a verdade em alguns depoimentos. Alguns delatados devem ser mesmo culpados, afinal não é possível que essa onda de denuncismo que inundou o país não carregue alguém que, de fato, seja culpado. Ocorre que, por mais que esse delator verídico exista, não há como assegurar a veracidade do que fala.

Pense a delação como uma negociação com muito blefe. O delator não precisa mostrar todas suas cartas, pois sabe exatamente o Rei de Ouros que o acusador quer comprar. Isso o torna detentor de um poder de barganha enorme e não muito compromissado com a verdade – esta utopia ficará a cargo do acusador afoito e do juiz justiceiro construírem, como mostra Darín em seu filme, ficção de botequim perto dessa novela que virou a política do país. Não é lá muito difícil.

Blefe ou não, fato que delação atrai aplausos constrangedores. Como sempre, brincar com o punitivismo queima a mão, uma vez que se um dia a delação belisca Lula, no outro morde Aécio, penta-delatado, como brincam as redes sociais. O mesmo PT que reclama de peito estufado do sangramento causado pelas palavras midiáticas de traíras, comemora quando Fernando Capez, menino de ouro Tucano, é citado na delação da Merenda. Meio de prova repugnante para acusar Chico, continua abjeto para acusar Francisco.

Curioso como o punitivismo parece ser a única bandeira que une reaças e petralhas no país. Enquanto estamos levando essa conversa de delação no âmbito governo e oposição, tudo parece cheiroso no reino da Dinamarca. Se os políticos são a encarnação do mal, então somos capazes de aplaudir discursos virulentos de apoio à delação ou a comemorar leis que a reforcem. Mas, quando o canhão se voltar à população e a delação começar a ser negociada no varejo, tornando o denuncismo um temor real na base da sociedade, aí sim talvez a coisa mude de figura.

Até lá, essa modalidade de prova continuará surfando a onda que transforma o Brasil na República dos Ratos, dos cidadãos civilizados.

Brenno Tardelli é diretor de redação no Justificando.

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