Governo da Bahia vai avaliar recomendações da Comissão da Verdade do estado

Por Sayonara Moreno – Correspondente da Agência Brasil

A Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Bahia vai avaliar a viabilidade de implantação das propostas apresentadas pela Comissão Estadual da Verdade, que concluiu seus trabalhos após três anos e meio e entregou o relatório final das atividades ao governador do estado, Rui Costa. No entanto, ainda não há prazo para análise das sugestões, segundo o órgão.

Com mais de 2 mil páginas em três volumes, o documento diz que as perseguições políticas na Bahia durante a ditadura começaram desde o primeiro dia do golpe militar, em abril de 1964, e que a repressão e a retaliação aos contrários ao regime atingiram todas as esferas da sociedade baiana.

Ao todo, segundo a comissão, 538 pessoas tiveram direitos violados na Bahia, durante os 21 anos de ditadura militar, entre 1964 e 1985. Dos 426 mortos ou desaparecidos em todo o Brasil no período, 32 são baianos.

Elaborado com base em depoimentos de presos políticos e de parentes de pessoas desaparecidas na Bahia e de documentos coletados em instituições como universidades e câmaras municipais do estado, o relatório final da Comissão da Verdade baiana traça um roteiro das violações de direitos humanos no período, aponta casos não resolvidos e sugere medidas de reparação e preservação do direito à memória.

Tortura

O presidente da Associação Bahiana de Imprensa e integrante da comissão Antônio Walter Pinheiro disse que o grupo conseguiu tomar depoimentos importantes, apesar da dificuldade de ouvir relatos de violência e tortura sofridas pelas vítimas da ditadura.

“O que mais me chocou foi o desrespeito, a forma banal como integrantes das forças de segurança tratavam os cidadãos. No momento em que – participando de um depoimento desse – se assiste aquele que foi torturado relatar o que sofreu, na forma como foi, bastava ele contar para [me] arrepiar, imaginando o que ele tinha passado com as torturas, seja aqui, seja no Rio [de Janeiro], seja em Alagoinhas, em Feira de Santana, que foram alguns pontos para a prática da tortura. É algo que deprecia muito e me choca como humano”, disse Pinheiro.

Filha de uma das vítimas da tortura na Bahia, a professora e psicóloga Tatiana Rollemberg lembrou que a mãe, Eliana Rollemberg, hoje com 72 anos, chegou perto da morte por causa da violência a que foi submetida na prisão entre 1970 e 1972. Com a mãe presa, Tatiana foi viver no exílio na França com o pai e uma tia. Quando foi solta, a mãe também se mudou para a Europa e a família só retornou ao Brasil depois da Anistia.

Ao lembrar a história da mãe, Tatiana diz esperar que os relatos ouvidos pela Comissão da Verdade sirvam para que as vítimas da ditadura sejam reconhecidas e os casos de violência, esclarecidos, para que não voltem a se repetir. “Espero, realmente, que essas pessoas tenham a bravura reconhecida. Tenho o sentimento de injustiça do que aconteceu. E com tudo o que a gente passou, vale a pena a luta, porque temos que continuar acreditando na democracia”, disse a professora, uma das representantes de torturados a participar da cerimônia de entrega do relatório o governador, na última sexta-feira (12).

Política e repressão

O coordenador da Comissão da Verdade baiana, Joviniano Neto, destacou que a repressão no estado pelo governo militar teve apoio quase imediato de políticos baianos conservadores, entre eles o ex-senador Antonio Carlos Magalhães (ACM), que foi indicado pelos militares ao cargo de prefeito de Salvador e depois ao governo da Bahia.

Segundo Neto, ACM se destacou na política durante o período militar justamente porque fez “vista grossa” às torturas e perseguições sofridas pelos presos políticos no estado.

“Uma das consequências do golpe de 1964 e da ditadura foi a invasão do Carlismo [governos consecutivos de ACM] na Bahia. Como os governadores de todo o período, até 1982, eram indicados pelos militares, eram parte do mesmo sistema. Todos passaram pela aprovação prévia dos militares. Ele [ACM] foi fruto do golpe, assumiu a liderança do que chamava de revolução e era solidário com todas as consequências da implantação do golpe na Bahia”, disse o coordenador da comissão.

Antonio Carlos Magalhães morreu em 2007. Procurado pela Agência Brasil para comentar as declarações sobre ele, o Instituto ACM, responsável pela memória do político, não respondeu à reportagem até a publicação.

Para Joviniano Neto, o extenso relatório chegou a três conclusões principais sobre os anos de chumbo na Bahia: “A primeira é que a repressão atingiu todos os setores da sociedade baiana, como políticos oposicionistas, universidades, movimentos culturais, sindicatos, etc. O segundo é que a repressão e a violência começaram desde o primeiro dia [do golpe]. E, por fim, essa característica da elite brasileira de querer fazer tudo dentro da formalidade legal, que continua presente, mesmo para aplicar um golpe”, listou.

O relatório

A versão impressa do relatório final da Comissão Estadual da Verdade da Bahia tem 2.211 páginas, divididas em três volumes. O primeiro livro retrata o impacto da ditadura sobre pessoas e instituições e contém recomendações para o atual governo da Bahia. No segundo livro estão os depoimentos e fotografias das audiências realizadas. O último volume trata das questões que envolvem o funcionamento e a estrutura do colegiado. A íntegra do relatório será disponibilizada em breve na página da comissão na internet.

Os integrantes da comissão destacam que o relatório não está finalizado, porque existem questões que precisam ser investigadas e documentos que não foram encontrados ou foram destruídos. Entre os casos não esclarecidos citados no relatório está o do educador baiano Anísio Teixeira, que pode ter sido morto por torturadores, apesar da versão oficial de que cometeu suicídio.

Entre as sugestões da comissão ao governo da Bahia está a implementação de políticas de defesa dos direitos humanos de forma mais concreta e com maiores investimentos. Apesar de não ter lido o documento, o governador Rui Costa disse estar aberto para colocar em prática as principais sugestões do colegiado.

“Estou sempre aberto a ouvir e, por isso, pedi que a comissão busque detalhar com o secretário de Direitos Humanos e Justiça pontos que podem ser colocados em prática, de forma objetiva e direta”, disse.

Criada em dezembro de 2012 pelo ex-governador Jaques Wagner, a Comissão Estadual da Verdade atende a um dos pontos do Programa Nacional de Direitos Humanos, que destaca o direito à memória e à verdade como prioridade. O grupo é composto por sete integrantes, que trabalharam de forma voluntária.

Edição: Luana Lourenço.

Imagem: Audiência da Comissão Estadual da Verdade da Bahia. Colegiado entregou relatório final após três anos e meio de trabalho – Divulgação/Comissão Estadual da Verdade da Bahia

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