Ex-legistas são denunciados por fraudarem laudo de preso político morto em virtude de torturas

Laudo elaborado pelo IML/SP corroborou versão do Doi-Codi na qual João Batista Franco Drummond morreu atropelado ao fugir da polícia

Por PRSP

O Ministério Público Federal em São Paulo denunciou os médicos legistas aposentados Harry Shibata, Abeylard de Queiroz Orsini e José Gonçalves Dias por falsidade ideológica. Atendendo solicitação do Doi-Codi, onde o preso político João Batista Franco Drummond havia sido morto sob tortura, Shibata, então diretor do IML/SP, ordenou que os outros dois legistas inserissem informações falsas e omitissem do laudo necroscópico da vítima que ele havia sido torturado e morto por agentes da repressão.

Para o MPF, caso a denúncia seja recebida e os réus condenados, a pena deve ser agravada por motivo torpe, pois visava assegurar a impunidade dos autores da tortura e homicídio de Drummond. Além disso, os três violaram seus deveres de servidores públicos. O MPF requer ainda que Shibata, Orsini e Dias percam suas funções públicas e, consequentemente, suas aposentadorias, assim como eventuais condecorações que tenham recebido.

Drummond integrava o Partido Comunista do Brasil, então proscrito no Brasil, e na noite de 15 de dezembro de 1976, participou de reunião do comitê central do PcdoB em uma casa na rua Pio XI, bairro da Lapa, na zona oeste de São Paulo, mas a casa vinha sendo monitorada pelo Doi-Codi do II Exército desde o dia 10, após a delação de um integrante do partido que havia sido preso dias antes.

O ataque à casa, contudo, arquitetado pelo Doi em parceria com a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, não foi realizado na noite do dia 15, mas na manhã do dia 16, quando se encontravam no imóvel Ângelo Arroyo e Pedro Pomar. Drummond e Wladimir Pomar haviam deixado a casa bem antes, entre 20h e 21h30, e levados de carro até o bairro dos Jardins, por Elza Monerat e Joaquim Celso de Lima.

Drummond e Pomar tomaram direções opostas, mas, como estavam sendo monitorados, foram presos em pontos diferentes do bairro e levados para o Doi-Codi e foram barbaramente torturados em salas diferentes. Na madrugada, Drummond acabou falecendo em razão das torturas, dentro do Doi.

Devido à morte da vítima, resultante diretamente da tortura, todas as sessões foram paralisadas, conforme relatou Wladimir Pomar em depoimento à Comissão Estadual da Verdade. Desde outubro de 1975, devido a grande repercussão do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, sob tortura, seguida em janeiro de 1976, pela do operário Manoel Fiel Filho, o comandante II Exército, Ednardo D´Ávila, foi demitido e as mortes no Doi-Codi haviam estancado, pois um novo caso fatal poderia prejudicar o processo de abertura política planejado pelo presidente Geisel.

SIMULAÇÃO. Foi decidido então pelos agentes simular que João Batista teria morrido atropelado enquanto fugia do cerco à casa na Lapa, e não morrido no Doi-Codi, como acabara de acontecer. Em conluio com o Secretário de Segurança de São Paulo, Erasmo Dias, foi armada a farsa e o corpo de Drummond levado até a rua Paim e um atropelamento encenado.

O delegado Sergio Paranhos Fleury foi acionado e elaborou a requisição de exame de corpo delito ao IML para confirmar a versão de atropelamento e “legalizar” a morte. Shibata, que naquela época comandava o IML, distribuiu o pedido de exame para Orsini e Dias, que estavam cientes que o documento deveria confirmar o “atropelamento” que nunca existiu.

Dias e Orsini assinam o laudo, que afirma que Drummond “foi vítima de atropelamento enquanto fugia ao ser perseguido pela polícia” e que a morte decorreu de traumatismo crânio-encefálico. Outras marcas no corpo de Drummond foram atribuídas à consequências do atropelamento, sendo ignorada a tortura que a vítima sofreu. No quesito no qual é questionado se a morte foi produzida por tortura, os médicos-legistas se omitiram e informaram que a pergunta estava “prejudicada”.

OCULTAR AUTORIA. Para o procurador da República Andrey Borges de Mendonça, os legistas agiram conscientes da simulação e da finalidade de ocultar as verdadeiras circunstâncias da morte de Drummond. Na denúncia e na cota introdutória, o MPF esclarece que o crime não prescreve, pois se insere num contexto de graves violações de direitos humanos, crimes contra a humanidade, ocorridos num ataque sistemático do governo ditatorial contra opositores, armados ou não.

Segundo o MPF tem insistido em todas as denúncias oferecidas à Justiça desde 2012, os crimes cometidos pelos agentes da repressão não são passiveis de anistia e não prescrevem por três motivos: por terem sido cometidos num contexto de ataque sistemático à população civil brasileira para manter o poder tomado ilegalmente pelos militares em 1964; porque o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Gomes Lund, cuja sentença aponta que interpretações jurídicas que resultem em impunidade devem ser ignoradas; e porque o direito penal internacional prevê que crimes contra a humanidade não estão sujeitos a regras domésticas de anistia e prescrição.

Em 2012, a família de Drummond foi a primeira a obter na Justiça de São Paulo a retificação do atestado de óbito de uma vítima do regime militar e a versão de traumatismo craniano deixou de constar do documento. Antes, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos já havia reconhecido que a morte de Drummond havia ocorrido em decorrência das torturas sofridas no Doi-Codi.

Leia a íntegra da denúncia

Leia a cota introdutória

A denúncia foi autuada na Justiça Federal sob nº 0011528-34.2016.4.03.6181 e distribuída à 1ª Vara Federal Criminal. Para consultar a tramitação, acesse http://www.jfsp.jus.br/foruns-federais/

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