A PEC 241 é a contra-face da “defesa da família”

Todos os deputados que estão envolvidos nas proposições em tramitação que pretendem retirar o direito à união homoafetiva, retroceder décadas restaurando o “direito das famílias como entidades” e proibir o debate sobre igualdade de gênero nas escolas votaram a favor da PEC 241, isto é, votaram contra o direito à educação, à saúde e à assistência de brasileiras e brasileiros.

Por Flávia Biroli, no Blog da Boitempo

Fim de um ciclo democrático

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, aprovada em primeira votação na Câmara dos Deputados no dia 10 de outubro, concentra duas investidas fatais contra a democracia brasileira. A primeira é a retirada do orçamento do escopo das decisões democráticas, uma vez que a PEC, se aprovada, determinará a restrição do investimento em saúde, educação e assistência social por uma a duas décadas. Isso significa que as disputas eleitorais serão travadas ao largo de uma questão política central, que é a alocação de recursos. A segunda é o encerramento do patamar em que as disputas têm transcorrido desde 1988, que teve como referência os direitos sociais definidos na Constituição.

Um governo sem legitimidade está prestes a realizar uma mudança que incidirá diretamente sobre o balanço entre a vida e o lucro. É isso que está no cerne da PEC 241: trata-se de uma redefinição do papel do Estado de modo que retira recursos dos investimentos sociais, inviabilizando o direito à educação, à saúde e à assistência, enquanto mantém a alta remuneração do capital, por meio das taxas de juros praticadas e do sistema atual de tributação.

O projeto de Brasil apresentado pela PEC 241 é aquele em que o Estado reduz os investimentos em áreas fundamentais para a vida das pessoas ao mesmo tempo em que retira o debate sobre o papel do Estado do jogo democrático-eleitoral.

Nos 27 anos (1988-2015) que demarcaram o ciclo da democracia brasileira que agora se encerra, estivemos inicialmente mais próximos do modelo do capitalismo de mercado neoliberal, com Collor de Melo, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. A partir de 2003, com a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao Governo Federal após a eleição de Luis Inácio Lula da Silva, tivemos um ciclo dentro do ciclo, em que vivemos nossa versão de capitalismo de estado com democracia. O ciclo dentro do ciclo foi caracterizado pela ampliação dos investimentos sociais, pela redução da pobreza, pelo aumento do valor real do salário mínimo, embora tenha sido caracterizado também pela alta lucratividade do setor financeiro e, ao menos até 2012, por uma situação cômoda para o empresariado nacional.

O Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 1988, é, com seus potenciais e problemas, característico do ciclo democrático iniciado naquele ano. O Sistema Único de Assistência Social (SUAS), criado em 2005, é característico do ciclo dentro do ciclo, no qual foi ampliado o montante de recursos para políticas de assistência – entre as quais muitas das políticas que podem ser caracterizadas como políticas de cuidado focadas nos setores mais vulneráveis da população. São dois exemplos do que está em risco agora, quando a PEC 241 sinaliza que a deposição de Dilma Rousseff foi apenas o anúncio do fim de um ciclo, e não o fim propriamente.

Quero ressaltar que é um equívoco definir o que está em jogo como uma questão de balanço das contas públicas. Esse tem sido o discurso da propaganda favorável à PEC 241. A ausência de debate é complementada pela distorção aberta praticada pela mídia empresarial brasileira. As perguntas que não são feitas são fundamentais para se entender o que está em jogo: para quem é uma solução “equilibrar contas”, comprometendo o direito à saúde, à assistência e à educação? Quais são as alternativas do ponto de vista do ajuste fiscal? Qual é a legitimidade de um governo não eleito para levar a cabo uma mudança que não é nas “contas”, mas na viabilidade dos sistemas públicos de saúde, educação e assistência?

O que está em jogo é se e como o Estado investe na sociedade. Com a PEC 241, o Estado redireciona os recursos públicos, de modo que são retirados do investimento em equipamentos públicos, na prática inviabilizando direitos fundamentais.

A PEC 241 e a “defesa da família”

A PEC 241 também ajuda a compreender como se apresenta hoje o arranjo entre a defesa da redução dos investimentos sociais e a defesa de uma incidência maior do Estado na forma da repressão e da “normalização”.

A “defesa da família” tem sido um dos eixos organizadores da reação conservadora na crise política atual. Ela aparece nas muitas proposições e iniciativas no Congresso e nos legislativos estaduais e municipais que buscam restringir o sentido de família corrente, estabelecido conjuntamente pela Constituição de 1988, pelo Código Civil de 2002 e por decisões posteriores do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça.

Venho há algum tempo chamando a atenção para o fato de que a defesa da família, pelos atores políticos da reação, é ao mesmo tempo construída no plano moral e no plano socioeconômico. Ela é contrária à pluralidade dos arranjos afetivos e familiares e procura mudar a direção de um processo social capilarizado, no qual os papeis de gênero têm sido redefinidos na medida em que as mulheres estão mais presentes em diferentes tipos de ocupação na esfera pública e a dupla moral sexual é enfraquecida. O apelo ao fortalecimento da “família natural” é feito da reativação simultânea da norma heterossexual, da autoridade masculina/paternal e da domesticidade das mulheres.

Mas há um segundo sentido, que é o socioeconômico. A família é valorizada como unidade privada, sujeito não apenas de direitos (que estariam acima dos dos indivíduos, contrariando o que foi instituído pela Constituição de 1988 e pelo Código Civil de 2002) mas de responsabilidades que se ampliam justamente na medida em que o Estado delas se esquiva.

Assim, a PEC 241 é a contra-face da “defesa da família”. A ampliação das responsabilidades privadas das famílias significa, ao mesmo tempo, o aprofundamento das desigualdades entre as unidades familiares e o aprofundamento das desigualdades internas às famílias. No primeiro caso, isso se dá porque os equipamentos de Estado fazem mais falta para as que não têm recursos para substitui-los pelo que o mercado oferece – planos de saúde, creches privadas, cuidado privado para os idosos e para as pessoas doentes. Internamente às famílias, é a divisão assimétrica do trabalho entre mulheres e homens que mais uma vez emerge aprofundando as desigualdades quando “à família” – na prática, às mulheres – cabe ainda maior responsabilidade pelo cuidado e pelo desenvolvimento das crianças, pela saúde dos mais próximos e pelos atropelos cotidianos para conciliar o trabalho remunerado e o dia-a-dia das necessidades para que a vida siga, sem que as responsabilidades coletivas que temos (pela infância, pela velhice) sejam traduzidas na forma de equipamentos de Estado.

Todos os deputados que estão envolvidos na “defesa da família” votaram a favor da PEC 241. Repito: todos os deputados que estão envolvidos nas proposições em tramitação que pretendem retirar o direito à união homoafetiva, retroceder décadas restaurando o direito das famílias como entidades e proibir o debate sobre igualdade de gênero nas escolas votaram a favor da PEC 241, isto é, votaram contra o direito à educação, à saúde e à assistência de brasileiras e brasileiros.

As famílias que dizem defender são aquelas que terão escolas mais precárias para seus filhos, maiores dificuldades para conseguir vagas em creches e atendimento médico-hospitalar e que dependerão de caridade em vez de ter garantido seu direito a assistência quando algo na vida der errado, por exemplo quando tiverem na família uma pessoa com necessidades especiais.

A misoginia marcante no golpe que depôs a primeira presidenta mulher deste país, a promoção da domesticidade das mulheres e da “caridade” na figura da primeira-dama Marcela Temer, a “defesa da família” e a PEC 241 são fios de uma mesma rede na qual vidas são comprometidas na mesma medida em que os direitos sociais e a democracia brasileira são restritos. Moralização e precarização dão o tom do fim desse ciclo democrático.

*Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê.

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