Desafios para o semiárido são debatidos na Fiocruz Brasília

Além de abordar as dificuldades por que passam as regiões do semiárido brasileiro, evento promovido pela Fiocruz e Funasa reúne especialistas e apresenta experiências para superação dos desafios

Mariella Oliveira-Costa e Valéria Vasconcelos Padrão – Fiocruz

“Mudanças importantes não estão consolidadas e podem sofrer retrocesso no atual momento nacional. Forças conservadoras permanecem atuantes”. A observação foi feita por Tânia Bacelar, economista e professora aposentada da Universidade Federal de Pernambuco, durante palestra “Brasil e Nordeste: desenvolvimento recente e semiárido”, em que traçou um panorama comparativo do desenvolvimento do Brasil, do Nordeste e da região do semiárido nas últimas décadas. A palestra foi proferida no “Seminário Desafios para os Territórios Saudáveis e Sustentáveis do Semiárido”.

Desde ontem, representantes de diversos organismos federais e internacionais participam na Fiocruz Brasília de encontro promovido pela Fiocruz e Funasa que tem por objetivo  apresentar, debater e  pactuar ações integradas para saúde e sustentabilidade ambiental a serem realizadas nos estados do Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Pernambuco até 2021, por meio do projeto Territórios Saudáveis e Sustentáveis do Semiárido.

Bacelar destacou que, no início do século 21, o Brasil viveu uma experiência interessante ao articular as políticas econômicas com as políticas sociais. O resultado foi a elevação do patamar do salário mínimo, evolução da renda familiar, do emprego formal, do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) dentre outros. O impacto foi significativo em todo o país, mais ainda na Região Nordeste, especialmente, na área rural. No entanto, de acordo com a professora, a partir de 2013, o Brasil passa a sentir os efeitos da crise econômica mundial e no período recente, em 2015, a crise se aprofunda em função da convergência com crise política, levando para crise social e crise de expectativas. O momento econômico atual, segundo ela, é bom para poucos: investidores externos, agronegócio, comércio externo, sistema financeiro e rentistas (os que vivem de renda).

“A proposta de convivência com o semiárido requer aprofundamento, e o avanço da desertificação é desafiador, assim como a recuperação da biodiversidade”, destacou Tania, após citar que existem diferentes tipos de bioma no semiárido (agreste, sertão). Para ela, é fundamental conhecer e respeitar a diversidade interna.

Cícero de Paula, da Coordenação de Apoio Técnico à Gestão em Saneamento do Departamento de Engenharia de Saúde Pública da Funasa, listou alguns desafios para os Territórios Saudáveis e Sustentáveis do Semiárido: apoiar a implementação de estruturas de gestão permanentes voltadas aos sistemas rurais; garantir autonomia às comunidades  para gestão dos sistemas; reconhecer e respeitar as estruturas de organização social já existentes nas comunidades; garantir plano municipal de saneamento básico compatíveis às realidades das áreas rurais, conforme necessidades e anseios populacionais, dentre outros.

Observou que, atualmente, sete ministérios – Saúde, Trabalho, Defesa, Meio Ambiente, Cidades, Integração Nacional, Turismo e Desenvolvimento Social e Agrário, atuam nas questões de saneamento. Cícero defendeu a necessidade de se fortalecer um ente federado único como instância formuladora de políticas públicas no nível federal, e efetivamente como coordenador da política de saneamento básico, de modo a superar e minimizar a pulverização e o conflito de competências entre diversas instituições governamentais e o repasse de recursos sem aderência à política do setor.

O presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, o presidente da Funasa, Henrique Pires e o coordenador do Fórum Comunidades Tradicionais Mosaico da Bocaina, Vagner Nascimento, participaram da mesa de abertura do evento. Nascimento falou sobre a importância da participação da comunidade no desenvolvimento de tecnologias e na formulação de políticas.

Henrique Pires destacou a contradição de o Brasil ter tecnologias de ponta que produzem aviões, sondas de exploração de petróleo e ainda ter parte da população sem acesso ao saneamento básico – água tratada e esgotamento sanitário. Disse ser necessário rever “ o passar a régua” para cortes orçamentários que trata tudo e todos como se fossem iguais. “Os diferentes devem ser tratados de forma diferente”, observou.

Paulo Gadelha disse que, desde seu início, a Fiocruz teve a capacidade de pensar e se orientar pela inclusão do excluído, o que pode ser visto desde as suas expedições no começo do século 20 pelos sertões brasileiros quando expuseram para as autoridades o retrato etnográfico de um país desconhecido. Disse que no projeto em parceria com a Funasa um dos grandes desafios será “conhecer e reconhecer os ciclos da natureza, os padrões de produção – cultural e econômica- de todos os territórios onde o projeto atuará”.

Experiências

No período da tarde, três experiências de desenvolvimento dos territórios sustentáveis e saudáveis foram apresentadas para que os participantes identificassem as dimensões de cada uma delas que favoreçam a promoção da saúde e possam inspirar outras iniciativas no semiárido.

O Observatório Territórios Saudáveis e Sustentáveis da Bocaina (OTSS) busca produzir inovação em saúde com soluções territorializadas e integração entre saberes científicos e tradicionais. Parte de uma parceria entre a Fiocruz e a Funasa, com trabalho em território de indígenas, quilombolas e caiçaras na região da Serra da Bocaina, próximo a Parati, no interior do Rio de Janeiro. O OTSS busca promover o empoderamento individual e coletivo e desenvolvimento de inovações, como a cartografia social, que consiste na produção de mapas a partir da informação dada pelas próprias comunidades, reconhecendo o saber do território na construção das soluções. Há também trabalhos voltados à agroecologia, que aliam o conhecimento da tradição indígena com a abordagem científica da Embrapa e técnicas do OTSS para o plantio sustentável. “Outra iniciativa recente  do OTSS é o Jogo da Bocaina, desenvolvido com o Icict da Fiocruz, em  um mix de jogos conhecidos como War, Banco Imobiliário e RPG, em um processo lúdico de informação para a juventude,  ” afirma o coordenador do OTSS, Edmundo Gallo.

Já o  engenheiro Bernardo Aleixo, da Fiocruz Minas, apresentou o tema do acesso à água como direito humano, a partir do Programa Nacional de Saneamento Rural. Ele problematizou que apesar de o saneamento ser um direito e um fator determinante e condicionante da saúde, no Brasil ainda é concentrado nas zonas urbanas. Entre outros exemplos, apresentou ainda o caso da comunidade de Queimadas, na cidade de Cruzeiro (CE), que, junto à associação de catadores, criou soluções para que a coleta seletiva chegasse também ao meio rural. “É preciso compreender as características singulares de cada comunidade e auxiliar na proposição de soluções a partir de cada realidade”, afirmou. ”

O consultor do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), Fábio Santiago, apresentou a experiência do reuso de água cinza, aquela proveniente da pia, lavatório e outros encanamentos das casas (à exceção da água do vaso sanitário) no processo produtivo no semiárido. Segundo ele, mais de 70% da água das casas é água cinza. “Fizemos experiência de reuso com três famílias da zona rural por cinco anos. Em 2013, expandimos para 200 famílias de 14 municípios e atualmente buscamos disseminar para outros estados”, disse. A estratégia envolve o tratamento desta água para manter a fertilidade do solo, com técnicas que aliam a agroecologia, a produção irrigada em quintal produtivo e até a manutenção de  minhocário que forneça substrato para produção de mudas e hortaliças.

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