Estudantes pedem diálogo e governo responde com ameaças no debate da reforma do ensino médio

Helena Borges – The Intercept Brasil

HÁ QUEM DIGA que a reforma do ensino médio está acontecendo sem diálogo, mas não é verdade. Está havendo diálogo e vai ter muito mais. A questão é com quem. Na última semana, dia 19, foi instalada no Congresso Nacional uma Comissão Mista para discutir a polêmica medida provisória 746/2016, conhecida como proposta de reforma do ensino médio.

A MP causou rebuliço por alterar o formato do ensino médio. Entre as mudanças mais drásticas, o currículo — que atualmente se compõe em três anos comuns a todos no ensino médio regular — será dividido em ciclo básico (de um ano e meio, com matérias de todas as áreas) e ciclo de especialização. Nesta segunda etapa, o aluno escolhe entre cinco “trilhas de formação”, focadas nas seguintes áreas de conhecimento: formação técnica e profissional, linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas. Todas serão ensinadas em período integral e, no caso do ciclo técnico e profissional, por professores que não necessariamente tenham licenciatura, mas sim “notório saber” sobre o assunto ensinado.

Para debater sobre a lei, os deputados e senadores, que fizeram 568 pedidos de modificações, convidaram ilustres personas a participarem de audiências públicas,  selecionadas por serem bons emissários da sociedade para falar sobre o tema. Dos 29 convidados, apenas dois são estudantes e três representam professores ou gestores educacionais. Fundações e institutos particulares, por sua vez, têm seis representantes. Os demais são acadêmicos especializados em educação, cientistas políticos e filósofos.

Do outro lado da mesa de debate, a maioria dos congressistas que compõem a comissão são ligados ao governo atual, que propôs a medida provisória. O presidente da comissão é Izalci Lucas (PSDB-DF), o autor da lei conhecida como “Programa Escola sem Partido”. Entre outras propostas, a lei sugere que o professor “respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”.

Nota mental: no comando da discussão sobre o “escola sem partido” encontra-seo mesmo grupo que já propôs um projeto de lei que defendia a inclusão do criacionismo na grade curricular.

Em resposta à reforma, estudantes como Amanda Peixoto, 16 anos, foram para as ruas.

“Eu acho muito importante nós, jovens, estarmos lutando contra essa precarização, contra a PEC 241 que quer o congelamento de 20 anos do investimento na educação; contra o projeto de escola sem partido, que quer tirar sociologia, filosofia, quer tirar todo o senso crítico que os alunos podem desenvolver no colégio. Porque, como eu, por exemplo, eu entrei no colégio sem conhecer o mínimo de política. E foi através dessas aulas que eu passei a me inserir nesse meio da política, da militância, e eu tô aqui. E eu acho que é importante que mais jovens tenham a mesma oportunidade que eu. Que eles possam ouvir, que eles possam aprender e que eles possam escolher o lado. E espero que eles escolham o lado certo, né, o lado da educação.”

UMA VERSÃO ERRADA da MP acabou sendo publicada por engano. Essa foi a resposta emitida pelo governo no dia 22 de setembro, quando estudantes, pais e professores mostraram revolta com a retirada da obrigatoriedade das aulas de filosofia, sociologia, artes e educação física. O MEC, então, mandou avisar que não retiraria a obrigatoriedade dessas aulas. Mas, entre os calhamaços de papéis publicados pelo Senado Federal logo após a instalação da comissão especial, um sumário executivo datado do dia 27 de setembro [e, portanto, posterior a essa suposta correção do governo] explica de forma bem prática os objetivos da medida provisória: cortar ainda mais disciplinas que as quatro mencionadas acima.

Abaixo os trechos que deixam bem desenhado como vai ser [ênfases adicionados]:

“O art. 1º altera também o § 2º do mesmo art. 26 da LDB para restringir a obrigatoriedade do ensino da arte à educação infantil e ao ensino fundamental. A alteração do § 3º faz o mesmo com a educação física.”

E, mais adiante:

“Essa alteração suprime as diretrizes que o texto original da LDB trazia, incluída aí a revogação tácita da Lei nº 11.684, de 2 de junho de 2008, que inseriu a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias do ensino médio.

A lei que visava ampliar o ensino de espanhol também foi suspensa.

“O art. 13 da MPV revoga a Lei nº 11.161, de 5 de agosto de 2005, que ‘dispõe sobre o ensino da língua espanhola’.”

Afinal de contas, quem precisa de espanhol na América Latina, não é mesmo?

E esses não foram os únicos conteúdos cortados da grade.

“A nova redação desse dispositivo revoga tacitamente o art. 29 da Lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012. O texto revogado introduzia no currículo dos ensinos fundamental e médio ‘princípios da proteção e defesa civil e a educação ambiental’.

Para aqueles que querem saber mais sobre o sumário, ele está acessível online.

“A gente começou a enxergar que é proposital. Que eles não querem que eu tenha um nível superior, que eu entre numa faculdade, que eu tenha aula de informática no ensino médio. Não! Eles querem deteriorar. Quer que minha mãe se vire para pagar um curso particular de informática se eu quiser aprender. Se a minha mãe não tiver condições, eu vou ficar fodida, não vou fazer esse curso. Sendo que é uma obrigação ter isso no ensino médio, que é um ensino público, que meu pai e minha pagam, na verdade.”

APESAR DE NÃO CONVIDAR muitas entidades estudantis ao debate no Congresso, no mesmo dia em que a comissão foi instalada, o ministro da Educação, Mendonça Filho, deu a resposta do governo às manifestações dos secundaristas contra a reforma: ameaçou cancelar o Enem. Anunciou que, se até o dia 31 de outubro as manifestações em escolas ocupadas pelo país não acabarem, serão canceladas provas do Enem marcadas para acontecerem em 182 instituições ocupadas.

Utilizando a velha tática maquiavélica de divisão e conquista, o ministro coloca os estudantes contra sua própria causa e enfraquece as manifestações. Ainda disse que sua pasta não pode ficar submetida “à conveniência de uma ocupação ou desocupação pela vontade de determinado grupo” e lançou um ofício aos diretores de Institutos Federais, pedindo que eles entregassem os nomes dos alunos que estão fazendo as ocupações.

Os estudantes responderam no mesmo tom. “A gente que dá um prazo para que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241/2016 e a Medida Provisória do Ensino Médio não sejam aprovadas pelo Congresso Nacional”, disse à Agência Brasil a estudante Jacqueline Chaves, do Instituto Federal de Brasília (IFB).

Foi justamente a falta de diálogo que levou os estudantes a medidas extremas, como a ocupação das escolas. Mas não é isso que o governo, ou os especialistas acadêmicos ouvidos como referência no assunto, interpretam nas manifestações dos jovens.

“Na passeata que você viu, eles estão querendo manter isso [a atual sobrecarga de conteúdos no sistema educacional], na fala deles… e nós temos que dizer que não dá. E a única forma de diminuir é diversificar. Se todo mundo tiver que aprender tudo, qual a solução? É você colocar o que todo mundo tem que aprender lá embaixo. E aí você cria uma desigualdade. Porque os nossos filhos, nós vamos dar um jeito deles aprenderem mais.”

Não, os estudantes não querem que fique tudo como está. É o que explica o secundarista Miguel Petereit, de 18 anos. Ele foi à manifestação do dia 18, no Rio de Janeiro, e falou ao The Intercept Brasil:

“O que a gente queria também era debater sobre a educação. E não veio uma pessoa falar: o que vocês querem da escola? Só queriam tirar a gente da escola, que era para desocupar. E, meses depois, surge uma reforma, que justamente, a gente quer uma reforma, mas não essa. A gente quer uma reforma que a gente participe ativamente do que está sendo construído. E, quando chega uma reforma imposta para a gente, é nosso dever lutar contra ela. Porque a gente quer debater a reforma, a gente quer participar da reforma”.

DE VOLTA AO CONGRESSO, entre os demais convites para a comissão estão alguns remetentes são integrantes da parte técnica do Ministério da Educação (MEC) com históricos laços ao PSDB. Como a atual secretária-executiva do MEC, Maria Helena Guimarães de Castro, e a presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), Maria Inês Fini. As duas fizeram parte da equipe de educação no governo de Fernando Henrique Cardoso.

A título de exemplo, o livro “Mãos à obra, Brasil”, que reunia as propostas de governo de FHC em 1994, dizia o seguinte sobre ensino médio:

“o segundo grau é um nível estratégico do sistema educacional, por possibilitar a preparação para o mercado de trabalho, aumentando a qualificação dos jovens e as suas oportunidades de obter um bom emprego.” [ênfase adicionado]

Contraditoriamente, o parágrafo seguinte mencionava o ensino técnico da seguinte forma:

“Cabe, portanto, um remanejamento das verbas do Ministério da Educação, realocando ou criando fontes adicionais de recursos para esta finalidade [investimento no segundo grau], em lugar de ampliar a rede de escolas técnicas federais, que só poderá atender a uma minoria insignificante da população escolar.” [ênfase adicionado]

Castro também  foi o principal nome de educação na equipe que montou o programa de governo na campanha de Aécio Neves (PSDB) à presidência em 2014, que apontava entre as metas:

_ “Construção de novas diretrizes para o ensino médio”

_ “Implantação da Escola Jovem, com modelos mais leves, flexíveis e diversificados de percursos escolares no ensino médio, permitindo aos estudantes, preservada a necessidade de continuar avançando em linguagem e raciocínio matemático, escolher as áreas em que vão se aprofundar – áreas mais técnicas e científicas ou ciências sociais e humanidades, ou ainda o aprendizado prático para as profissões em parceria com o setor produtivo.”

_ “Alinhamento da oferta de cursos às características da economia de cada local e aos novos investimentos programados por empresas e governos.

Curiosamente, o número de representantes de fundações e institutos particulares convidados para a comissão que vai debater a reforma do ensino médio supera o de alunos ou professores. Serão seis no total. Cinco se destacam por serem presididos por homens brancos que desfrutam de certa familiaridade com as listas da revista Forbes, aquela que reúne os maiores bilionários do Brasil.

FALANDO EM DINHEIRO, permanece sem explicação como toda essa reforma será financeiramente viável. Afinal de contas, como equacionar o aumento da carga horária com o congelamento de gastos da Proposta de Emenda à Constituição nº 241? Se a carga horária e a variedade de aulas aumenta, os gastos também deveriam aumentar, o que vai de encontro com o congelamento do orçamento proposto na PEC.

Simon Schwartzman é sociólogo, especialista em ciência política, administração pública e educação e, também um dos principais nomes escutados pelo governo na hora de elaborar a MP do ensino médio. Foi de seus estudos que saiu boa parte do conteúdo que flexibiliza o ensino médio. E até ele tem suas dúvidas e críticas ao projeto quando o assunto é aplicabilidade econômica.

Foi o que falou ao The Intercept Brasil ao telefone:

“Eu, pessoalmente, não acho uma boa proposta a do ensino integral. Hoje, não chega a 4% a proporção de oferta integral na rede pública.

Ok, em Pernambuco é mais do que isso. E, não por coincidência, é logo o estado do ministro.

Mas você tem uma situação de restrição financeira e ainda tem a demanda do ensino fundamental. No mais, ninguém no mundo tem 7h de aula por dia no ensino médio, é tempo demais. Comparei com outros países e, de fato, o que temos hoje é pouco, podia até ir para 5h.

Foi uma decisão política, mas vão ter que confrontar com uma questão geral de restrição orçamentária.”

Suas críticas são reverberadas nas publicações oficiais da comissão. Uma nota técnica sobre a MP, feita pela consultoria de orçamentos do Senado, deveria analisar se a medida é viável economicamente. No entanto, o texto praticamente se limita a afirmar, repetidamente, que não há na MP qualquer menção ao custo de implementação da reforma do ensino médio. O sociólogo Daniel Cara,  coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, traduz a nota: “A partir do ano que vem, na prática, a reforma vai gerar uma concentração de recursos no ensino médio, tirando da educação infantil e do ensino fundamental. Vai existir uma focalização na etapa do ensino médio”.

Com essa mudança de foco, consequências drásticas poderão ser percebidas. Cara explica que, ao focar os investimentos federais nas etapas finais de educação — faculdades e ensino médio — o governo pode cair no pecado de reformas educacionais anteriores, que não trataram o problema pela raiz: a educação infantil, onde tudo começa. Essa é apenas uma das consequências imediatas da MP que está fora do debate nacional. Por esse e outros motivos, o coordenador do Campanha é contra a utilização de uma Medida Provisória como ferramenta de política educacional.

De opinião contrária a Cara, Schwartsman acha que a tomada de decisão por meio de MP foi positiva para fazer a máquina de decisões se movimentar e “colocar o problema na rua”. De fato, a comissão apenas começou o debate.

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