A religiosidade dos pobres e a esquerda. Os preconceitos intelectuais e a indisposição para aprender com o outro. Entrevista especial com Roberto Dutra Torres Junior

Patricia Fachin – IHU On-Line

A recente eleição de Crivella no Rio de Janeiro, especialmente sua popularidade nos bairros pobres da cidade, tem trazido à tona um debate sobre o modo como a esquerda, em geral, enxerga os evangélicos. Quase todos na esquerda, diz Renato Dutra à IHU On-Line, “rejeitam a adesão dos evangélicos à ‘teologia da prosperidade’ e aos ideais de autonomia e valorização do indivíduo como se isso fosse uma distorção da autêntica forma de ser e agir das classes populares”. Mas o que a esquerda não “entende”, pontua, é que “há uma combinação específica entre individualismo moral e solidariedade, caudatária da tradição pequeno-burguesa que é a principal fonte de expectativas de vida das classes mais baixas”. Ao não perceber essa relação entre individualismo e solidariedade, e “operar com a dicotomia rígida individualismo versus solidariedade, a esquerda não observa o fenômeno popular-religioso que combina as duas coisas”, afirma.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Dutra explica que esses equívocos são cometidos pela esquerda porque ela parte de “concepções insustentáveis” sobre o que é a sociedade. “A esquerda concebe a sociedade como um sistema indiviso que precisa ser transformado em sua totalidade”, quando a “sociedade é um sistema diferenciado, quebradiço”. E critica: “O sistema econômico de mercado, por exemplo, pode ser institucionalizado e concretizado de formas muito distintas: o acesso ao capital, ao crédito, à tecnologia, as relações entre trabalho e capital variam muito no espaço e no tempo, havendo uma margem de transformação que a esquerda sequer consegue enxergar quando se restringe a usar conceitos totalizadores como capitalismo”.

Roberto Dutra diz ainda que a participação em comunidades religiosas é “a maior experiência de empoderamento individual e coletivo que as classes populares das periferias de médias e grandes cidades tiveram nas últimas três décadas no Brasil”. Entretanto, comenta, o “pressuposto” dos socialistas é de que os eleitores evangélicos “deveriam ser redimidos da manipulação ideológica a que seriam submetidos nas igrejas, para assim se tornarem receptivos à mensagem moralmente superior da esquerda”. E alfineta: “A esquerda julga, por exemplo, possuir uma proposta coletiva de redenção para os pobres; só que ela está sustentada em visão equivocada, empiricamente infundada, sobre as classes populares. (…) O principal erro é achar que o sonho ‘pequeno-burguês’ de possuir um negócio próprio, de alcançar prosperidade material e de proteger sua família devem ser substituídos pelos sonhos coletivistas da esquerda”.

Roberto Dutra Torres Junior é doutor em Sociologia pela Humboldt Universität zu Berlin e mestre em Políticas Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF. Atualmente leciona no Laboratório de Gestão e Políticas Públicas – LGPP da UENF.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Considerando o resultado das eleições municipais na cidade do Rio de Janeiro, foi uma surpresa a classe mais pobre destinar seu voto para um candidato como Crivella e não para um candidato da esquerda, já que a esquerda sempre diz falar em nome dos pobres?

Roberto Dutra Torres Junior – Não, para mim não foi uma surpresa. Devemos compreender a representação política como uma construção em disputa definida no próprio sistema político. Não há nenhum vínculo necessário de representação que torne a esquerda a representante autêntica dos pobres. Na verdade, os diferentes grupos e partidos organizados disputam a prerrogativa de representar uma maioria de cidadãos que se expressa em maioria eleitoral, mas o que ocorre, nesta disputa, também é a construção desta maioria, em um processo complexo que envolve a aproximação de diferentes grupos, classes ou segmentos sociais em torno de algo comum. Maiorias e noções de bem-comum são construções da política. Para uma eleição majoritária, esta aproximação de diferentes segmentos precisa levar obviamente à constituição de uma maioria nas urnas.

Crivella não tinha esta maioria em eleições passadas, mas conseguiu construí-la nas eleições deste ano, atraindo não só quase a totalidade dos eleitores evangélicos, mas também a grande maioria dos católicos. Do ponto de vista das classes sociais, este pano de fundo religioso foi muito importante para conseguir a maioria do voto popular, mas o decisivo mesmo é a percepção do eleitor de que Crivella fala a linguagem dos pobres e compartilha seu universo de preocupações, sonhos, esperanças e projetos de vida. Ele é percebido como alguém do povo, enquanto Freixo e o PSOL foram assumindo cada vez mais um perfil de classe média universitária com pautas que passam ao largo das preocupações e do imaginário popular. Quando o eleitor das classes populares é obrigado a escolher entre um candidato que fala sua língua e vivencia seu universo e outro que se fecha no ambiente universitário de classe média, não surpreende que se sinta representado e vote em massa no primeiro.

IHU On-Line – É possível identificar quais são os fatores que fizeram com que a população votasse em Crivella? Ainda sobre essa questão, o que diferenciou o discurso de Crivella do de Freixo, de modo que o primeiro fosse mais atraente entre a população da periferia?

Roberto Dutra Torres Junior – Explicar as razões do voto é sempre algo difícil. São diferentes fatores com peso variável a depender do perfil do eleitor, da eleição e do candidato. Mas no caso desta eleição, em função da clivagem de classe social se traduzir com bastante clareza na distribuição dos votos entre Crivella e Freixo, é possível elaborar uma explicação mais abrangente. O principal fator responsável pela vitória de Crivella foi sua identificação, por parte do eleitor, como alguém que entende e vivencia de perto os problemas dos mais pobres. Isto se tornou mais fácil à medida que Freixo assumiu um perfil muito distante do povão, reduzindo a complexidade da escolha para o eleitor. Veja, por exemplo, na questão do cuidado. Freixo polarizou sua concepção de um Estado impessoal que, ao invés de ofertar cuidado, reconhece direitos, contra o que chama de “visão paternalista”, representada pela pretensão de Crivella de “cuidar das pessoas”.

Falta de cuidados X Garantia de direitos

Pesquisas sobre implementação de políticas sociais realizadas nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil mostram que as populações demandantes destas políticas possuem uma vivência concreta do Estado, corporificada no tratamento (bom ou ruim) e nas interações com os “burocratas da ponta” (policiais, assistentes sociais etc.). Para eles, um Estado que não se propõe a cuidar dos pobres não será um Estado impessoal que irá garantir seus direitos, mas sim um Estado marcado pelo desrespeito cotidiano e pela falta de cuidado com as pessoas. A noção abstrata de “ter direitos” é interpretada pelos pobres a partir da vivência cotidiana do Estado, como “bom tratamento” e “cuidado”.

Quem vive experiências cotidianas de humilhação moral espera um Estado “acolhedor” por meio de seus agentes e isto não é nenhuma peculiaridade cultural brasileira, muito menos evangélica. Quando a esquerda desqualifica a ideia de um Estado que cuida como clientelismo ou caridade, ela se esquece, por exemplo, que, entre os pentecostais e neopentecostais, as práticas assistenciais são realizadas sistematicamente até pelos mais pobres que delas se beneficiam. Não se trata de uma relação clientelista assimétrica, mas de algo que inclui a reciprocidade simétrica: quem recebe o cuidado também cuida. Ao desqualificar esta perspectiva, Freixo se distanciou enormemente do imaginário popular, contribuindo para que o fator da identificação de classe jogasse em favor de Crivella. É preciso, no entanto, ter em mente o seguinte: a identificação de classe nem sempre é tão importante para o voto; seu peso e, sobretudo, o sentido de sua influência variam muito de um caso para outro.

IHU On-Line – Mas é possível dizer que os evangélicos tiveram um grupo decisivo nas eleições? É possível caracterizar quem é esse eleitor evangélico, no sentido de identificar como ele pensa, quais são seus valores, quais são suas posições políticas?

Roberto Dutra Torres Junior – Certamente os evangélicos são um grupo decisivo, principalmente em eleições para o Legislativo. Em eleições para o Executivo a vitória de Crivella representa um marco. Não só por ter conseguido angariar quase a totalidade dos votos evangélicos em uma metrópole complexa como o Rio de Janeiro, mas também por quebrar o isolamento, obtendo votos de segmentos não evangélicos. O eleitor evangélico não existe no singular e seu comportamento político não pode ser deduzido, de forma apriorística, de sua pertença religiosa. O significado de ser evangélico para ação política de um indivíduo é construído dentro do jogo político, no horizonte das alternativas políticas reais que se apresentam.

Religião X Política

Engana-se quem pensa que eleitores evangélicos não separam religião de política; como todo eleitor, eles constroem suas decisões a partir do leque de experiências e fontes de avaliação que carregam, e mobilizam as referências religiosas para isso, variando bastante o peso da religião de um caso para o outro. Não há uma sobreposição automática entre vínculo religioso e decisão do voto. Isto é muito claro quando observamos a variação, ao longo do tempo, no voto majoritário para presidente: os pobres evangélicos, como o conjunto das classes populares, votaram em massa no PT nas eleições presidenciais de 2006 e 2010, relegando ao fator religião um lugar secundário neste comportamento. Agora isto mudou, e os pobres se distanciaram do PT.

No entanto, apesar desta variação, é possível identificar alguns elementos relativamente generalizados: a maioria dos evangélicos assume posições conservadoras com relação à liberação das drogas, legalização do aborto e igualdade civil entre pessoas do mesmo sexo biológico. Mas a maioria é contra a pena de morte. Porém, do ponto de vista da visão do Estado, a maioria apoia políticas sociais e a ideia de que cabe ao Estado cuidar da educação e da saúde. Ao contrário de lideranças como o Pastor Everaldo (PSC), os evangélicos, em sua maioria, não são neoliberais, se identificando com uma visão mais progressista das funções do Estado.

Perfil político dos evangélicos

O mais importante, porém, é o fato de que este perfil de cultura política, assim como qualquer outro, não determina o comportamento eleitoral e nem político no sentido mais amplo. Entre cultura e comportamento existem muitas variáveis construídas e definidas no próprio sistema político, sobretudo as alternativas políticas reais e as pautas temáticas que os candidatos priorizam. Quando um candidato progressista prioriza pautas de minorias que passam ao largo das preocupações reais das classes populares, evangélicas ou não, é grande a chance de que este eleitor popular assuma um perfil mais conservador do que assumiria se o assunto fosse o Estado de bem-estar social ou a economia.

O perfil político do eleitor evangélico, assim como de todo eleitor, é coproduzido pelo jogo político. Nos Estados Unidos, a maioria da classe trabalhadora pauperizada que se sentiu atraída e acabou votando em Donald Trump, o fez também porque a alternativa era uma oligarca que, ao contrário do bufão bilionário, ainda xingava este eleitor de “lixo branco deplorável”. Acredito que o eleitor carioca teve alternativas muito melhores com Freixo e Crivella, mas o perfil elitista da pauta progressista de Freixo teve efeito semelhante em ajudar na construção no perfil de comportamento do eleitor popular e evangélico. A identificação política é construída também pela diferença, pela oposição a uma alternativa colocada.

IHU On-Line – Em artigo recente, o senhor disse que “em nenhuma organização política, incluindo os coletivos de esquerda, a mulher e o homem comum têm tanto e tão rápido protagonismo quanto em uma igreja evangélica pentecostal”. Essa participação social na vida da igreja faz diferença na decisão eleitoral dos evangélicos? O que essa participação na comunidade significa para esses homens e mulheres comuns?

Roberto Dutra Torres Junior – Esta participação em organizações e comunidades religiosas é a maior experiência de empoderamento individual e coletivo que as classes populares das periferias de médias e grandes cidades tiveram nas últimas três décadas no Brasil. É muito importante perceber a combinação singular entre o individual e o coletivo que esta experiência de inclusão religiosa (e social) permite construir. As organizações religiosas pentecostais, cuja capilaridade e poder de penetração na vida material e simbólica das classes populares coloca os partidos e coletivos de esquerda em condição de quase amadorismo, são ambientes de promoção coletiva do ideal de autonomia e valorização do indivíduo. Veja a mensagem “Deus tem um projeto para a sua vida”. Este ideal está na base da cultura moderna: a concepção de “vida plena”, para todas as classes sociais, passa pela realização de projetos de vida percebidos como individuais, como decorrentes e favorecedores das capacidades que permitem agir e ser valorizado no mundo social como indivíduo.

É óbvio que a autonomia individual também é uma construção social, mas ela também é uma construção que conta com o entusiasmo e adesão do próprio indivíduo, do desempenho de sua psique, que não pode ser reduzida ao social, embora seja influenciada por ele. Eu diria que a participação nas igrejas pentecostais significa, para o homem e a mulher comum, uma possibilidade quase única de receber reconhecimento e apoio coletivo para o desenvolvimento deste ideal de autonomia individual, combinando ajuda mútua com individualidade. Evidentemente, existem problemas nesta participação, mas mesmo a mulher pobre, negra e periférica — que o discurso da esquerda pretende alcançar — consegue muito mais reconhecimento social e empoderamento individual dentro de uma igreja pentecostal, mesmo que esta vocalize uma visão de mundo machista, do que fora dela. A igreja é o espaço no qual ela encontra autoridade para pactuar regras na vida familiar, lutar contra a violência doméstica, obter um lugar para deixar o filho quando vai trabalhar etc.

Formação de lideranças evangélicas

Esta participação pode fazer muita diferença na decisão eleitoral e na própria vida política em sentido mais amplo. As igrejas podem e são frequentemente transformadas em organizações com objetivos político-eleitorais. Isto costuma ser visto apenas de forma negativa, como se fossem mera reprodução urbana do coronelismo. Não concordo com esta crítica, porque ela supõe um tipo de controle do outro que a vida urbana não permite mais. O eleitor evangélico, mesmo quando vota como deseja o pastor, não o faz pelos mesmos motivos que o colono submisso à vontade do fazendeiro e coronel. Os maiores problemas têm a ver, do meu ponto de vista, com a falta de transparência na apropriação e distribuição de recursos financeiros, já que as possibilidades de financiamento eleitoral não contabilizado são muito maiores em organizações sem nenhum ou pouco controle financeiro por parte do Estado. Mas esta participação também promove transformações muito importantes e positivas para a democracia. Além de serem um ambiente de comunicação densa e construção da opinião política, as organizações religiosas pentecostais têm cumprido a função de produzir lideranças e quadros políticos. Poucos partidos políticos no Brasil conseguiram romper com a lógica de transmissão do poder pelo vínculo familiar como mecanismo de formação de novos quadros. Apenas alguns partidos de esquerda, com destaque para o PT, conseguiram isso.

Hoje, as igrejas pentecostais formam quadros e lideranças com enraizamento social em um ritmo e capilaridade que não se vê em nenhum partido, sindicato ou movimento social. A organização como recurso político capaz de competir com outras fontes de poder como dinheiro, origem familiar e reputação ampla na mídia é hoje um recurso controlado, sobretudo pelas igrejas pentecostais. E isto também contribui para que elas sejam um ambiente de protagonismo, neste caso de protagonismo político, para as classes populares.

IHU On-Line – O senhor diz que o PSOL assumiu uma postura de superioridade moral em sua campanha eleitoral no Rio de Janeiro. Em que propriamente consiste essa superioridade moral? Como ela foi expressa no discurso da esquerda nessa eleição?

Roberto Dutra Torres Junior – Esta postura de superioridade moral está baseada na crença, quase sempre não tematizada, de se possuir uma visão mais ampla e mais universalista do que o outro, o adversário. Esta visão pode tomar diferentes fontes de referência. Podemos nos sentir superiores pela crença de que somos os autênticos cruzados contra corrupção — a visão udenista clássica, adotada pelo PT e hoje transformada no sentimento dominante de setores do judiciário (como o Ministério Público Federal) que almejam se tornarem uma espécie de poder moderador acima de tudo e de todos —, mas também pela crença de que somos os guardiões e intérpretes de uma moral superior por darmos prioridade ao tema do reconhecimento da diferença de orientação sexual, por exemplo.

Na verdade, este sentimento de superioridade moral não representa nenhum problema para a democracia desde que não se questione o direito do outro de participar do jogo político. A campanha de Freixo enveredou um pouco por este caminho ao questionar a legitimidade da candidatura de Crivella em função de um suposto “projeto obscurantista” da Igreja Universal, ignorando que qualquer projeto de poder é legítimo em uma democracia no momento em que se organiza em partido e passa pelas urnas, como é o caso dos candidatos do PRB. Mas é óbvio que isto faz parte do jogo.

Superioridade moral da esquerda X Manipulação ideológica das igrejas

O PSOL do Rio e Freixo têm demonstrado grande disposição para reconhecer estes problemas, investindo em autocrítica de um modo que o PT infelizmente não tem feito. O problema maior, para a esquerda, é quando este sentimento de superioridade moral se volta contra a maioria do eleitorado, como foi o caso da candidatura de Hillary Clinton contra os eleitores brancos de Trump que ela chamava de “lixo branco”. No caso do PSOL e da campanha de Freixo, isto aconteceu de forma menos explícita, quase inconsciente, eu diria, com relação aos eleitores evangélicos identificados com o Crivella.

O pressuposto, para os socialistas, era que estes eleitores deveriam ser redimidos da manipulação ideológica a que seriam submetidos nas igrejas, para assim se tornarem receptivos à mensagem moralmente superior da esquerda. Ou seja, eles não são reconhecidos como atores legítimos em sua visão de mundo e inserção social específicas. O problema é que se tratou da maioria dos votantes, que ignorou soberanamente a pregação de superioridade moral da esquerda e elegeu Crivella. Contra esse sentimento de superioridade moral certamente ajuda a constatação de que toda moralidade concreta é sempre mais ou menos particularista. Veja a pregação feminista da campanha de Freixo: por mais que se pense representante de todas as mulheres, ela é particular, articulando os problemas de gênero do público universitário, e isto fica claro quando despreza o valor da religião para o empoderamento da mulher pobre da favela. Na verdade, a única forma de superar os limites particularistas da visão de mundo que professa, é reconhecer a existência destes limites.

IHU On-Line – O senhor também tem dito que “a derrota parece ter alimentado o fechamento da esquerda política em torno de seus próprios preconceitos intelectuais”. Quais diria que são hoje os principais preconceitos intelectuais da esquerda?

Roberto Dutra Torres Junior – São muitos. Alguns militantes e intelectuais dizem que há exagero nesta onda recente de criticar a esquerda. Mas eu penso que o estreitamento intelectual é uma arma da direita que não deveria ser adotada nem cultivada pelos progressistas. A esquerda se tornou muito dogmática, e trata as ideias muito mais como objetos de culto do que como ferramentas para entender e transformar a realidade. Existem concepções insustentáveis, por exemplo, no campo da visão sobre a sociedade. A esquerda concebe a sociedade como um sistema indiviso que precisa ser transformado em sua totalidade, caso o ideal de transformação faça um sentido forte. Mas pesquisas empíricas e teóricas mostram que a sociedade é um sistema diferenciado, quebradiço. Pesquisas historiográficas e comparativas, no campo da história social, econômica e política, mostram que os sistemas sociais permitem muita variação e mudança na construção de suas estruturas. O sistema econômico de mercado, por exemplo, pode ser institucionalizado e concretizado de formas muito distintas: o acesso ao capital, ao crédito, à tecnologia, as relações entre trabalho e capital variam muito no espaço e no tempo, havendo uma margem de transformação que a esquerda sequer consegue enxergar quando se restringe a usar conceitos totalizadores como capitalismo.

Preconceitos políticos

Do ponto de vista político, o principal preconceito intelectual da esquerda se resume na crença partilhada pela grande maioria de dirigentes, militantes e intelectuais — seja no PSOL, no PT ou alhures — de que possuem boas definições sobre seu público, suas características, seus problemas e anseios. A esquerda julga, por exemplo, possuir uma proposta coletiva de redenção para os pobres; só que ela está sustentada em visão equivocada, empiricamente infundada, sobre as classes populares, não percebendo as formas reais de vida coletiva e individual que caracterizam a grande maioria do público que ela deseja atingir e representar. Quase todos na esquerda rejeitam, por exemplo, a adesão dos evangélicos à “teologia da prosperidade” e aos ideais de autonomia e valorização do indivíduo como se isso fosse uma distorção da autêntica forma de ser e agir das classes populares. Não entendem que há uma combinação específica entre individualismo moral e solidariedade, caudatária da tradição pequeno-burguesa que é a principal fonte de expectativas de vida das classes mais baixas. Ao operar com a dicotomia rígida individualismo versus solidariedade, a esquerda não observa o fenômeno popular-religioso que combina as duas coisas.

No limite, os preconceitos intelectuais da esquerda têm a ver com a indisposição para aprender com o outro. Em uma situação de crise do campo progressista como esta, ouço muita gente dizer que é hora da esquerda resistir e afirmar sua identidade, se apegando aos seus valores e não se deixando confundir com o outro. Acho que deveria ocorrer o contrário. A esquerda deve se abrir para o outro, se reinventar. Disso depende não menos que sua existência enquanto ator político relevante.

IHU On-Line – Quais são as dificuldades do progressismo em se comunicar com os eleitores evangélicos e de entender o próprio universo religioso em geral?

Roberto Dutra Torres Junior – A principal dificuldade é o desconhecimento intelectual e prático contra a religiosidade dos pobres. A esquerda não concebe a possibilidade de que as igrejas pentecostais sejam espaços legítimos para articular os problemas, sonhos e projetos de vida das pessoas que ele deseja representar. A esquerda precisa de uma “virada etnográfica”: estranhar a si mesma para tentar se familiarizar com o outro — o evangélico pentecostal — e assim construir uma linguagem e um programa que sejam capazes de conectá-la ao homem e à mulher comum que percebem na religião um sistema social indispensável para suas vidas.

Precisa romper com sua antipatia contra os evangélicos, buscando mais pastores e menos universitários para seus quadros partidários e abrindo mão de impor critérios sectários de correção política e moral. Um pastor evangélico filiado ao PSOL é ainda obrigado a adotar a linguagem universitária sobre minorias que o partido lhe impõe, sendo visto como um ponto para levar às igrejas os ideais do partido, e não como um ator que vai trazer ao partido o que ele ainda não tem.

IHU On-Line – A esquerda ainda tem um discurso muito baseado em estereótipos, como no do “pequeno-burguês”, que o senhor menciona em seu artigo? Acerca de quais aspectos a esquerda erra em seu discurso e em sua análise da realidade?

Roberto Dutra Torres Junior – Neste caso, o principal erro é achar que o sonho “pequeno-burguês” de possuir um negócio próprio, de alcançar prosperidade material e de proteger sua família, devem ser substituídos pelos sonhos coletivistas da esquerda. A esquerda ignora a possibilidade de construir um sentido transformador para este sonho, que combine projeto coletivo com o valor da autonomia individual. Historicamente, os que se identificam com o “sonho pequeno-burguês” foram declarados inimigos da esquerda, como se tivessem um DNA conservador. O principal erro é não ver que a identificação política destes setores é construída no próprio jogo político, não havendo um perfil reacionário como destino político inexorável para os projetos de vida “pequeno-burgueses”.

A experiência social-democrata da Suécia, utilizada quase que como “referência transcendental” pela esquerda identificada com o que Roberto Mangabeira Unger chama de “projeto da Suécia tropical”, foi criada e sustentada por décadas tendo por base uma coalizão de interesses entre operariado industrial e pequena-burguesia rural. É exceção? Sim, mas em um país como o nosso, em que a grande maioria se identifica com o “sonho pequeno-burguês”, esta coalizão excepcional deveria ser o grande objetivo político, pelo menos se a construção de uma maioria popular ainda for o objetivo dos progressistas.

IHU On-Line – O senhor defende que “para se distanciar dos estereótipos que naturalizou para interpretar a forma de ser e agir dos pobres evangélicos, a esquerda precisa se ‘perder e se achar’ no universo pentecostal”. O que isso significa? Como os progressistas deveriam compreender os evangélicos pentecostais e neopentecostais?

Roberto Dutra Torres Junior – Deveriam compreender os evangélicos como um público popular, plural, cuja religiosidade não predetermina uma posição política conservadora, ou seja, como um grupo com uma orientação política em disputa, em construção.

IHU On-Line – O senhor defende que a esquerda “deveria disputar o sentido político de valores como a autonomia individual, como o liberalismo popular”, porque valores como esse, segundo sua avaliação, “possuem muito mais apelo transformador entre os pobres do que ideias abstratas do século XIX como socialismo e comunismo”. Pode nos explicar essa ideia? Essa aposta não mudaria radicalmente a proposta teórica da esquerda?

Roberto Dutra Torres Junior – O ideário da esquerda deveria ser aberto a transformações e ela deveria beber de múltiplas fontes teóricas. Isto não significa capitular ao espírito do tempo, mas sim manter-se à altura da complexidade social que caracteriza a vida moderna, com suas contingências e mudanças que exigem atualização de muitos de nossos conceitos e abordagens. A tradição marxista deve ser confrontada com outras vertentes, como o liberalismo progressista de um Stuart Mill, por exemplo, ou com a proposta teórica e política de Mangabeira Unger, para mencionar outro pensador que aposta na atualização do potencial transformador do liberalismo político. Marx, que sempre esteve identificado com os ideais liberais de autonomia individual, promoveu uma crítica da visão de sociedade do liberalismo conversador de sua época, mas sabia que os ideais de emancipação do indivíduo de todo tipo de jugo era o que movia não só a luta dos trabalhadores, mas também a própria crítica social da esquerda. Marx não era um coletivista. O comunismo previa a liberação do potencial de cada ser humano em ser um “produtor autônomo”. A inserção fabril do fordismo deu tonalidade coletivista a este projeto, mas a grande maioria dos pobres que sonha com emancipação econômica e social, inclusive no Brasil, nunca esteve sequer incluída no fordismo. Para estes trabalhadores, faz muito mais sentido pensar a justiça social como sendo a possibilidade de inserção produtiva em sentido mais amplo, como empreendedor por exemplo, do que como uma relação justa no âmbito mais estrito do mercado de trabalho.

A esquerda e o imaginário liberal

Uma alternativa de esquerda disposta a incluir o imaginário liberal das classes populares precisaria articular não apenas o problema da igualdade de oportunidades, já que nem todo pobre tem chance efetiva de ser um “empreendedor”, mas também a questão estrutural e programática de reorganizar a economia e as oportunidades de se tornar um produtor. O apelo transformador desta visão liberal que vem de baixo, disto que chamo de “liberalismo popular”, reside no fato de a expectativa de se tornar agente econômico autônomo (ter o próprio negócio) — ao contrário de apenas assalariado com direitos — tocar no cerne da relação de poder mais importante do capitalismo: o controle do capital. Quem deseja ser assalariado com direitos (o programa difuso da esquerda para a inclusão na economia) almeja uma condição de vida melhor e estável, mas já se desfez do sonho mais exigente de autonomia econômica, que reside em transcender a situação de assalariado para a de proprietário e controlador de capital. Não era a democratização radical do acesso e do controle do capital que queria Marx com o fim da propriedade privada, projetando o fim da forma privada do capital, mas não a extinção de sua forma em riqueza socialmente acumulada e desfrutada?

Como lembra Mangabeira Unger, socialistas e liberais do século XIX pregavam, cada um a seu modo, que a autonomia econômica (expressa na ideia-força de trabalho livre) dependia da superação da relação de assalariamento, visto que esta relação seria apenas parcialmente livre. Os progressistas do século XX, na medida em que foram abandonando a expectativa de transformação radical das estruturas do sistema econômico, foram aceitando a inclusão assalariada como único horizonte possível de autonomia econômica, mesmo que isto seja uma realidade cada vez menos acessível à grande maioria das pessoas. O potencial transformador que vejo no “liberalismo popular”, a elaboração econômica do ideal mais amplo de autonomia individual, é a possibilidade de ele servir de base para uma crítica radical das estruturas vigentes do sistema econômico moderno no Brasil. Revigorado como crítica ao privilégio e à monopolização do poder econômico e político em uma linguagem política que priorize o sonho de autonomia individual, coletivamente construído e sustentado nas famílias e nas igrejas populares, o programa da esquerda encontraria na mentalidade e no sentimento popular terreno mais fértil do que encontra quando se orienta por ideias coletivistas como as que ainda vagamente professa.

Somente um discurso político que busque enraizamento cultural no culto popular à autonomia do indivíduo, percebida como algo inserido em contextos mais fechados ou mais amplos de interdependência, ajuda e solidariedade, pode mobilizar os sentidos de transformação disponíveis no imaginário popular. A democratização do crédito produtivo, a reorientação e reorganização do sistema financeiro, por exemplo, são temas nos quais a crítica à desigualdade econômica poderia se encontrar com o imaginário “liberal popular”, na medida em que o acesso a diferentes formas de capital fosse politizado da perspectiva de que homem comum e seu “sonho empreendedor” também contam como atores capazes de gerar riqueza individual e social. Afinal, se o liberalismo diz que pobre pode ser empreendedor, então alguém pode completar: então dê a ele parte do que é destinado aos banqueiros e à grande burguesia como um todo. Isto certamente exige reorientação teórica da esquerda. Mas, para ser fiel ao compromisso de transformar o mundo em prol da elevação do padrão e do sentido de vida da maioria de homens e mulheres comuns, a esquerda deve estar aberta às ferramentas conceituais de que precisa para esta tarefa. Defender identidade e tradição teórica é suicídio em momento de tão grave calamidade.

IHU On-Line – Como devemos entender a teologia da prosperidade? Que efeito e significado ela tem entre os evangélicos pentecostais e neopentecostais?

Roberto Dutra Torres Junior – A teologia da prosperidade está baseada na ideia de que Deus, ao enviar seu filho para livrar o mundo e os homens do mal, haveria criado as condições para que seus filhos tenham direito e acesso a tudo que há de bom sobre a terra. É uma teologia que não nega o valor da vida no além, mas enfatiza e de certo modo sacraliza a vida neste mundo. É verdade que ela funciona com uma visão afirmadora e legitimadora do capitalismo, ao atribuir valor aos bens e projetos de vida ligados ao consumo e à prosperidade econômica. Quando ela funciona exclusivamente como uma “teodiceia da felicidade”, negando valor sagrado ao sofrimento e pregando que a presença de Deus se mostra no sucesso, ela contribui inclusive para naturalizar a exclusão social: aquele excluído pode ser visto como alguém distante de Deus e sua tragédia como resultado de sua própria incompetência religiosa em buscar a prosperidade. Mas a teologia da prosperidade não se reduz a isto.

Primeiro, porque, na prática, o conceito de prosperidade não é percebido como ligado unicamente à dimensão econômica, sendo associado também ao convívio familiar, à plenitude espiritual, com o efeito de elevar as pretensões e expectativas das pessoas — sobretudo dos mais pobres e já destituídos de grandes pretensões e expectativas na vida — a nível que não seria atingido sem a força social da religião que diz: “Deus tem um projeto para sua vida”.

Segundo, porque o sentido real da busca pela prosperidade envolve, muitas vezes, relações de solidariedade mediadas pela própria igreja, promovendo, portanto, a transcendência dos vínculos de empatia primária da esfera familiar. Não se pode tomar um sentido unívoco, atribuído a esta concepção teológica pelos estudiosos de teologia com base em seu conteúdo sistematizado em livros e documentos, como sendo sempre o sentido real que vai orientar as práticas dos evangélicos cujas igrejas aderem ao ideal de prosperidade neste mundo como algo pertencente ao domínio do sagrado. Como ensinava Weber, o sentido social real das ideias religiosas não é o sentido livresco que recebem por sistematizadores e intérpretes, mas sim o sentido prático que recebe dos agentes religiosos. E este varia muito mais do que podemos encontrar nas sistematizações unificadoras.

IHU On-Line – Com a eleição de Crivella, que rearticulação política pode-se esperar no Rio de Janeiro, seja em relação à atuação dos evangélicos na política, seja em relação à articulação da esquerda?

Roberto Dutra Torres Junior – No mundo social, não se pode prever, mas se pode identificar possibilidades que se tornam mais prováveis com o desenrolar dos eventos. Com a eleição de Crivella, me parece que a chance de surgir um projeto político propriamente evangélico unificado para o país aumenta. Mas é só uma possibilidade, já que não há unidade nacional deste segmento. Houve unidade local na eleição carioca, mas nada garante que vá se ampliar para o nível federal. Me parece que a derrota de Freixo aumenta também o sentimento de que a esquerda precisa de unidade. Mas pode ficar apenas no sentimento.

IHU On-Line – Algum candidato que tem apoio dos evangélicos poderia se destacar nas eleições de 2018?

Roberto Dutra Torres Junior – Pode, mas se depender só do fator religião não terá chances. Não consigo imaginar, diante do quadro sociológico existente, como o tema exclusivo da religião poderia alavancar e eleger um presidente da República no Brasil. Crivella só foi eleito porque conseguiu extrapolar os limites do que o voto evangélico pode ofertar em termos eleitorais, conquistando o apoio de católicos, por exemplo. Para ser realmente competitiva em nível nacional, a abertura temática de um candidato evangélico teria que ser tão ampla que ele não poderia mais ser chamado de candidato evangélico.

IHU On-Line – Como as suas críticas à esquerda e ao modo como ela se relaciona com os evangélicos estão repercutindo na própria esquerda? Como foi seu encontro com grupos do PSOL na semana passada, quando trataram dessas questões?

Roberto Dutra Torres Junior – Nas oportunidades que tive de conversar, constatei boa disposição em levar a crítica a sério. Existe disposição para o diálogo e para a crítica em muitos setores do PSOL, como há em muitos do PT. Mas há ainda muito sectarismo, alimentado pelo sentimento de superioridade moral de que falo.

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