A ação de um Defensor Público em defesa dos Caiçaras da Enseada da Baleia, SP

Tania Pacheco

No dia 7 de fevereiro de 2015, o catamarã de passeios turísticos mantido pela Prefeitura de Ilha Comprida, São Paulo, decidiu fazer uma parada extraordinária na praia onde vive a Comunidade Caiçara da Enseada da Baleia. Embora o local não fizesse parte de sua rota, julgou-se no direito a levar seus passageiros até o território da comunidade, mas não só: ignorou igualmente tratar-se de área sujeita a erosão, controlada com cuidado por contenções feitas pelos caiçaras ao longo dos anos.  O resultado?

Conseguiu atracar após algumas tentativas e usando para isso a potência máxima do motor.  Com sua inconsequência, ofereceu aos turistas o espetáculo extra da contenção destruída, do terreno cedendo mais de 20 metros, de casas e construções desabando, ante a angústia da comunidade que lutava por salvar seus pertences. Nem mesmo uma árvore centenária, parte da história local, sobreviveu.

Ante as reclamações dos caiçaras, que contavam com o testemunho até mesmo de turistas, denúncias em reportagens em jornais locais e, ainda, o apoio da Defensoria Pública, a Prefeitura reconheceu sua responsabilidade. Reconheceu mas fincou pé. Apesar de chamado pelo jornal O Estado de São Paulo de “o novo-rico do pré-sal do litoral de São Paulo” (em dez anos, a arrecadação de royalties subiu acima de 5.000%, saltando de R$ 11 mil para mais de R$ 46 milhões em 2015), o município decidiu que só pagaria o devido à comunidade após decisão judicial.

Não interessava se os moradores ficaram sem teto. Se estão desde então morando “de favor” e perderam igualmente a renda extra que conseguiam alugando cômodos a turistas. Também não era problema a perda dos espaços coletivos, da casa de limpeza dos peixes ao único restaurante, usado também para reuniões, e ao bar/mercearia também único. Nem mesmo os pequenos comerciantes que tiveram seus negócios derrubados e não têm mais como trabalhar sensibilizaram a Prefeitura. As reuniões de sucederam, e o poder municipal permaneceu desumana e abjetamente inflexível, durante quase dois anos.

Agora, após inúmeras reuniões e tentativas de resolver a questão extra-judicialmente sem que qualquer alteração fosse produzida na situação de desespero da comunidade, a Defensoria Pública de São Paulo entrou com uma Ação Civil Pública contra o município. Pede que a Prefeitura seja condenada a pagar aos moradores prejudicados R$ 166.607,00 por danos emergentes e R$ 193.442,00 por lucros cessantes. Outros R$ 360.000,00 devem ser pagos à Comunidade Caiçara da Enseada da Baleia, representada pela Associação dos Moradores, por danos morais coletivos. Deverá ainda ser realizada Perícia para apurar o montante referente aos danos consequentes da destruição do bar/mercearia, que desmoronou dias após a visita do perito oficial e por isso não pode ser calculado nesse primeiro momento.

A ACP tem a assinatura de um Defensor Público que já foi protagonista de várias matérias neste blog, envolvendo quilombolas e outras comunidades tradicionais do Vale do Ribeira: Andrew Toshio Hayama. Nesta, ele pede ainda à Justiça algo que para alguns talvez possa parecer inusitado:

“a condenação do Município de Ilha Comprida para que reconheça a responsabilidade pela devastação socioambiental causada na Comunidade Caiçara da Enseada da Baleia, em ‘Pedido Formal de Desculpas’, devendo publicar nota neste sentido em jornal regional de maior circulação por 04 vezes, transmiti-la por rádio local durante 01 mês e postar o conteúdo da nota em sítios oficiais do Município, mantendo-a, neste último caso, enquanto a reparação não for totalmente concluída”.

E não só: “a condenação do Município de Ilha Comprida em realizar ‘Pedido Formal de Desculpas’, em ato a ser cumprido pelo(a) Prefeito(a) na própria Comunidade Caiçara da Enseada da Baleia”.

Ao todo, cinco imóveis foram diretamente afetados. Cinco imóveis de uma comunidade cuja importância para muitos está bem caracterizado pelo total descaso com que foi tratada pelas autoridades municipais. Qual o sentido, então, de a Defensoria Pública querer exigir essa formalização de um pedido de desculpas a ser cumprido pelo Prefeito frente à frente com a comunidade?

Para a Prefeitura, ele poderá ser entendido como uma exorbitância, um pedido descabido. Para os caiçaras, talvez essa venha a ser a principal consequência da Ação, no que diz respeito ao reconhecimento de seus direitos, à sua cidadania, à sua autoestima, inclusive. Para quem acompanha a carreira de Toshio, nada mais coerente que demonstrar, uma vez mais, o profundo respeito com que cuida daqueles que são objeto da própria razão de ser da Defensoria Pública: prestar assistência jurídica gratuita aos “vulneráveis”. Ou aos ‘vulnerabilizados’, prefiro dizer.

Os Caiçaras na ACP de Andrew Toshio Hayama

Desde 2012, pelo menos, este blog acompanha a atuação de Andrew Toshio Hayama no Vale do Ribeira, pela Defensoria Pública de São Paulo. Lemos e divulgamos diversas ACPs por ele propostas. Na maioria, paralelo a um cuidadoso levantamento histórico das comunidades e de seus direitos, há um uso quase sempre literário e às vezes até poético da linguagem, convivendo harmonicamente com as citações legais. Constituem peças primorosas, que podem ser lidas com prazer, além de ajudar na fundamentação de outras ações envolvendo comunidades tradicionais. No final deste texto citaremos algumas delas, inclusive.

Desta vez, entretanto, a ficção e a poesia foram sacrificadas pelo pedido de urgência; a literatura permaneceu através de textos de Antonio Carlos Diegues e Manuela Carneiro Leão sobre as comunidades caiçaras. Eles ajudam a entender o cenário no qual se desenvolve a história dessa comunidade em especial. Através dela, tomamos conhecimento de como a comunidade se formou, desde o tempo dos primeiros “Malaquias”, e como, ao longo dos anos, foi perdendo seus direitos. Perdendo, não! Vendo-os serem subtraídos pelo não cumprimento das leis.

É assim que acompanhamos os Caiçaras da Enseada da Baleia desde os tempos do comércio de peixe seco, exportado para o Japão até 1956 e da subsistência posteriormente obtida depois através da venda do pescado em Iguape, transportado em barco a remo. O caos mesmo viria a partir de 1962, com a criação do Parque Estadual da Ilha do Cardoso (Decreto Estadual nº 40.319, em 03 de julho de 1962), ilegal desde a sua delimitação inicial, sobreposta a uma área da União. Mas não só: o governo de São Paulo tinha igual conhecimento da existência de comunidades tradicionais em seu interior desde a primeira metade do século 19. Diz a ACP:

“Como o Relatório Antropológico encomendado pela própria Fundação Florestal [do Estado de São Paulo] atesta, a exemplo de vários outros casos de Unidades de Conservação, havia uma quantidade considerável de moradores na Ilha do Cardoso, em sua absoluta maioria, famílias que já ocupavam o lugar há, pelo menos, dois séculos, constituindo um grupo populacional denominado caiçara’”.7

A criação da unidade de conservação (UC) levou a diversos cerceamentos. Segundo Toshio, “a proibição da agricultura tradicional provavelmente foi a medida que provocou o maior impacto negativo na vida das comunidades da Ilha do Cardoso e certamente foi motivo determinante para o exílio dos caiçaras de seu território ancestral rumo às periferias das cidades desestruturadas do Vale do Ribeira. (…) o estudo antropológico listou a existência de 46 sítios na Ilha do Cardoso desde o período colonial, quase todos extintos após a criação do Parque na década de 1960 em função da vedação da lavoura. (…) Mais que segurança alimentar, a roça tradicional significava trabalho digno e decente, socialização, exercício cultural, troca de experiência e transmissão de conhecimento e saberes.”

Os Caiçaras plantavam arroz, feijão, melancia, abóbora, mandioca, cará, batata doce, cana. Como uma velha moradora cita, a respeito de seu pai, no Relatório Antropológico,”Ele enchia a canoa com esses produtos e ia vendê-los em Cananéia”. É ela ainda que sintetiza: “ninguém passava fome, não tinha falta de nada”.

A partir de 1980, a situação se agudizou: o estado continua a atuar contra a comunidade, agora com o fechamento das escolas. As autoridades forçavam assim uma nova migração. “Ainda hoje, famílias caiçaras de Itacuruça/Pereirinha não recebem sequer barco-escola do poder público para a curta travessia de apenas 08 km até a cidade de Cananeia”, escreve Toshio. Além disso, casas eventualmente desabadas não podiam ser consertadas ou reerguidas, na ‘unidade de conservação’.

A ACP se vale do relatório antropológico para identificar duas fases na Ilha do Cardoso, antes e depois da criação do Parque Estadual: “o tempo da fartura” e o “tempo da perseguição”, marcada inclusive pela desarticulação das relações sociais entre os Caiçaras:

“Um primeiro aspecto que chama a nossa atenção, nessa drástica passagem do ‘tempo da fartura do sítio’ para o ‘tempo da perseguição’ é a desarticulação de relações sociais que se constituíam em reciprocidade e em solidariedade. Sem o trabalho agrícola, já não havia mais os mutirões e nem a alegria do fandango. Conseqüentemente, as relações de território, parentesco e vizinhança perderam o significado de antes. Afinal, o que é a terra para um lavrador que não pode cultivá-la? Essa desarticulação da rede de relações sociais que recobria a área da ilha e entornos, traduziu-se em desunião: ‘por quê o meu vizinho pode fazer roça, se eu não posso?’; ‘por quê o meu vizinho pode tirar madeira para fazer canoa, se eu não posso?’; ‘por quê meu vizinho pode matar uma caça, se eu não posso?’ Onde antes havia a obrigação de ‘dar, receber, retribuir’, passou a haver uma enxurrada de denúncias, as quais atraíam a presença constante do guarda florestal, e resultavam em inúmeras multas por atos infracionais que abrangiam todas as suas atividades cotidianas. Mesmo quando não há violência explícita, proibir o cultivo da terra de onde a família obtém o sustento há várias gerações, já se constitui em violência. E também em triste ironia, quando é preciso trabalhar escondido. Entre populações tradicionais, existe uma ética do trabalho. Obtivemos depoimentos nos quais as pessoas se orgulham de pais muito trabalhadores, que saíam para suas roças antes do nascer do sol, e voltavam à casa após o pôr do sol”.

Ainda citando o Relatório Antropológico, a ACP aponta que “curiosamente, o mesmo Estado e a mesma política ambientalista que, de um lado, sufocavam e oprimiam injustamente comunidades tradicionais que viviam relação simbiótica ou pelo menos funcional com a biodiversidade da Ilha do Cardoso, de outro promoviam lamentável episódio de ataque irresponsável ao meio ambiente”:

“Voltando à questão da implantação do Parque, em 1972, no Pereirinha, ocorreu um evento que também foi traumatizante para os moradores desse sítio. Separando Pereirinha e Itacuruçá, existe o rio Perequê. Próximo a esse rio, havia uma lagoa, na qual, dizem os moradores, tinha tudo, peixe, tinha muito jacaré, tinha pássaros na beira do rio, da lagoa. Nesse lugar havia roças de moradores. Ao contrário do que houve nos sítios da face leste da ilha, onde as roças foram proibidas desde a implantação do PEIC, na face voltada para o mar, foi possível plantar por mais tempo. O Pereirinha foi escolhido para a construção do Centro de Pesquisas de Recursos Naturais da Ilha do Cardoso, o CEPARNIC. De repente, começaram a chegar operários e máquinas. Um trator avançou sobre as roças, destruindo-as sob os olhares perplexos das famílias que ali moravam. A lagoa foi aterrada com a areia dragada do rio Perequê. E foi preciso uma quantidade enorme de areia para aterrar a lagoa. Não importou que o rio tivesse o seu curso desviado, e nem a profunda modificação no habitat de jacarés e peixes. Um grande e irreversível estrago em nome da ‘preservação da natureza’ e da pesquisa científica. Sobre a lagoa aterrada, foi construída parte das instalações do CEPARNIC, que conta com alojamentos, refeitório e casas de funcionários, entre outras instalações. No entanto, os moradores, que já haviam perdido suas roças, não podiam sequer pescar no rio o peixinho do almoço ou do jantar. Para fornecer energia elétrica às instalações do CEPARNIC, foi construída uma usina hidrelétrica no rio Perequê. Todo o grandioso empreendimento serviu para que a usina, após a inauguração, funcionasse apenas vinte e cinco minutos, e nada mais. O volume de água desse rio não é suficiente para o funcionamento de uma usina hidrelétrica. Ainda hoje, cerca de quarenta anos depois, os equipamentos todos continuam lá, peças enormes de ferro abandonadas na mata, sendo lentamente corroídas pela ferrugem”.

A ACP prossegue situando-nos a respeito do Plano de Manejo concebido por São Paulo para os moradores da Ilha do Cardoso, atualmente em revisão, antes de adentrar a parte propriamente jurídica, mas não temos como continuar a comentá-la. E nem isso teria muito sentido, na medida em que pretendemos mesmo é socializá-la, oferecendo-a para ser lida e baixada a partir dAQUI.

Antes de encerrar, entretanto, vale lembrarmos que o exemplo da Enseada da Baleia não é isolado. Na ACP, aliás, Andrew Toshio Hayama aponta que fatos como esse se repetem Brasil afora. Como ele diz,

“Para além da fragilidade do mito e do autoritarismo das práticas preservacionistas /conservacionistas, a política ambiental no Brasil importou o modelo estadunidense, incompatível com os trópicos e com a nossa realidade, em que grande parte da biodiversidade convive harmonicamente com a sociodiversidade de comunidades tradicionais que ocupam e protegem territórios ancestralmente, como indígenas, quilombolas e caiçaras.

O suposto conflito entre meio ambiente e direitos étnico-culturais, apesar de não ter consistência e sustentação, existe e precisa ser denunciado e combatido.

(…)

O conflito decorrente da sobreposição de unidades de conservação em territórios tradicionais é fruto de um grande e longo mal entendido. Não há, na prática, incompatibilidade entre a presença de comunidades tradicionais e a tutela da biodiversidade; não há conflito entre o direito de reconhecimento étnico/cultural/territorial e a preservação ambiental. Não se trata de mera casualidade ou coincidência, apontará Boaventura de Souza Santos, que 80% da biodiversidade estejam nas mãos e nos territórios de comunidades tradicionais e camponesas.

A natureza, para estas comunidades, não é recurso, mas faz parte da existência. As populações tradicionais não só admiram ou convivem com a biodiversidade, mas são parte integrante deste universo, composto, dirá Antonio Carlos Diegues, por “conjunto de seres vivos que tem um valor de uso e um valor simbólico, integrado numa complexa cosmologia.”

E a verdade é que, infelizmente, nem sempre povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais podem contar com defensores como ele e com juízes que respeitem o direito e as leis, a começar pela própria Constituição.

Finalmente, listo abaixo algumas outras das ações de Toshio que foram objeto de matérias neste blog, algumas em conjunto com o também Defensor Público Thiago de Luna Cury:

Foto que retrata a área de contenção, a casa de limpeza de peixe e a casa de Jaqueline, de cor azul, antes do desastre socioambiental causado pelo Catamarã de Ilha Comprida no dia 07 de fevereiro de 2015.

Destaque: Foto cedida pela comunidade depois do acidente, que mostra, no lado direito, o bar/mercearia antes de ruir.

 

Comments (3)

  1. Pedido de desculpas, sim e, indenização por perdas e danos, também. Afinal, como resultado de uma ação irresponsável do poder público, a comunidade caiçara perdeu bens, condições de trabalho e terras – cabe ressarcimento, é claro.

  2. Para nós, do Vale do Ribeira, poder contar com um defensor como o Andrew Toshio Hayama, sensível e competente, fortalece ainda mais a luta diária dessa população, especialmente das populações tradicionais! Há uma campanha para arrecadação de recursos para a construção da Nova Enseada, visto que não há nenhum tipo de recurso previsto para isso. Podem ser feitas doações em dinheiro, em material e em força de trabalho! Para mais informações, visitem a página da campanha: http://www.facebook.com/ajudeanovaenseada. Viva a Enseada da Baleia! Viva o Vale do Ribeira!

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

9 + 16 =