Cárcere feminino: mecanismo de docilização de mulheres “desviantes”

Por Thais Lemos Duarte e Fernanda Machado Givisiez, no Justificando

As mulheres são basicamente esquecidas nas rotinas do universo prisional, apesar de os dados indicarem um processo de superencarceramento feminino nos últimos anos. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), entre 2000 e 2014, o aumento da população prisional feminina foi de 567,4%, ao passo que a média do crescimento dos homens foi de 220,2%[1]. É fundamental um debate qualificado sobre o desencarceramento dessas mulheres, urgindo a criação de políticas neste sentido. Por outro lado, a proposta deste texto é realizar uma análise sobre o aprisionamento feminino no Brasil.

Pouco se debate gênero no sistema penal. Em geral, quando são formuladas políticas penais às mulheres presas, quase sempre são desenvolvidas ações destinadas às grávidas e lactantes. De fato, esse grupo de mulheres realmente precisa receber muita atenção do Sistema de Justiça Criminal, até mesmo porque, as ações destinadas a elas costumam ser limitadas, senão ilegais. Em 2015, em uma unidade prisional do Rio de Janeiro, por exemplo, uma presa, com nove meses de gravidez, foi colocada em uma cela de isolamento e teve seu bebê no local sem qualquer assistência. Do mesmo modo, é comum as presas darem à luz algemadas, sendo que o Senado Federal aprovou recentemente uma proposta de lei proibindo tal prática. Vale apontar que a lei, inclusive, possibilita que gestantes e mães de crianças de até 12 anos cumpram prisão domiciliar, o que raramente é adotado pelo Sistema de Justiça Criminal.

Por outro lado, as ações penais destinadas às presas não devem se restringir à questão da maternidade. O debate sobre gênero é muito mais amplo, sendo necessário o cuidado em não restringir a mulher ao mero papel maternal. Caso contrário, podem ser reproduzidos padrões comportamentais tradicionais em que a mulher é reduzida ao papel de mãe e, assim, destinada ao cuidado do outro, devendo ficar circunscrita tão somente à vida doméstica.

As prisões femininas costumam ser meras adaptações de antigos estabelecimentos voltados aos presos.

Geralmente, tais locais foram desativados por não possuírem mais condições de funcionamento. Diante da perspectiva equivocada de se criar mais vagas no universo prisional pelo processo de superencarceramento feminino, o Estado apenas reabre uma antiga unidade, sem realizar reformas estruturais. Com isso, boa parte das prisões femininas apresenta péssimas condições físicas, acarretando situações de aprisionamento altamente degradantes, senão torturantes.

As paredes e muros dos estabelecimentos para mulheres, bem como os uniformes destinados a elas costumam apresentar cor rosa ou outro tom pastel, estimulando e indicando como “adequado” um comportamento dócil. Além disso, as prisões de mulheres são mais asseadas se comparadas com as masculinas. A crítica a isto tem relação ao fato de a administração prisional punir disciplinarmente as presas que não possuem suas celas limpas, o que não acontece com os homens presos, reforçando a ideia de que as mulheres devem ser “caprichosas” e sempre aptas a desenvolver atividades domésticas, de limpeza da casa.

De igual forma, as opções de trabalho, bem como os cursos profissionalizantes destinados às privadas de liberdade reforçam a perspectiva de que as mulheres devem desenvolver atividades profissionais que seriam nada mais do que uma espécie de projeção das tarefas típicas da vida doméstica, voltadas ao cuidado do outro e da manutenção do lar. Portanto, em muitas unidades são desenvolvidos cursos e oferecidos trabalhos de corte e costura, beleza e artesanato. Geralmente não é disponibilizada qualquer possibilidade profissional de acordo com os interesses das mulheres, dificultando a criação de planos de vida mais emancipatórios, distantes de papeis de gênero tradicionais.

Dentre algumas atividades de lazer propiciadas às mulheres pela administração prisional, comumente são desenvolvidos concursos de beleza e desfiles de moda. Ano passado, em Minas Gerais, por exemplo, houve um concurso chamado “Miss Prisional”, em que um grupo de presas se apresentou em trajes casuais e de gala para um corpo de jurados[6], alguns pertencentes à própria administração carcerária. Em geral, ganham estes concursos as presas com meios financeiros para manter o padrão de beleza dominante, ou seja, aquelas com cabelos bem cortados e arrumados, unhas feitas, corpo magro e esbelto, roupas “da moda” etc. Assim, para além de asseadas, dóceis e dispostas a realizar atividades domésticas, há a imposição de um padrão de que as presas devem ser “lindas”.

Por outro lado, apesar destas exigências, os órgãos do Estado não oferecem materiais de higiene essenciais às mulheres, como absorventes íntimos, shampoo etc., nem fornece atenção à saúde adequada. Poucas são as presas atendidas regularmente por um ginecologista e outros profissionais de saúde. E, se não recebem visitas, as mulheres estão à mercê do comércio desenvolvido na unidade de privação de liberdade ou da generosidade de outras colegas privadas de liberdade.

Contudo, apesar de apresentarem dependência de suas famílias, as mulheres são praticamente esquecidas durante a privação de liberdade, sobretudo, por seus companheiros. A mulher toma para si a tarefa de fornecer apoio emocional abundante ao membro da sua família encarcerado, deslocando determinadas atividades típicas da vida doméstica aos ambientes das prisões[2]. Por sua vez, a mulher deixa de receber visitas de sua família, especificamente, de seu companheiro, no momento em que é condenada a privação de liberdade. Desse modo, o homem não assume a tarefa de zelar e cuidar de sua companheira presa. Essas tarefas são percebidas como tipicamente femininas.

Essa falta de apoio familiar durante o encarceramento denota, entre outros aspectos, uma espécie de punição social da mulher por seu “mau comportamento”, por ter cometido um crime. No imaginário social dominante, espera-se que a mulher seja obediente, comprometida com o mundo doméstico, linda e sempre disposta ao outro. Ao não cumprir essas tarefas, isto é, ao desviar de seu papel tradicional, há todo um empenho social em docilizá-la. É possível dizer, assim, que ao cometer um crime, a mulher é duplamente penalizada, pois ela estaria rompendo tanto com a lei penal quanto com um código social.

Nesse contexto, para além de punir a mulher pelo crime cometido, a prisão seria em grande medida um mecanismo destinado à adequação das mulheres ao seu papel socialmente atribuído. O cárcere teria, assim, a função de transformar a mulher “desviante” em um ser dócil, pacato, destinado ao cuidado do outro e voltado ao mundo doméstico. O cárcere, então, não só reforça como perpetua as desigualdades de gênero típicas do meio social.

Thais Lemos Duarte é socióloga e perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e Fernanda Machado Givisiez é Bacharel em Direito e perita do MNPCT.

** Este artigo reflete opiniões pessoais e não as do órgão a que as autoras estão filiadas.

[1] DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Levantamento Nacional de informações penitenciárias. INFOPEN – Junho de 2014. Brasília: Ministério da Justiça, 2014.

[2] SILVESTRE, Giane. Dias de visita: uma sociologia da punição e das prisões. São Paulo: Alameda, 2012.

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