Sobre o visível e invisível, por Lilia Schwarcz

Fotografias, pinturas, gravuras, desenhos têm a capacidade de fixar e de transformar em estereótipo parado no tempo, o que nada tem de óbvio ou estável. Fazem mais: escondem o ruído e passam a sensação de que tudo está em seu lugar e onde há de sempre estar

No Nexo

Muitas vezes, fotos estampadas nos jornais são até mais violentas quando não pretendem ser. Em alguns casos, é justamente a pretensa “naturalidade” dessas imagens  que acaba  revelando a violência da situação. Em outros, é a invisibilidade que deixa evidente a carga de humilhações presente nessas representações visuais.

Cena 1. A invisibilidade de nossa população encarcerada e as cuecas.

Começo lembrando de uma foto que muita gente olhou, mas também não viu. Não consigo esquecer de um registro visual que, na minha opinião, representa o panorama carcerário que vivenciamos no país. A violência das insurreições, os requintes nas formas de assassinato, as péssimas declarações do ministro da Justiça, a reforma conservadora proposta pelo governo, o silêncio constrangedor do presidente; tudo junto, resulta num retrato alarmante. São muitos os  textos que analisaram a situação, bem como as imagens veiculadas na mídia. Mas gostaria de refletir sobre uma foto em particular.

Sob um sol escaldante, prisioneiros, cujas faces não podemos ver, carregam seus colegas mortos. A carga é pesada e eles, com sua pouca roupa, vergam seus corpos e trazem os pés descalços ou apenas protegidos por frágeis sandálias. Suas vestes são poucas; só não estão nus, pois usam cuecas – sempre de mesmo formato e com um elástico idêntico –, o que apenas comprova como a vestimenta faz parte do exíguo uniforme usado pelos presos da penitenciária de Manaus.

Choca ainda mais o que o fotógrafo não teve a intenção direta de mostrar. Nossos olhos procuram por algum detalhe nos corpos dos prisioneiros que jazem inertes – cobertos por um saco preto. Já aqueles que os carregam estão quase camuflados, por conta das nossas políticas de representação visual que não conferem o estatuto de pessoas a eles. São mesmo invisíveis. São somente presos; nesse caso, sobreviventes de um “massacre interno”. Tão “selvagens”, conforme declaração de um funcionário da penitenciária, como os cadáveres que levam aos ombros.

Não consegui desviar o olhar desses “meros carregadores de corpos”, que não mereceram qualquer legenda. A justificativa é que seria preciso protegê-los, não revelando seus nomes. Pode até ser correto. Mas quem sabe, se perguntássemos às famílias, mantidas apartadas pelo muro de proteção e sem notícias, – suas mães, pais, esposas, namoradas, namorados, companheiros, filhos e filhas – quem sabe elas optariam por reconhecer seus parentes na imagem do jornal. Pelo menos teriam a certeza de que eles continuam (e por hora) vivos.

O resultado é que, na fotografia que apareceu estampada na capa dos principais jornais do país, os vivos são tão anônimos como seus colegas mortos. No limite, sua situação, assim exposta, é igualmente humilhante. Ninguém vê; não há quem reclame da falta de nominação; muito menos da pouca roupa. Cuecas, nesse caso, não parecem seguir a convenção; não podem ser definidas como “roupas íntimas”. São “públicas” para aqueles que há muito perderam tal noção que separa, cartesianamente, o que é direito da ordem pública, e o que pertence à esfera do privado.

Aqui temos um exemplo, retumbante, do que significa estar e viver no anonimato e padecer da mais absoluta invisibilidade.

Cena 2. O teatro da identidade usa fantasia de gari.

Mas há outra foto que circulou muito nesse começo de ano. Nela, a situação exposta parece ser simetricamente oposta. Na hora de tomar posse, João Doria, o novo prefeito de São Paulo, ladeado por sua equipe técnica, optou por protagonizar um show no mínimo inesperado. Todos eles compareceram ao ritual usando uniformes de funcionários reconhecidos por seus baixos salários, mas que são muito numerosos nas ruas e no cotidiano das cidades: os garis da limpeza.

Novamente, o jogo encenado opõe políticas de identificação a políticas da falta dela. Usando uma “fantasia” de varredores de rua, e mostrando um sorriso amarelo em seus rostos, os políticos introduziram um ruído na representação. Em vez da celebração, estava estampado o constrangimento. Se o marketing político tinha como objetivo apresentar uma gestão igualitária, o resultado  deixou muito a desejar. Roupas utilizadas por garis ficam logo sujas e cobertas de manchas; consequência da obrigação maior desses profissionais: lidar com, eliminar ou diminuir a sujeira que invade as metrópoles brasileiras. Já nosso prefeito e seus colegas portavam uniformes imaculadamente limpos, bem passados, sem qualquer vinco ou sinal que trouxesse desconforto ao teatro do poder ali montado.

Mas há outro aspecto que vale a pena anotar. Para nós, consumidores de imagens, o ideal é usar as fotografias como espelhos daquilo que previamente sabemos ou queremos encontrar. Nesse caso, portanto, é aconselhável que esse tipo de trabalho, devotado à limpeza das áreas públicas, seja executado com esmero, sim, mas sem que implique qualquer contato mais direto com essa profissão e atividade. O bom mesmo é que eles sejam transparentes. Tamanho descompasso entre a intenção da foto e os motivos de sua realização tornaram a cena engraçada, para alguns; de mau gosto, para outros (dentre os quais me incluo).

O historiador Robert Darnton certa vez explicou que a boa piada é feita da inversão de pressupostos. E havia muita “graça” (sem graça) na performance que nossos políticos tentavam aplicar. Afinal, tratava-se de “encenar”, naquele exato momento, um novo começo. E como dizia o crítico literário Edward Said, um começo “é o primeiro passo na produção intencional de um novo sentido”.

POR TRÁS DESSAS FOTOS, QUE NOS ASSALTAM A CADA DIA, RESIDE UMA RETÓRICA VISUAL PERVERSA E DESIGUAL QUE JOGA COM O ANONIMATO DE UM LADO, A CELEBRIDADE DE OUTRO

Mas qual seria, afinal, o sentido dessa inauguração? A filosofia de que, uma nova gestão, que se apresenta como “eficaz” e adota uma “lógica empresarial”, é capaz de ocupar qualquer espaço e lugar; até mesmo aqueles executados pelos postos mais baixos da hierarquia salarial da prefeitura, e que conformam um exército de anônimos.

De perto, dizia a rainha dos franceses, “ninguém é normal”. Isso antes de ser guilhotinada. Talvez por isso, certos políticos tenham sido flagrados com expressões de desconforto. Como num passe de mágica, ali estavam – e numa situação transitória, bem claro – aqueles que “podiam” vestir-se com trajes diferentes dos que usam cotidianamente, e assim manipular convenções, que não as suas. A eles – que carregam nome, sobrenome e posição – não é difícil se dar ao luxo de portar uniformes que em geral produzem o efeito contrário; tornam opacos, quando não invisíveis, os que precisam conviver com esse tipo de profissão.

Se aquele ato servia para que a população memorizasse “quem era quem” na lista dos novos políticos da cidade, o subterfúgio brincava com o que a mensagem não conseguia esconder. Não havia realidade alguma naquela cena; apenas performance passageira de inversão. A alegria estampada no rosto do prefeito era denunciada, nos detalhes, pelas falácias da operação e a artificialidade do jogo. Aliás, não se viu qualquer gari contracenar na foto ou tomar parte do evento de inauguração.

Esses são discursos imagéticos e da representação visual; manipulações do dia a dia e dessa sociedade em que se multiplicam as possibilidades de olhar e não ver. Fotografias, pinturas, gravuras, desenhos têm a capacidade de fixar e de transformar em estereótipo parado no tempo, o que nada tem de óbvio ou estável. Fazem mais: escondem o ruído e passam a sensação de que tudo está em seu lugar e onde há de sempre estar.

Por trás dessas fotos, que nos assaltam a cada dia, reside uma retórica visual perversa e desigual que joga com o anonimato de um lado, a celebridade de outro. Carregam nomes aqueles que julgamos merecer tal condição; perdem o nome aqueles que acreditamos que carecem de identificação.

Aí está uma política antiga, herdeira dos tempos da escravidão, quando o jesuíta Antonil dizia que “os escravos eram as mãos e os pés do Brasil”. De tão arraigada, a prática gerou entre nós um preconceito severo em relação ao trabalho braçal. Criou também um grande mal-estar, resolvido na base da invisibilidade social.

“Ninguém vê com olhos livres”, dizia o antropólogo Franz Boas. “Os olhos que veem [afirmava ele] são as lentes da tradição”. Olhar não é uma capacidade apenas natural. Só enxergamos o que nossa miopia cultural, que é também social, admite registrar. Ver ou não ver, eis a questão. Ou então: “em terra de cego quem tem um olho é rei”.

Lilia Moritz Schwarcz é professora da USP e Global Scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças”, “As barbas do imperador”, “O sol do Brasil” e “Brasil: uma biografia”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil” e “Histórias Mestiças”. Atualmente é curadora adjunta do Masp.

Destaque: “Nu”, Edvard Munch.

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