Dois Destinos: Encruzilhada brasileira

Inspirado no livro de Milton Hatoum, o Estado de Minas vai ao epicentro da crise prisional para mostrar como a história real de dois irmãos e da Manaus do passado e de hoje simbolizam a mais sangrenta encruzilhada brasileira

Reportagem especial de Renan Damasceno, no EM

Manaus – Símbolo do apogeu econômico do Brasil no início do século passado, impulsionada pelo Ciclo da Borracha, Manaus é hoje um retrato da encruzilhada entre a civilização e a barbárie na qual o país afundou. A calamidade do sistema prisional brasileiro, alimentada pela ausência do Estado, a superlotação das celas e as ramificações cada vez maiores do crime organizado, expôs uma crise sem precedentes, com mais de 130 mortos nas três primeiras semanas do ano em todo o país, sendo 64 somente na capital do Amazonas.

A partir da história dos irmãos Renato e Kauã, contada pela mãe deles, Fátima, e inspirado pelo romance Dois irmãos, do manauara Milton Hatoum, levado à TV nas últimas duas semanas em minissérie dirigida por Luiz Fernando Carvalho, o Estado de Minas mostra o porquê de Manaus ter se tornado o epicentro da explosão de violência no sistema carcerário brasileiro.

Renato, condenado por roubo, foi morto aos 22 anos na chacina que deixou 56 mortos no Complexo Prisional Anísio Jobim (Compaj), no primeiro dia do ano. Kauã, de 6, guarda as esperanças da mãe de um futuro diferente e próspero para a família na capital amazonense, uma metrópole de mais de 2 milhões de habitantes, população sete vezes maior do que há 50 anos, e que cresceu floresta adentro, sem planejamento. Dois irmãos. Dois destinos.

“A destruição dos centros históricos, a favelização das cidades, tudo faz parte da nossa barbárie. Aconteceu com São Paulo, certamente ocorreu com Belo Horizonte. Em menor ou maior grau, aconteceu em todas as grandes cidades brasileiras”, afirma o escritor Milton Hatoum, em entrevista ao EM para este especial.

Durante uma semana, os repórteres Alexandre Guzanshe, Fred Bottrel e Renan Damasceno percorreram bairros de Manaus para ouvir parentes de detentos mortos, moradores, juristas, geógrafos e sociólogos e entender a origem e as consequências da violência que se espalha pelos presídios brasileiros e ameaça todos nós. Dentro e fora das grades.

Laços de sangue

Na Manaus do livro de Milton Hatoum, a desigualdade de afeto separou os gêmeos Omar e Yaqub. Na Manaus de hoje, a brutalidade dividiu os caminhos de Renato e Kauã

Com um graveto, Kauã, de 6 anos, rabisca a terra entre túmulos de madeira, flores artificiais e embalagens de vela, enquanto dona Raimunda, de 76, e a filha Fátima, de 41, cantam incelências pela alma de Renato Maciel do Nascimento, de 22. É manhã de terça-feira na ala 32 do Cemitério Parque Tarumã, Zona Oeste de Manaus (AM). Em terreno desnivelado, atrás de um campo de futebol e à beira da mata, foi enterrada ali, em covas rasas, a maior parte das 56 vítimas da chacina do Complexo Prisional Anísio Jobim (Compaj), no primeiro dia do ano. O massacre, motivado por briga de facções, foi o estopim da crise penitenciária que se alastrou pelo Brasil.

As preces de Raimunda são cortadas pelas repreensões de Fátima ao filho caçula. Kauã tinha pouco mais de 1 ano quando seu irmão, Renato, então com 18, saiu com duas amigas, menores de idade, em uma moto. Eram 9h30 de 11 de setembro de 2012. Armado com um revólver, ele desceu da moto, em rua movimentada do Bairro São José, na Região Leste, e rendeu o taxista José Carlos Crespo de Assunção, que, ao reagir, foi baleado no pescoço.

Renato confessou o crime. O taxista morreu uma semana depois. O garoto, que havia acabado de completar a maioridade, foi condenado a 20 anos de prisão, mas, como era réu primário, havia a expectativa de ir para o semiaberto em maio deste ano. Em 1º de janeiro, foi assassinado.

“Quando olho para meus filhos dentro de casa, não acredito no que aconteceu. Aí vou para o celular, olho as fotos e começo a chorar”, conta Fátima, mãe de cinco filhos. “O Kauã, era o único que visitava o Renato, então, sentiu mais. Ontem mesmo ele disse: ‘Mãe, eu queria saber onde meu irmão está, mataram meu irmão’. Ele fica com isso na cabeça”.

DESTINO INCERTO

O corpo de Renato foi um dos primeiros a chegar ao Instituto Médico-Legal (IML), mas um dos últimos a sair, segundo Fátima. Passaram-se nove dias da rebelião até a confirmação da morte. Esse período foi um périplo entre IML, Defensoria Pública e a porta do presídio em busca de informações – situação semelhante à de dezenas de mães, muitas até hoje sem saber o paradeiro dos filhos, uma vez que 144 estão em uma lista de foragidos do presídio durante a rebelião.

Renato entrou na lista dos mortos no dia 9, a certidão de óbito consta dia 6, mas na cruz de madeira feita à mão pela avó a data da matança: “1º/1/2017”. Na certidão de óbito, consta que morreu por falta de sangue depois de ferimento no abdômen, possivelmente por facada.

“Fiquei procurando ele. Depois de oito dias, fiz a ficha com as tatuagens e características físicas. No dia 9, eles me ligaram confirmando. Eu ainda tinha esperança. Se ele tivesse fugido, estava vivo”, conta a mãe. “Penso que, a qualquer hora, ele pode me ligar, chegar na minha casa.” A busca sem sucesso por informações sucedeu ao massacre. Como boa parte dos mortos foram decapitados ou mutilados, o IML precisou recorrer a exames de DNA para identificar alguns corpos.

“Foi um trabalho pericial bastante difícil. Os corpos chegaram aqui com sinais de brutalidade que jamais havíamos visto em tal escala”, conta a diretora do IML de Manaus, Maria Margareth Vidal.

Quatro corpos ainda ocupam as gavetas do IML: três resgatados na mata ao lado da Compaj sete dias depois da rebelião, já em estado de putrefação, e um quarto, de um morador de rua. Se não forem reclamados, em 30 dias serão enterrados como indigentes.

Kauã. Foto: Alexandre Guzanshe

Futuro esmagado pela realidade: Do Acre para a capital amazonense, a família Maciel migrou atraída pela criação da Zona Franca. Como centenas de outras, ficaram confinadas à margem do crescimento

A mudança da família Maciel para Manaus é um retrato da migração que culminou em um crescimento desordenado da capital amazonense, que quase quadruplicou de tamanho entre 1960 (175 mil habitantes) e 1980 (642 mil). Essa expansão impulsionada pela criação da Zona Franca de Manaus, em 1967, foi o que atraiu famílias do interior do Amazonas, de estados limítrofes e do Nordeste. Com isso, a cidade avançou sobre a floresta, rumo ao norte.

Com oito filhos, dona Raimunda saiu de Cruzeiro do Sul, no Acre, para acompanhar o marido na busca por melhor emprego em Manaus, no início dos anos 1970. Eles se instalaram na Região Leste. Hoje, mora em uma casa simples, de cimento grosso no chão e paredes com tijolos à mostra, no Bairro São José 3. Em uma cadeira de balanço, reza diante de um altar improvisado pela alma do neto morto e pede conforto à filha, que mora a poucas quadras dali.

Da lista de endereços de presos mortos à qual o Estado de Minas teve acesso, a maioria das 56 vítimas do massacre do primeiro dia do ano são das regiões Norte e Leste da capital amazonense, que concentram 900 mil habitantes, quase a metade dos pouco mais de 2 milhões de moradores de Manaus. São bairros de expansão desordenada, em ribanceira, muitas vezes com esgoto a céu aberto, com casebres entre a mata nativa.

INTUIÇÃO DE MÃE

Renato cresceu na Zona Leste, considerada uma das mais vulneráveis da cidade. Durante a adolescência, cometeu oito atos infracionais que o levaram a ter diversas passagens pela polícia. “Percebi que o Renato ia para esse lado quando ele tinha 13 anos. Fui para uma reunião na escola e a diretora me disse que ele nunca havia entrado no colégio, jogava o caderno por cima do muro e saía”, relembra a mãe.

“Quando o Renato nasceu, sonhava que ele seria de bem. Em casa ele era carinhoso, fazia comida, lavava roupa”, comenta Fátima, enquanto olha para Kauã, que brinca na horta da casa da avó com um gatinho recém-nascido. “Agora, sonho muita coisa boa para ele”, diz, apontando para o garoto. “Ele fala que nunca quer sair de perto de mim. Eu sonho que ele seja médico, advogado, mas ele diz que, sem o Renato, é ele quem vai cuidar de mim até eu ficar velhinha”.

CORTEJO DE LAMENTOS E ESPERANÇA

A violência crescente nas ruas de Manaus fez a família de um dos mortos da chacina no dia 1º se mudar para o interior do Pará. Na manhã da última quarta-feira, a casa em um bairro da Região Leste exibia placa de aluga-se no portão. Enquanto o padrasto da vítima consertava os últimos detalhes da fiação elétrica para entregar o imóvel, a mãe ficava com olhos marejados ao falar da morte do filho e da mudança de endereço. Eles não quiseram gravar entrevistas e pediram para ter a identidade preservada.

Essa mistura de medo e incerteza ronda outras famílias de detentos assassinados ou que ainda estão no Complexo Prisional Anísio Jobim ou na Cadeia Pública Desembargador Raimundo Vidal Pessoa, construída em 1907 e fonte de inspiração para o escritor manauara Milton Hatoum no romance Dois irmãos. O prédio histórico no Centro da capital precisou ser reativado para receber 286 presos, que devem permanecer lá por três meses, segundo a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas. Em frente à cadeia, mães e esposas permanecem em vigília, na calçada, à espera de informações.

O mesmo ocorre no quilômetro 8 da BR-174, que vai de Manaus à Venezuela. O acesso ao Compaj, composto também pelo Instituto Penal Antônio Trindade (Ipat), está fechado desde o dia do massacre e é protegido pela Força Nacional. Com isso, os familiares fazem fila na entrada do ramal para entregar o “rancho” aos familiares: nome dado à sacola de mantimentos e produtos de higiene pessoal que pode ser enviada aos detentos. Desde o massacre, a revista é rigorosa e poucos itens são aceitos.

Duas irmãs: Chamada de Paris dos Trópicos no fim do século 19, Manaus agora se divide entre a lembrança da riqueza do Ciclo da Borracha e a realidade de crescimento desordenado

Os casarões da belle époque tropical abandonados, com árvores retorcidas saindo pela janela, formam uma imagem sintomática da capital amazonense, que inicia o século 21 em situação inversa ao glamour do século passado, quando experimentou duas expansões econômicas e, no romance Dois irmãos, serviu de cenário para a família de Zara e Halim prosperar em meio às desavenças entre os gêmeos Omar e Yaqub. O Ciclo da Borracha, de 1870 ao começo do século 20, e a criação da Zona Franca de Manaus em 1967 são a sombra dos tempos de desenvolvimento.

O sociólogo Renan Freitas Pinto, autor de Viagem das ideias, uma reflexão sobre a formação do pensamento social da Amazônia comenta as mudanças.

Em pouco mais de meio século, Manaus saltou de 175 mil habitantes, em 1960, para cerca de 2 milhões, em 2015, segundo o IBGE. Estimativas indicam que a cidade tem hoje mais de 2 milhões de moradores – mais da metade da população total do Amazonas (4 milhões). Tal crescimento se deu pela migração da população do interior do estado, de Roraima, do Acre e da região do Vale dos Tapajós, no Pará, sobretudo depois do fechamento dos garimpos da região, nos anos 1980.

O resultado dessa ocupação foi um crescimento desordenado rumo aos bairros ao norte da cidade, que hoje, juntamente com a Zona Leste, têm quase a metade da população de Manaus – e índices altos de violência.

O resultado dessa ocupação foi um crescimento desordenado rumo aos bairros ao Norte da cidade, que hoje, juntamente com a Zona Leste, têm quase a metade da população de Manaus – e índices altos de violência. “Se a gente for identificar essas vítimas (da chacina nas prisões), muitas são migrantes ou são filhos de pessoas que migraram do interior para a capital”, explica o geógrafo José Aldemir de Oliveira, professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). “Nós temos um estado com mais de 50% da população morando em Manaus e isso tem consequência”, conta.

RAÍZES DA DESIGUALDADE

Para José Aldemir, a origem dos problemas sociais recentes de Manaus vai muito além da correlação simples com a implantação do polo industrial.

Foto: Alexandre Guzanshe.

Embora parte das edificações históricas, público e privadas, apresentem sinais claros de má conservação, Manaus ainda revela sua pujança em belezas arquitetônicas que lhe renderam o apelido de Paris dos Trópicos, no fim do século 19. O Teatro Amazonas, erguido em 1876, e o entorno do Largo de São Sebastião estão impecáveis. Mas quanto mais se afasta do Centro, maior o choque com a realidade da nova Manaus, com vielas e ruas irregulares engolindo a mata nativa, bairros superpopulosos e esgoto escorrendo em ribeirões, passando ao lado de casas de madeira. Por boa parte dos bairros que a reportagem percorreu esse cenário se repetiu.

Desigualdade, entretanto, está longe de ser um fenômeno novo em Manaus, conta José Aldemir.

EFEITO COLATERAL

Em Manaus, o crescimento da população tem sido acompanhado por um índice alarmante. O número de homicídios por armas de fogo na cidade cresceu 231% entre 2004 e 2014: de 189 para 627 por 100 mil habitantes. No Mapa da Violência 2016, ocupa a 16ª posição. A Zona Franca de Manaus funcionou a todo vapor durante os anos 1970 e 1980, mas a automação da linha de produção, terceirização e crises econômicas afetaram o distrito industrial nas décadas seguintes. Para o sociólogo Renan Freitas Pinto, o fechamento de postos de trabalhos teve como efeito colateral o aumento da informalidade e de subempregos.

“Esse acontecimento (a chacina no presídio) não foi fortuito, não ocorre uma história assim por acaso. Isso tem raízes na forma com que se produz o espaço urbano na Amazônia, tem a ver com as políticas públicas colocadas para o estado”, afirma o geógrafo José Aldemir.

Guerra declarada: Massacre comandado por integrantes da facção Família do Norte, terceira maior organização criminosa do país, expôs descontrole do poder público dentro dos presídios do país

Não é raro, ao andar pelas principais vias de Manaus, encontrar pichações com as iniciais FDN, relativas à facção Família do Norte, organização que nasceu há pouco mais de uma década e hoje é citada como a terceira maior do país, atrás do Comando Vermelho (CV) e do Primeiro Comando da Capital (PCC). Em 1º de janeiro, integrantes da FDN deflagraram a rebelião e partiram para cima de pessoas supostamente ligadas ao PCC, culminando na morte de 56 pessoas em 17 horas.

“Dos mortos, apenas três eram da FDN”, explica o advogado Epitácio Almeida, da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-AM), um dos primeiros a entrar no Compaj depois do massacre. “Mas já era algo que se desenhava há algum tempo e, infelizmente, aconteceu em nosso estado.”

Segundo a primeira parte da Operação La Muralla, da Polícia Federal, em novembro de 2015, a FDN tem braços no Norte, Nordeste e em outros quatro países: Venezuela, Colômbia, Peru e Bolívia. A região da Tríplice Fronteira, aliás, é uma das principais portas para a entrada de drogas no Brasil, a partir do escoamento pelo Rio Solimões.

SEM CONTROLE

A expansão do tráfico de drogas e a briga entre facções tem levado medo às ruas de Manaus. Em julho do ano passado, em um episódio conhecido como Fim de Semana Sangrento, houve 38 homicídios nas ruas, de pessoas supostamente ligadas a grupos criminosos. Ao longo dos últimos anos, a FDN expandiu sua atuação para o Nordeste – as inscrições da facção, por exemplo, estão nos muros de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, cujo o estado ainda não retomou o controle desde o início do motim.

“Em Manaus são 11 mil presos, apenas 1,5 mil estão condenados. Gira em torno de 75% o número de presos de provisórias, muitos em razão do tráfico de drogas”, conta Epitácio. “O índice de reincidência aqui gira em torno de 77%, por que os presos que saem, não encontram oportunidades, e voltam para o mundo do crime.”

Em menor ou maior grau, o massacre que eclodiu em Manaus pela batalha entre facções foi o estopim para uma crise sem precedentes no sistema prisional brasileiro. Nas duas primeiras semanas do ano, pelas estatísticas oficiais, foram 133 mortes em presídios em oito estados do país. Em 1992, 111 pessoas morreram no massacre do Carandiru, em São Paulo.

COMÉRCIO MACABRO

FDN x PCC, o massacre. Esse é o título do DVD, embrulhado em plástico e com capa impressa em baixa qualidade, vendido em bancas de Manaus. É uma compilação de imagens atrozes que circularam em redes sociais desde o dia 1º, quando o motim que durou quase 17 horas deixou 56 mortos em Manaus.

As cenas, filmadas em celulares dos próprios detentos e que foram distribuídas via WhatsApp, mostram os detalhes da matança, caracterizada por decapitações e mutilações dos detentos. Os DVDs esgotaram em muitas bancas do Centro e são mais facilmente encontrados em bairros de atuação da FDN, como o Bairro da Compensa, na Zona Oeste.

Muitos vendedores, ao serem questionados, desconversaram. “Isso você vai encontrar lá na Zona Leste”, afirmaram alguns comerciantes da região central. A compilação, de poucos minutos, reúne imagens de Manaus e do massacre na Colônia Agrícola de Boa Vista, que terminou com 33 mortes, no último dia 6.

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No centro da violência

Ex-campeão brasileiro de jiu-jitsu, juiz que negociou o fim da rebelião em presídio dacapital amazonense se esquiva de críticas e ataca cultura brasileira de aprisionamento

Em uma sala decorada com fotos de presídios históricos, como Alcatraz e Pensilvânia, diplomas, escudo de futebol e cartazes de filmes e séries – de Carandiru a Oz –, está a mesa do juiz que está no olho do furacão desde que estourou a crise prisional em Manaus: Luis Carlos Honório de Valois Coelho, de 49 anos, da Vara de Execuções Penais, responsável pela negociação que deu fim à rebelião no Complexo Prisional Anísio Jobim (Compaj), na madrugada de 2 de janeiro. Ele estava em casa, por volta das 22h, quando o secretário de Segurança Pública do Estado, Sérgio Fontes, foi buscá-lo, pessoalmente, uma vez que os detentos só aceitavam conversar com o juiz.

Valois é um ex-campeão brasileiro de jiu-jitsu, que coleciona vitórias sobre lutadores da família Grace, e muito admirado no meio acadêmico, convidado para lecionar em universidades do Brasil e do exterior. O respeito que ele adquiriu entre os detentos em 17 anos à frente da vara responsável por acompanhar o cumprimento das penas é alvo de elogios e críticas ferozes: enquanto uma ala defende sua conduta e produção acadêmica que ataca a cultura do aprisionamento e critica a política antidrogas do Brasil, outra o acusa de ser “queridinho e protetor de bandidos.”

As críticas a Valois aumentaram depois que seu nome foi citado em uma conversa entre uma advogada e um dos líderes da Facção do Norte (FDN), que afirma que, se necessário, os presos fariam um abaixo assinado para manter o juiz à frente da VEP, diante da pressão sofrida por Valois. O diálogo foi revelado pela Operação La Muralla 2, da Polícia Federal, em junho do ano passado.
POLÍTICA ANTIDROGAS

Valois é autor de O direito penal da guerra às drogas, resultado de uma tese de doutorado de mais de 700 páginas defendida na faculdade de Direito da USP.

Acordo para agilizar indenização

O governo do Amazonas vai buscar um acordo extrajudicial com as famílias dos 64 detentos mortos em três penitenciárias de Manaus na primeira semana do ano – sendo 56 apenas na chacina do dia 1º, no Compaj. Conforme apurou a reportagem, a medida seria para dar maior celeridade ao pagamento de indenizações, uma vez que os trâmites na Justiça poderiam se arrastar por anos.

“O estado sabe que, pelas decisões mais recentes, é difícil que escape de uma penalização. Então, está estudando a forma de pagamento administrativo, sem constituir processo”, afirmou ao Estado de Minas o defensor público geral do Amazonas, Rafael Barbosa. “Esses valores vão variar de acordo com a família. Vamos observar individualmente para estabelecer a indenização”, conta.

Desde 2 de janeiro, a Defensoria Pública recebe parentes das vítimas da chacina, que necessitavam de assistência jurídica e psicossocial. Foi criada uma central de trabalhos para tratar exclusivamente da questão das indenizações. As famílias foram chamadas à Defensoria para entrevistas. “Além disso, criamos várias ações para tornar este processo menos traumático”, explica Rafael.

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Milton Hatoum: “O Brasil é um romance da desilusão”

Como nasce a Manaus da sua infância, no começo dos anos 1960?

A Manaus da minha infância, da minha primeira juventude, era a Manaus do projeto que originou a cidade, do fim do século 19, que contemplava a natureza. A cidade, entre 1890 a 1915, que corresponde ao auge do Ciclo da Borracha, era uma cidade que vivia em harmonia com a natureza. Era um projeto que contemplava os rios, os igarapés, havia praças belíssimas. E havia, claro, bolsões de misérias. A Manaus que conheci na minha infância era uma cidade um pouco mais escondida que essa original, com alguns bairros humildes, como o Bairro dos Educandos, que criaram um educandário para pessoas pobres. Nesses bairros havia uma população pobre, mas muito longe de ser essa Manaus de hoje.

Como era a infraestrutura da cidade nesta época?

Frequentei igarapés, balneários públicos, nenhum era poluído. A cidade nos anos 1960 tinha em torno de 250 mil habitantes. Com a Zona Franca, que foi criada pelo Castelo Branco em um decreto de 1967, a partir dos anos 1970 e, sobretudo, em 1980, várias indústrias de eletroeletrônicos começaram a se instalar em Manaus. O comércio deu um salto, a cidade se tornou uma espécie de bazar de importados.

E qual o impacto desse movimento na estrutura urbana?

Houve um processo de destruição sistemática e rápida do Centro Histórico. Não houve nenhum planejamento para a cidade. Houve um crescimento abrupto por causa da imigração interna. Brasileiros do Pará, interior do Amazonas, do Nordeste e do Brasil todo foram para Manaus, em busca de emprego na Zona Franca.

Como ocorreu essa ocupação populacional e qual foi o impacto na relação com a natureza?

As pessoas chegavam e ainda chegam, até hoje, e constroem barracos, ocupam a cidade, a periferia. E a periferia era floresta, que foi queimada. Não é culpa das pessoas: elas querem sobreviver, querem emprego. Mas não houve nenhum planejamento nesse meio século. Euclides da Cunha percebeu isso em 1904, quando disse que era um crescimento à gandaia. O Brasil é isso: um crescimento à gandaia.

Qual o perfil atual dessa população urbana?

Metade da população vive em condições muito precárias. Isso é um eufemismo para dizer que a cidade não tem infraestrutura urbana. A maior parte da população não tem o mínimo de infraestrutura: esgoto, às vezes falta luz e as habitações são favelas. A destruição do Centro Histórico foi muito brutal, inclusive praças históricas que foram asfaltadas na década de 1970. Isso está em Dois irmãos, mas com mais ênfase em Cinzas do Norte (romance de Hatoum lançado em 2005). A destruição dos centros históricos, a favelização da cidades, tudo faz parte da nossa barbárie. Aconteceu com São Paulo, certamente ocorreu com Belo Horizonte. Em menor ou maior grau, aconteceu em todas as grandes cidades brasileiras.

E a violência em Manaus?

Como Manaus está muito longe, a imprensa daqui só falou dessa barbárie, da chacina, mas há execuções todos os dias na cidade. Manaus é uma cidade violentíssima. Eu falei isso para o New York Times, há dois anos, e os políticos não gostaram, porque há um bairrismo babaca, fruto desse bairrismo que não sei o que significa, mas é totalmente absurdo. Tudo isso faz parte desse processo de exclusão social do que aconteceu e ainda acontece no Brasil.

Algumas das famílias que vivem em situação precária em Manaus são seres invisíveis dessa cidade, como descrito pelo narrador-personagem Nael de Dois irmãos?

A miséria está na periferia da maioria das cidades brasileiras. E qual a diferença da minha geração para as que vieram depois? Eu e boa parte significativa da minha geração estudávamos em escolas públicas. Então eu convivia com meninos e meninas muito pobres, que moravam em palafitas. Frequentava a casa deles e eles frequentavam a minha. Essa é a escola democrática: a escola pública, de relativa qualidade, e isso não acontece mais hoje. Hoje tem uma destruição sistemática do ensino público brasileiro, o que mudou até mesmo as relações sociais. Havia esforço no sentido de democratizar o ensino, que era o grande projeto de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, e esse esforço se perdeu.

Figuras como a indígena Domingas ainda existem nas famílias brasileiras?

Em muitos lugares do Brasil. Não há grande diferença entre as condições degradantes de uma mulher que trabalha, com ou sem salário, e milhares de mulheres que ainda moram em cubículos, no famoso quarto de empregada. Uma das minhas intenções com Dois irmãos foi trabalhar com esse tipo de degradação social e moral. Mas há uma diferença: a Domingas praticamente aceita essa condição. O filho dela, o narrador, não. Por isso, ele diz: ‘Minha mãe é louca para se libertar’. O Nael já é um personagem que, depois de ter estudado, graças ao avô (Halim), que é apaixonado e generoso com o neto, tem uma consciência mais crítica da condição da mãe e da própria condição.

Quais as diferenças entre a prisão que você descreveu no livro e a prisão que existe hoje em Manaus?

A violência na prisão é a mesma. Antes havia espancamento, roubos, assassinatos. Depois, houve a criação dos cartéis, das grandes facções de drogas. Isso começou mesmo nos anos 1980, no fim do romance. O romance termina e, nos anos 1990, esse movimentou cresceu muito. Assumiu uma violência escandalosa. Visitei essa prisão histórica de Manaus, no Centro, estava desocupada na época. Agora foi reaberta para receber dezenas de presos, porque o governo teme outras chacinas. Aí colocou dezenas de presos, que era uma prisão desativada, do projeto original da cidade, no Centro de Manaus.

Então, a cadeia pública do Centro de Manaus foi sua referência para a prisão de Omar?

Sim. E ela reaparece em Cinzas do Norte também. Há um personagem que vai preso injustamente e fica meses sem julgamento e o narrador é um advogado de porta de cadeia. Como acontece hoje: há presos que saem de uma delegacia e vão para uma prisão à espera de julgamento. E muitas dessas pessoas são assassinadas. A declaração do ex-secretário da Juventude do governo federal é de um fascista. Ao fazer apologia à chacina, ele nem sequer sabe que muitas dessas pessoas assassinadas não têm nada a ver com as facções. E, mesmo assim, é um ato de barbárie sair matando pessoas. Sair matando as pessoas é a prova mais cabal da nossa barbárie. A modernidade do Brasil é muito postiça, para poucos. O grande problema deste país é a desigualdade extrema.

A origem da violência está na essência ou na sociedade e nas relações sociais?

A origem da violência não é apenas social, há várias motivações. Ela, às vezes, é um transtorno, uma espécie de síndrome do mal, da crueldade. O cara que tortura não faz isso porque é pobre. A matança, a chacina, a crueldade, ela não se explica. Seria muito simplório atribuir a maldade e a crueldade à condição social. A miséria social não justifica a violência e a barbárie. Senão, não haveria o nazismo, formas extremas de violência de tortura, de assassinato coletivo e tantas outras violências. Nesses grandes movimentos das guerras e ocupações existem interesses políticos e econômicos muito claros, mas a violência em si faz parte do ser humano: é parte constitutiva do ser humano. O Brasil caminha para uma tragédia mexicana.

Você enxerga uma salvação para o país?

O Brasil está encalacrado. Há um impasse, como naquele poema de Carlos Drummond de Andrade: ‘Um inseto cava/cava sem alarme/perfurando a terra/sem achar escape’. A saída não é messiânica, não por um político que vai surgir. Acho isso uma empulhação. Não há grandes lideranças políticas neste país, com projetos políticos. Isso tem uma razão histórica. Nós passamos 21 anos sem prática políticas, de 1964 a 1985, com censura, repressão. Aí surgiram os monstros e seus filhotes. Sarney, Calheiros, Cunha, inclusive na esquerda. O Brasil me lembra muito um romance da desilusão. A construção de Brasília foi nossa última utopia realizada. Depois, FHC e Lula foram governos que tiveram avanços, mas terminaram como romances da desilusão. No momento em que o PSDB e o PT poderiam ter formado uma aliança para excluir o PMDB, o centrão, não o fizeram. Nem sei se isso seria viável diante das falcatruas dos dois lados. O ódio ofusca a reflexão e qualquer possibilidade de diálogo.

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A mais escura das noites

Por Carlos Marcelo

“Dos filhos deste solo és mãe gentil”, garante o hino nacional ao se referir à “pátria amada, Brasil”. Nada mais errôneo: assim como Zana, mãe de gêmeos que não consegue esconder sua predileção por Omar, o caçula de Dois irmãos, a pátria também não ama seus filhos com idêntica intensidade. Na ficção e na realidade, as consequências da assimetria são irreversíveis. A desigualdade que começa no berço, ainda mais quando acompanhada da omissão (como a de Halim, o pai dos gêmeos Omar e Yaqub) é capaz de gerar uma onda incontrolável de violência. Algozes e vítimas arremessados na mesma encruzilhada: civilização ou barbárie?

Além da excelência da narrativa e da sólida construção dos personagens, uma das virtudes do romance do amazonense Milton Hatoum está no entrelaçamento de um intenso drama familiar com fatos marcantes da história brasileira do século 20. O papel dos imigrantes na formação da sociedade, as fases de apogeu e decadência do centro de Manaus (comuns às outras metrópoles nacionais), o tratamento desigual imposto pelos homens brancos a índios, negros e seus descendentes, todos esses temas estão no livro (e apareceram também na tevê). Um deles se destaca nos últimos capítulos: a morte do professor e poeta Antenor Laval por agentes da ditadura militar. Na cena, de forma simbólica, estão apresentadas as consequências da violência institucionalizada. Sentido por Omar como um “golpe”, o ato de violência representa o assassinato do conhecimento. Quando até a educação é vítima do autoritarismo e a preocupação maior passa a ser com centros de detenção do que com escolas, todos perdem. Dentro e fora dos presídios.

No romance de Hatoum, o patriarca Halim tem um grande temor: que as divergências entre os filhos levem sua família a encontrar o fundo do abismo. Mas pouco ou nada fez o pai para impedir a implosão de seu núcleo familiar bem diante dos seus olhos. Quando podia agir, ele se calou. Por isso, o silêncio de Halim pode ser lido também como o silêncio da nossa sociedade. Se nada mudar, o Brasil ficará como a bandeira do país descrita no livro: murcha e desbotada, abandonada no fundo de um barco. E nós também estaremos condenados à condição dos protagonistas de Dois irmãos: paralisados, “com olhar de pesadelo”. Perdidos na mais escura das noites.

Expediente
Reportagem: Renan Damasceno (textos), Fred Bottrel (vídeos) e Alexandre Guzanshe (fotos)
Edição de textos: Rafael Alves
Editor de arte: Álvaro Duarte
Infográficos: Soraia Piva
Diretor de redação: Carlos Marcelo Carvalho

Fátima, mãe de Renato e Kauã. Foto: Alexandre Guzanshe.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

Comments (1)

  1. Terminei o curso de Delegado dos direitos humanos e tenho interesse de trabalhar diretamente com vocês nesse período que começa em março.

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