Ter ou ser? A possível resposta dos direitos sociais, por Jacques Távora Alfonsin

No Sul21

Desde a deposição da presidenta Dilma, o Brasil vive uma interminável sucessão de propostas governamentais, feita por grupos políticos patrocinadores da sua queda, incidindo diretamente sobre os direitos sociais do povo trabalhador e pobre. Por tudo o que se vê e ouve, o custo das garantias devidas ao exercício e gozo desses direitos só deve ser suportado mesmo por quem é deles titular, uma contradição suficiente para transformar em devedor um sujeito de direito credor.

Esse estranho “remédio”, bem denominado de amargo pelo próprio governo, etiqueta a sua posologia como necessária sob um rótulo publicitário conveniente, o de poder curar a doença econômico-política atual do país de modo a que seu povo recupere sua saúde cívica e democrática sob os valores de uma verdadeira austeridade.

A denominação não é a mais adequada para fazer passar por virtude um explícito apoio do Poder Público ao capital representado por aquela fração minoritária da sociedade proprietária de grandes conglomerados econômicos, bancos, latifúndios de terra, e meios de comunicação social. A austeridade não é uma virtude seletiva, não separa quem deve se comportar conforme seus pressupostos, ou não, como está acontecendo. Está se falseando o seu sentido próprio na exata medida em que o governo favorece o ter de quem já tem de sobra a custa do ser de quem já tem pouco ou nada.

Essa é uma experiência histórica de fracassos sociais, reconhecida até por economistas como Antonio Delfim Netto, que ninguém ousará dizer ser um militante de esquerda, a serviço da crítica à liberdade dos mercados e outros dogmas sustentados pelo liberalismo. Na Carta capital de 1º de fevereiro que já está circulando, Delfim escreve um artigo sob o título “O Brasil e Davos”, fazendo uma aguda crítica àquele modelo de economia e política, como responsável pela crise vivida hoje em todo o mundo, não hesitando em apontar o país tão imitado e admirado pelo Brasil onde ela nasceu:

“O desconforto que hoje toma conta do mundo é, em parte, consequência de erros lamentáveis produzidos por uma perversão ideológica do liberalismo econômico que se instalou nos Estados Unidos, a partir dos anos 80 do século passado. O resultado foi algum desenvolvimento econômico, mas um aumento inaceitável da concentração dos seus benefícios. Agora, mais empoderada, a sociedade exige que a liberdade de iniciativa seja regulada e acompanhada do aumento da igualdade distributiva.”

O último parágrafo, com a vênia do autor, não é de agora não. Há muito tempo o controle da liberdade de iniciativa e o “aumento da igualdade distributiva” são reivindicações pautadas pela defesa dos direitos humanos fundamentais sociais que, como o governo brasileiro de agora está demonstrando, permanecem sempre, com muito poucas exceções, se não ignoradas, colocadas no terceiro plano dos planejamentos públicos e privados da economia predominante em todo o mundo e, de resto, só na forma de promessas jamais cumpridas.

Delfim Netto surpreende, porém, logo depois dessa análise da irresponsabilidade do liberalismo pela crise mundial, atribuindo à disposição do governo da União de prosseguir ao que ele chama de “reformas estruturais”, dando como exemplo o que se pretende fazer com o direito do trabalho, da previdência, falências, nova “base nacional curricular”, redução de burocracia.

Cabem, então, algumas perguntas: podem ser consideradas como estruturais essas novas medidas? Será o ter de quem já tem ou o ser de quem tem pouco ou nada que estão inspirando as iniciativas do governo? Que poder elas têm de reformar (!) o sistema econômico capitalista inspirado na ideologia criticada pelo mesmo autor? O ilimitado poder de “concentração dos benefícios”, inerentes àquele sistema e à essa ideologia, tem alguma possibilidade de ser controlado ou regulado pelas referidas políticas? Por que, por exemplo, em todas essas reformas consideradas estruturais não figuram a tributação das grandes fortunas, a reforma agrária e a reforma política, a reserva de recursos, de encargos e de prazos para as garantias devidas aos direitos humanos fundamentais sociais? Essas não são bem mais estruturais??

Uma coisa é a crítica de um modelo econômico e político ser danoso a direitos humanos fundamentais de todo um povo, em determinado período histórico, e outra bem diferente é, como fez Erich Fromm em 1976, demonstrar como uma injustiça desse grau tem poder de se impor como lei natural e até anti-ética, na forma com que o Brasil de hoje está sofrendo:

“Atravessando numerosas fases, o capitalismo do século XVIII sofreu uma mudança radical: o comportamento econômico separou-se da ética e dos valores humanos. De fato, admitia-se que a máquina econômica fosse uma entidade autônoma, independente das necessidades humanas e da vontade humana. Tratava-se de um sistema que seguia por si mesmo e de acordo com suas próprias leis. O sofrimento dos trabalhadores bem como a destruição de um número cada vez maior de pequenas empresas em benefício do crescimento de companhias sempre maiores era uma necessidade econômica que ninguém podia lamentar, mas que se tinha que aceitar como consequência de uma lei natural. A evolução desse sistema econômico não mais era determinada pela questão: que é bom para o Homem? mas pela questão que é bom para a melhoria do sistema? Tentou-se ocultar a agudez do conflito fazendo-se crer que o que era bom para a melhoria do sistema (ou mesmo para uma única companhia de vulto) era também bom para o povo. Essa elaboração teórica era reforçada por outra elaboração auxiliar: que as próprias qualidades que o sistema exigia dos seres humanos – culto do eu, egoísmo e cobiça – eram inatas na natureza humana; por conseguinte, não apenas o sistema, porém a própria natureza humana as estimulava.”

Ninguém será capaz de negar, passados quase três séculos, a árvore nascida dessa raiz estar dando os seus frutos amargos ainda hoje aqui no Brasil e no mundo, apenas as/os incautas/os de sempre engolindo a história de eles serem o desejado efeito da austeridade. Só a boa e necessária formação de uma consciência crítica coletiva dessa realidade, como fez o Fórum Social das Resistências neste janeiro, pode dar algum poder ao povo brasileiro de enfrentar com êxito as políticas públicas propostas pelo novo governo para, ampliando o ter de alguns, prejudicar o ser da maioria.

*Jacques Távora Alfonsin é Procurador do Estado aposentado, Mestre em Direito pela Unisinos, advogado e assessor jurídico de movimentos populares.

Foto: Severino Silva, O Dia.

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