Especial Vigilância: Guerra à Primavera

Em São Paulo, berço das ocupações de escolas que se espalharam pelo país no final de 2015, governo adotou táticas de vigilância, ameaças e tortura contra estudantes

Por Fausto Salvadori, para a Agência Pública

Não foi numa aula de história sobre a ditadura militar que o estudante secundarista C.O., de 16 anos, aprendeu sobre vigilância, detenções arbitrárias, perseguições por agentes do Estado ou torturas. Essas lições o estudante afirma ter recebido em sua carne, ministradas por policiais militares na zona sul de São Paulo na noite de 14 de setembro.

A “aula” de C.O. começou na estação de trem Socorro. O estudante afirma que, depois de ter descido na estação, a caminho de casa, percebeu que um grupo de policiais militares o seguia. Tentou correr em direção às catracas, mas acabou detido por seguranças da empresa G4S, responsável pela segurança nas estações da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Levou gás de pimenta nos olhos e foi conduzido a uma sala fechada na estação, onde afirma ter sido interrogado e torturado pelos PMs.

A cena descrita por ele parece tirada de um relato dos porões do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação-Centro de Operações de Defesa Interna), um dos centros de perseguição e tortura da ditadura militar nos anos 1970. C.O. afirma que os policiais lhe mostraram um álbum com cerca de 20 fotos de outros secundaristas e começaram a fazer perguntas sobre cada um. “Perguntavam os nomes dos estudantes, de que movimento faziam parte, onde moravam. Parecia que eles não tinham a identificação de ninguém, só as fotos”, conta o estudante.

Daí em diante, a tensão evoluiu para a violência. “Eu dizia que não conhecia e eles começaram a me torturar”, afirma C.O. Levou tapas na cara, joelhadas, puxões de cabelo e golpes de cassetete. “Chegou uma hora que não conseguia ouvir bem o que perguntavam, porque já estava bem machucado. Até que fiquei inconsciente”, diz. Quando acordou, com ouvidos, boca e nariz sangrando, estava na Estrada de Itapecerica, no Capão Redondo, a mais de 6 quilômetros do local onde havia sido detido.

C.O. conta que denunciou as violências para a Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos Difusos e Coletivos da Infância e Juventude, do Ministério Público Estadual, mas não à polícia. “Não confio em policiais para investigar crimes de policiais”, diz.

Nos dias que se seguiram, C.O. passou a ver viaturas da polícia rondando a vizinhança da sua casa e volta e meia tomava “enquadros” dos policiais militares encarregados da Ronda Escolar nas imediações da escola estadual Maria Zilda Gamba Natel, no Jardim Parque Morumbi, onde cursava o 1º ano do ensino médio. Ele não aguentou: mudou-se de casa com a mãe, para um endereço que poucos conhecem, e desistiu de ir à escola pelo resto do ano. O olho direito, atingido pelo spray de pimenta, não enxerga mais como antes. Não entrou mais em trem nem metrô. “Hoje tenho pavor de ficar num vagão”, diz. Amigos contam que já fizeram vaquinha para pagar viagens no Uber e ajudá-lo a voltar para casa.

Relatos semelhantes de perseguições, torturas físicas e psicológicas são comuns entre estudantes que participaram do movimento apelidado de Primavera Secundarista, iniciado em novembro de 2015, quando ocuparam mais de 200 escolas no estado de São Paulo. C.O. era um deles. Os secundaristas protestavam contra um projeto de reorganização da rede escolar, capitaneado pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB), que previa o fechamento de 94 escolas e a transferência de 311 mil alunos.

Quando os estudantes deflagraram as ocupações, o governo anunciou que tinha intenção de dialogar com os secundaristas. Nos bastidores, traçava planos mais beligerantes. “Estamos no meio de uma guerra”, repetiu diversas vezes o então chefe de gabinete da Secretaria da Educação, Fernando Padula Novaes, numa reunião com dirigentes de ensino, ocorrida em 29 de novembro, que teve seu áudio vazado pelo site Jornalistas Livres. No encontro, Padula dizia que o governo lutaria para “desqualificar o movimento” e que, mesmo “perdendo algumas batalhas”, iria “ganhar a guerra final”.

Após um mês de ocupações, em 4 de novembro de 2015, o governador anunciou a suspensão do projeto de reorganização escolar. Dias depois, os estudantes desocuparam as escolas. A Primavera havia saído vitoriosa. Mas a “guerra” contra os alunos estava apenas começando, segundo diversos relatos ouvidos pela Pública.

“Mato e jogo no rio”

Em meados de novembro, o estado de São Paulo teria dado início a um programa sistemático de monitoramento e intimidação dos alunos do movimento secundarista, nas ruas e nos colégios. A estratégia foi levada a cabo tanto por diretores de escola como por policiais militares.

“Eu não ligo para o que você fala. Eu ainda mato um deles e jogo no rio para servir de exemplo”, foi o que a professora de geografia Luciana Pereira, 38 anos, ouviu da boca de um policial militar ao questionar porque os PMs estavam revistando um grupo de cinco estudantes – entre eles seu filho – na porta da Escola Estadual Domingos Mignoni, em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, em março de 2016. Era um dos primeiros dias do ano letivo seguinte às ocupações.

A professora afirma que o governo intensificou ao longo do ano a presença militar no seu local de trabalho. “A Ronda Escolar da PM passou a entrar nas escolas e, em alguns casos, chegam a assistir às aulas. Há policiais circulando sem identificação nos pátios e observando os alunos”, conta Luciana.

“Sempre que os estudantes são abordados pela polícia, são pressionados a informar dados pessoais, e isso passa a ser usado pelos PMs. Secundaristas são seguidos por viaturas nas ruas, têm as casas invadidas e são ameaçados”, afirma a professora. “Toda essa repressão afeta os estudantes. Eles passam a ver a escola como prisão.”

A professora afirma que três estudantes diferentes contaram a ela ter sido ameaçados ou agredidos por policiais militares para reconhecer os rostos de secundaristas expostos num misterioso álbum de fotos – o mesmo que C.O. afirma ter visto, entre murros e golpes de cassetete, na sala fechada da estação de trem de Socorro. A Pública ouviu um quinto estudante a confirmar a existência do álbum: um adolescente detido em um tumulto na Assembleia Legislativa de São Paulo, em 14 de novembro, que terminou com um estudante desmaiado depois de ter recebido spray de pimenta e uma policial feminina com escoriações.

Levado ao 36º DP (Paraíso), acusado de desacato, o jovem diz que também foi pressionado por policiais militares a reconhecer fotos de estudantes num álbum e que se viu sendo, ele próprio, fotografado por eles. “Tiraram foto do meu rosto, das minhas tatuagens e do meu RG.” Enquanto isso, ouvia xingamentos racistas e ameaças. “Os PMs me chamavam de macaco e preto sujo e diziam que iam me matar e sumir com meu corpo”, conta.

Coincidência (ou não), a delegacia onde hoje funciona o 36º DP fica no mesmo terreno que abrigou o DOI-Codi nos anos 1970. E coincidência (ou não), quando o adolescente foi liberado da Fundação Casa, no Brás (região central), o amigo que esperava por ele era justamente C.O., que, ao voltar para casa, naquela mesma noite, seria capturado e torturado pela PM.

Novas ocupações e mais vigilância

As ocupações escolares voltaram ao cenário das escolas paulistas em abril de 2016. Secundaristas ocuparam o Centro Paula Souza, na região central de São Paulo, em protesto contra a falta de refeições nas escolas técnicas estaduais e exigindo a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as denúncias de superfaturamento e pagamento de propina na compra de merenda escolar.

Dessa vez, os estudantes relatam ter encontrado um aparato de vigilância e intimidação bem estruturado. Histórias de secundaristas seguidos por policiais nas ruas ou em trens e metrô tornaram-se cada vez mais comuns. A Pública ouviu mais de uma dezena de relatos a esse respeito, tanto em entrevistas como em uma audiência pública da Comissão de Educação, Cultura e Esportes da Câmara Municipal de São Paulo, realizada em 23 de novembro a pedido do Comitê de Mães e Pais em Luta.

Segundo os relatos, algumas vezes os policiais se limitavam a exibir sua presença: luzes de viatura piscando, fardas e armas à mostra, à distância, sem falar nada. Em outras, paravam para revistar os estudantes. E havia ocasiões em que resolviam deixar uma mensagem mais explícita. Um menino de 17 anos afirma que recebeu uma dessas mensagens numa noite de abril ao deixar a ocupação no Paula Souza: “Um carro parou ao meu lado e dois homens saíram dele. Eles me agarraram e apontaram uma arma para mim. Disseram que sabiam quem eu era, onde eu morava e que, se eu voltasse de novo à ocupação ou participasse de algum protesto, iriam me matar”.

As estudantes também relatam ter sofrido assédio e abuso sexual. Outra participante da ocupação no Paula Souza, S.J.S., de 17 anos, conta que quatro policiais homens a abordaram numa rua nas imediações da escola e a revistaram, passando a mão por todo o seu corpo enquanto diziam “secundarista é tudo puta, mas é gostosa”. Liberada após a revista, foi seguida pela viatura até entrar numa estação de metrô. Da janela do carro, os PMs a xingavam. “Eles gritavam: ‘Quer ocupar escola? Ocupa minha cama também’ e diziam que iam ocupar minha boceta com os pênis deles”, conta. “Foi muita resistência, ali, para não chorar. Quando cheguei no metrô, desabei.”

A intimidação e a violência sexual também fizeram parte do arsenal de violências empregado pela Polícia Militar durante a desocupação da Diretoria Regional de Ensino Centro-Oeste (Deco) em 13 de maio. A estudante L.L.S., 17 anos, conta que um policial que puxou seu cabelo com tanta força que ela quase desmaiou, dizendo que “cabelo de preto só serve pra ser puxado pela PM”. O pior momento, segundo ela, foi quando o ônibus com estudantes detidos parou diante do 91º DP (Ceasa) e os policiais disseram que apenas meninas desceriam ali. “O policial mais violento de todos olhou para a gente e falou: ‘manda as meninas descerem que o nosso camburão de estupradores está chegando. Você imagina vinte meninas tendo que ouvir isso sem poder fazer nada”, relata. Diante da revolta dos estudantes, os PMs aceitaram que meninos e meninas descessem juntas. “No pátio da delegacia, os policiais começaram a empurrar nossa cabeça para cima com violência, pedir dados e tirar foto da gente com os celulares pessoais”, conta L.

Fabiana Medrado, estudante que foi a Washington, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, denunciar perseguições aos estudantes (Foto: Daniel Arroyo/Agência Pública)

Estudantes têm que mudar o visual

Moradora de Osasco, na Grande São Paulo, a estudante Fabiana Medrado, 18 anos, diz que mudou de casa e cortou o cabelo após uma noite em que uma viatura da PM a seguiu por todas as quadras do calçadão no centro da cidade. “Senti muito medo. Depois dessa noite, saí de casa e comecei a trabalhar no bar de um amigo para ter um cantinho onde morar e fiquei dois meses lá. Depois voltei para casa.” Mudar o visual, segundo ela, é uma tática comum usada pelos estudantes para tentar escapar do monitoramento policial. “Você pode ver que a maioria dos secundaristas mudou o cabelo em algum momento no último ano”, diz.

Em 7 de abril, Fabiana viajou para Washington, EUA, com outros dois estudantes para participar de uma audiência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA), a respeito das violações praticadas pelo Estado contra o movimento estudantil. A audiência nasceu de um pedido do Comitê de Mães e Pais em Luta, criado por pais de secundaristas para combater a violência estatal contra os estudantes, e pela ONG Artigo 19. Para irem à capital americana, os estudantes fizeram uma campanha de crowdfunding que arrecadou R$ 24.507 mil entre 459 apoiadores.

No documento elaborado para a comissão, as entidades afirmavam que o governo paulista havia gerado “um ambiente de medo e insegurança diante de ameaças factíveis que as forças policiais do Estado oferecem a manifestantes e, no caso, em especial, aos adolescentes envolvidos”. Para evitar o monitoramento e a intimidação de estudantes, o documento, num trecho lido por Fabiana, recomendou ao Estado “o fim do monitoramento ou controle de caráter militar” nas escolas, “inclusive a ‘ronda escolar’”, e pediu que a Polícia Militar seja proibida de “realizar registros de imagens de crianças e adolescentes, inclusive para manutenção de um banco de dados com estas imagens” e de “exigir a identificação de adolescentes sem previsão legal”.

Em resposta, o representante do governo na audiência, Elival da Silva Ramos, procurador-geral do estado, disse que aguardava uma apresentação formal das denúncias para investigar os fatos. “O governo de São Paulo aguarda que essas denúncias sejam levadas a ele e poderá fazer as apurações em tempo devido punindo eventuais abusos que possam ter ocorrido”, afirmou.

Membro da comissão, a jamaicana Margarete May Macaulay dirigiu-se diretamente ao representante do governo: “Vocês devem agir no melhor interesse das suas crianças. E, sim, elas são crianças. Elas estão protestando, o que têm o direito de fazer”, disse a jamaicana, apontando para os secundaristas sentados à mesa. “Os manifestantes se acalmam quando sabem que suas vozes foram ouvidas, especialmente por uma alta autoridade. Quando se traz a polícia, você tem violações dos direitos humanos a torto e a direito. E nos disseram que nenhuma ação foi tomada contra esses policiais”, afirmou. Em sua defesa, o procurador-geral afirmou que a polícia só teria sido usada como segunda opção. “Os diretores foram usados nas ocupações, não a polícia, na tentativa de ter educadores tentando resolver o problema. Não deu resultado”, disse.

Apenas um mês depois, o procurador-geral contradisse o que garantiu ali Comissão da OEA. Emitiu um parecer afirmando que, em caso de ocupação de prédios públicos, como escolas ou secretarias, o governo poderia executar desocupações imediatas, sem precisar de autorização da Justiça, “para preservar os bens contra a apropriação de terceiros”. O parecer, que havia sido solicitado pelo ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo e hoje ministro da Justiça Alexandre de Moraes, virou norma, colocando a polícia na linha de frente de qualquer negociação com os estudantes nas unidades escolares ocupadas. “Todo lugar que a gente ocupa hoje é desocupado pela polícia em duas horas. Ficou impossível fazer ocupação”, resume Fabiana.

A advogada Camila Marques, coordenadora do Centro de Referência Legal em Liberdade de Expressão e Acesso à Informação da ONG Artigo 19, que também participou da audiência em Washington, afirma que notou uma diversificação dos tipos de abusos cometidos pela PM contra o movimento secundarista. Se a apresentação em Washington ainda abordava principalmente a violência cometida contra os estudantes nas manifestações de rua, ao longo de 2016 eles passaram a sofrer também com técnicas de intimidação e ameaça.

“Reunimos diversos relatos em que estudantes contam que receberam telefonemas de policiais militares exigindo informalmente que comparecessem a uma delegacia para prestar declarações. Na mesma esteira, recebemos denúncias de pais e alunos que contaram que policiais filmam e tiram fotos de estudantes e que os registros compõem um banco de dados que é usado para perseguir os estudantes dentro das escolas e também em outros atos que eventualmente participem”, diz Camila.

“Podemos afirmar que as forças de segurança têm agido de forma ilegal e abusiva no sentido de restringir a liberdade de expressão e manifestação dos estudantes”, continua a representante da Artigo 19. E conclui: “Em uma democracia é inadmissível que estudantes sofram processos de criminalização e de intimidação por exercerem o seu direito humano à livre manifestação”.

Depois de ter se espalhado para outros estados, o movimento perdeu força em São Paulo – não só pelas desocupações imediatas, mas pelo medo das táticas de vigilância, tortura e criminalização executadas pela PM. “Tem uma galera que deixou de ‘colar’ nas reuniões por medo. Tem secundarista respondendo processo por dano ao patrimônio e formação de quadrilha, teve secundarista que foi torturado em estação de metrô. As pessoas ficam assustadas”, conta Fabiana.

Da esquerda para a direita, os estudantes Fabiana Medrado, Taynah H. Santos e Igor S. Miranda durante audiência na CIDH (Foto: Daniel Cima/CIDH)

Outro lado

Indagada sobre as denúncias, a Secretaria da Segurança Pública [SSP] dá a mesma resposta com que o procurador-geral Elival da Silva Ramos saudou os membros da Comissão Interamericana de Direitos Humanos: só vai apurar os fatos que forem formalmente apresentados às autoridades policiais.

“A SSP [Secretaria da Segurança Pública] esclarece que as ações para a reabertura de escolas ocupadas por manifestantes têm sido acompanhadas pelo conselho tutelar. As ações ocorrem de forma pacífica, tanto que a Corregedoria da Polícia Militar não foi procurada por nenhum estudante secundarista ou manifestante, para o registro de qualquer denúncia”, afirma a empresa CDN Comunicação, contratada pelo governo estadual para fazer a assessoria de imprensa da SSP.

Os estudantes fizeram suas denúncias em diversos órgãos, incluindo casas legislativas, Ministério Público e a CIDH, mas a maioria deles evita falar dos abusos que sofreram com a polícia, porque dizem não confiar na Polícia Militar.

Sobre operações coordenadas de perseguição a estudantes ou sobre a existência de bancos de dados com álbuns secretos de fotos de secundaristas, a SSP simplesmente não respondeu.

A assessoria de imprensa da Secretaria da Educação afirma que “apoia o livre direito à manifestação por parte dos alunos, desde que não haja danos físicos à estrutura das escolas nem prejuízo ao processo de aprendizagem”.

Já a G4S, empresa responsável pela segurança dos trens e estações da CPTM, disse, sobre a agressão a C.O., que “não houve nenhum registro de ocorrência desta natureza”.

Esta reportagem faz parte do Especial Vigilância da Agência Pública. Acesse apublica.org/vigilancia para saber mais e navegar pelas páginas interativas.

Imagem: Professora Luciana Pereira, que denuncia perseguições aos estudantes (Foto: Daniel Arroyo/Agência Pública)

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