Mexeu com a Kenarik, mexeu com todas!

Por Soraia da Rosa Mendes, no Justificando

Nesta última quarta-feira, 08 de fevereiro de 2017, por quinze votos favoráveis e nove contrários, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu aplicar à Desembargadora Kenarik Boujikian pena de censura em razão de decisões monocráticas suas concessivas de liberdade a réus que aguardavam presos preventivamente o julgamento de processos por tempo superior à eventual pena a ser fixada em suas sentenças.

Apontavam-se contra ela cerca de onze supostas irregularidades, sendo considerada, entre as três mais graves, o fato de que a magistrada tenha feito “juízo de valor” enquanto ainda pendiam recursos do Ministério Público, o que exigiria análise dos demais membros da Sétima Câmara Criminal que ela integra.

No rol dos graves “crimes” ou “pecados” praticados por Kenarik está, portanto, o de ter tornado real para alguns pobres desgraçados a liberdade que afirmamos ser a regra constitucional.

Em um país onde mais de 40% da população carcerária é composta por pessoas em privação preventiva de liberdade, e onde a grande parcela deste contingente acaba permanecendo nas cadeias por tempo superior ao que seria eventualmente aplicado em sentença, grave e digno de censura seria não conceder a liberdade como fez a juíza.

Grave é colocar o princípio da colegialidade como superior à urgência de quem, dentro das masmorras medievais brasileiras, que até mesmo o Supremo Tribunal Federal considera configuradoras de um estado de coisas inconstitucional, tem sua dignidade humana violada dia a dia.

Grave é, ao arrepio da Constituição de 1988, vilipendiar a independência de um magistrado ou uma magistrada tachando de “juízo de valor” decisões proferidas nos estritos termos da Lei Maior, como se possível fosse (embora, pela decisão do Órgão Especial pareça que sim) transformar em infração o DEVER inerente à função de julgar, que é o de tomar a liberdade como regra.

Grave é considerar a prisão como a primeira, última e única resposta à maioria pobre e negra confinada nos presídios brasileiros. Grave é, ante corpos esquartejados, aceitar que se diga “ah, mas lá dentro não tem nenhum santo”.

Kenarik foi punida como magistrada que é, mas não só.

A “censura” aplicada à magistrada contraria a independência judicial. Mas também dirigiu-se ao sentimento de fraternidade de uma defensora de direitos humanos (sim, existem juízas e juízes defensores dos direitos humanos e da democracia!) que beijou as mãos do Papa Francisco.

Foi dirigida também à jurista e à cidadã (sim, existem juízas e juízes que sabem que a toga não lhes eleva à condição de divindade!) que considera um Golpe o que eufemisticamente alguns chamam de impeachment.

E, por fim, a “censura” atingiu a mulher que, como expressão conhecida e reconhecível do sexismo, tem visto serem tornados públicos fatos de sua vida pessoal, na clara tentativa de depreciá-la por suas “supostas fragilidades”.

Puniram a magistrada comprometida com a Constituição, a defensora de direitos humanos, a jurista, a cidadã, a mulher.

Diferentemente dela, eles desconhecem o sentido de liberdade da toga que vestem. Chamam de “produtividade” a transformação de seres humanos em números. Desrespeitam a democracia ao censurar sua forma de pensar o golpe. Desconhecem o sentido da fraternidade que Francisco simboliza. E, como é a práxis para mulheres diante do judiciário, são sexistas.

Entre santos e demônios, crimes e pecados, penas e censuras, grave é o TJSP ter erguido uma fogueira na qual pretende destruir a voz e a alma libertária de Kenarik.

Não conseguirão!

Aos senhores em suas capas pretas (sim, capas) que pretendem censurá-la, em nome da liberdade, da democracia, da fraternidade, da sororidade, devolvemos nós a V. Excelências, a censura.

Agora quem emite a CENSURA somos nós, juízas, promotoras, defensoras públicas, professoras, cidadãs, mulheres.  Porque somos solidárias. Porque mexeu com a Kenarik mexeu com TODAS!

Soraia da Rosa Mendes é Doutora em Direito, Estado e Constituição, UnB. Mestre em Ciência Política, UFRGS. Professora universitária. Advogada em Brasília. Coordenadora Nacional do CLADEM/Brasil.

Foto: Paulo Liebert /Estadão Conteúdo.

 

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