Sobre cavalos e homens

Por Patrick Mariano, no Justificando

Um dos textos mais impactantes que já pude ler é um que foi publicado em 1999 por Marcos Frenete na revista Caros Amigos. Sobre cavalos e homens narra a história de um camponês de sangue espanhol muito embrutecido pelas circunstâncias da vida na roça que certo dia, ao arar a terra junto com a companheira e o seu cavalo, teve uma profunda experiência transformadora.

O sangue de um nariz de cavalo jorrando sobre a terra fez com que aquele homem emocionalmente desestruturado e que não levava desaforo para casa, passasse a ser um paciente e educado homem. O cavalo, após horas puxando o arado com fome e sede estancou. O homem então, com uma ira incontrolável, desferiu um chute nas narinas do equino que, após erguer a cabeça depois da pancada, aguou a terra com sangue e lágrimas.

O olhar de incompreensão da mulher e o monumento vivo à sua própria estupidez feito de sangue e lágrimas parado bem na sua frente, fez com que se desse conta do que acabara de fazer. O camponês permaneceu semanas mudo, sorumbático e introspectivo até que retornasse como um outro homem.

A humanidade tem sido como esse camponês da primeira versão. A insanidade da II Guerra Mundial resultou no estabelecimento de alguns pactos que expressaram parâmetros éticos mínimos para a relação entre os povos e de afirmação dos direitos do ser humano. Foi como se, por um tempo, depois dos desgraçados anos em que a racionalidade inexistiu, tivéssemos uns poucos dias de alento e reflexão.

Na atualidade, é como se a cada segundo desferíssemos um chute nas narinas daquele cavalo e, de tanto fazê-lo, vai se introjetando a certeza inconsciente de que isto é normal. Talvez neste ponto esteja a principal diferença destes tempos. Há quem considere dentro da normalidade defender a prática da tortura, construir muros separando povos e proibir a entrada de pessoas de forma indiscriminada. Trump verbaliza parte do pensamento dos americanos e de muitos brasileiros.

A humanidade, justamente no dia em se recordava as atrocidades do Holocausto, assistiu o líder da maior potência mundial assinar atos que não ficam nada a dever a Hitler. E, infelizmente, não se trata apenas de Trump. Obama manteve Guantánamo que nada fica a dever a Auschwitz e se permitiu filmar assistindo, como se estive vendo um filme de Spielberg, ao assassinato de uma pessoa sem qualquer possibilidade de defesa. Depois, determinou que desaparecessem com o seu corpo.

Por aqui, depois de centenas de brasileiros terem perdido a vida em depósitos humanos chamados de prisão, nada mais se falou a respeito. Foi como se nada tivesse acontecido. Médicos vazam exames particulares pelo simples gozo sádico e há quem comemore a tragédia de um acidente vascular cerebral.

E assim seguimos, desferindo chutes em cavalos e vendo o sangue e a lágrima jorrar sobre a terra. Alguns desses chutes nos aturdem, chocam e nos dão a exata medida da nossa própria estupidez. Enquanto outros, de tão repetidos e comuns, levam a que se comece não somente duvidar do seu impacto enquanto força motriz de uma transformação, mas à desconfiança se eles já não estão a despertar certo gozo ou aquilo que temos de mais perverso e desumanizante.

Patrick Mariano é escritor. Junto a Marcelo Semer, Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe e Giane Ambrósio Álvares, assina a coluna ContraCorrentes, publicada todo sábado no Justificando.

Comments (1)

  1. “Obama (…) se permitiu filmar assistindo, como se estive vendo um filme de Spielberg, ao assassinato de uma pessoa sem qualquer possibilidade de defesa. Depois, determinou que desaparecessem com o seu corpo.”

    Só lembrando que a “pessoa” em questão era o milionário líder de um grupo terrorista que assassinou, sem dar qualquer possibilidade de defesa, dezenas de milhares de pessoas (não apenas nos EUA, mas principalmente no Oriente Médio).

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