Sobre poderes selvagens e a crise na democracia

Por Rubens Casara, no Justificando

Em 2011, Luigi Ferrajoli escreveu Poteri selvaggi. La crisi della democrazia italiana, no qual identificava a crise democrática italiana com o surgimento de poderes que não se submetiam aos limites inerentes à democracia constitucional. Pouco antes (2008), havia sido lançada a obra Contro i nuovi dispotisni: scritti sul berlusconismo, livro póstumo de Norberto Bobbio que reunia artigos sobre a era Berlusconi. Em comum, a preocupação desses dois filósofos e juristas, inseridos na tradição democrática, com o surgimento de novos despotismos.

Esses textos foram produzidos após três fenômenos que marcaram a Itália: a) o desastre político, econômico e jurídico promovido pela ascensão de Silvio Berlusconi ao poder político; b) a demonização da política e dos partidos tradicionais; e c) a operação Mani pulite (originalmente conhecido como caso Tangentopoli, algo como “cidade do suborno”).

A hipótese de que não existiria o desastre político, econômico e jurídico sem o processo de criminalização da política iniciado (ou, pelo menos, potencializado) com a Operação “Mãos-limpas” (ou, como querem alguns, com o uso oportunista do direito com finalidade político-econômica) não pode ser desprezada. Dito de outra forma, deve ser levada a sério a tese de que o processo judicial conduzido em nome da guerra contra a corrupção gerou, como efeito colateral, consequências sociais, econômicas e políticas que não foram consideradas na ocasião e que foram, em grande medida, responsáveis pela ascensão do berlusconismo e pelo aparecimento de novos despotismos.

Analisar o que ocorreu na Itália, neste caso, ajuda a pensar a crise contemporânea da democracia constitucional no Brasil, não só pela semelhança entre as tradições forjadas nos dois países (basta lembrar um exemplo: a legislação fascista italiana serviu de inspiração para diversas leis brasileiras, algumas ainda em vigor no Brasil) como também pela semelhança entre os fatos que antecederam e condicionaram o surgimento de novos obscurantismos (instrumentais aos fins dos detentores do poder econômico) e o afastamento do paradigma do Estado Constitucional na Itália e, posteriormente, no Brasil.

Ao tentar expor os sintomas da crise da democracia constitucional italiana, pode-se apontar uma série de fenômenos observados na Itália a partir da Operação Mani pulite, agravados na era Berlusconi. Ferrajoli, por exemplo, menciona o processo de desconstitucionalização vivenciado na Itália, em especial a desconstitucionalização do sistema político. Na Itália de então, como no Brasil de hoje, direitos e garantias fundamentais constitucionalizados passaram a ser percebidos, e por essa razão afastados, como óbices ao exercício do poder econômico ou da repressão penal necessária à manutenção do status quo.

A desconstitucionalização observada tanto no sistema político quanto nas esferas social e cultural, mas sobretudo, o que se revela fatal para o paradigma do Estado Democrático de Direito, no sistema de justiça, caracteriza-se pelo abandono do sistema de vínculos legais impostos a qualquer poder, inclusive ao próprio poder jurisdicional (pelos mais variados motivos, que não cabe aqui desenvolver, instaurou-se uma espécie de “vale tudo” argumentativo e utilitarista, no qual os fins afirmados pelos atores jurídicos – ainda que distantes da realidade – justificam a violação dos meios estabelecidos na própria Constituição da República, bem como das formas e das substâncias que constituem o Estado Democrático de Direito).

Tanto na Itália como no Brasil, decisões políticas (algumas das quais proferidas no âmbito do Poder Judiciário) foram tomadas a partir da progressiva desconsideração, ou mesmo da eliminação, dos valores constitucionais. Construiu-se, com apoio dos meios de comunicação de massa, um imaginário popular que passa a identificar os direitos fundamentais com mercadorias, portanto negociáveis ou mesmo descartáveis. Abriu-se, assim, as portas para os chamados “poderes selvagens”, poderes sem limites ou controles.

Abandonou-se o paradigma do Estado Democrático de Direito (democracia constitucional), no qual existem limites instransponíveis ao exercício do poder e à onipotência das maiorias de ocasião. Em alguns casos, admitiu-se a onipotência do legislador (que o modelo de democracia constitucional pretendeu superar) e, em outros, a onipotência do legislador foi substituída pela onipotência do julgador (que passou a “constituir” o direto, muitas vezes em desconsideração do texto constitucional, isso em clara violação da hierarquia das fontes).

No Estado Democrático de Direito, as maiorias, seja a maioria parlamentar, seja a maioria da população, estão submetidos a limites e vínculos substanciais (conteúdos previstos na Constituição da República), ou seja, existem coisas que as agências estatais (legislativo, executivo e judiciário) e o cidadão estão proibidos de fazer e outras coisas que eles estão obrigados a fazer, independentemente dos beneficiários e dos prejudicados com essas ações e omissões ditadas pela Constituição da República. Na pós-democracia, sedimentada na Itália com a políticas “públicas” adotadas por Berlusconi e seus imitadores, desapareceram os vínculos e controles substancias.

No Brasil, o processo de impeachment de Dilma Rousseff, que chegou a termo sem a demonstração cabal da existência de crime de responsabilidade (requisito constitucional para o impedimento) da presidente da República e a relativização da garantia constitucional da presunção de inocência pela maioria do Supremo Tribunal Federal são exemplos dessa desconstitucionalização, dessa flexibilização do constitucionalismo em nome da satisfação do desejo de maiorias de ocasião ou da realização de projetos econômicos defendidos pelos detentores do poder político.

Ainda sobre a crise da democracia constitucional, aponta-se na Itália a produção de leis e decisões ad personam, a militarização do território (somada às práticas demagogia em matéria de segurança pública), a redução das garantias jurisdicionais dos trabalhadores, o controle político da informação e dos meios de comunicação de massa, a precarização do trabalho e o corte dos gastos com educação e saúde. No Brasil, todos esses fenômenos também ocorrem, em maior ou menor intensidade.

Pense-se, para citar apenas poucos exemplos, na diferença de tratamento judicial entre as nomeações do ex-presidente Lula e do ex-governador Moreira Franco como ministros de Estado; no uso das forças armadas, em funções distintas daquelas previstas na Constituição da República, para produzir falsa sensação de segurança nas grandes cidades brasileiras; na prevalência da tese do “negociado sobre o legislado” na Justiça do trabalho; na desinformação e na seletividade das notícias produzidas em razão de decisões políticas a cargo dos poucos grupos econômicos (não raro, com dimensão familiar) que controlam os principais meios de comunicação no Brasil; na terceirização e na perda de direitos impostas ao trabalhador brasileiro; na redução dos investimentos em saúde e educação defendidas pelo governo em exercício no Brasil após o impeachment da presidente eleita.

A crise política italiana, identificada por Bobbio e Ferrajoli, é marcada pelo fenômeno do populismo (nesse particular, nenhuma novidade, uma vez que exemplos históricos de lideranças populistas não faltam na Itália ou no Brasil) e pela ideia de uma pessoa (um “chefe” ou “herói”) como encarnação da “vontade popular”. A demonização da política, que se seguiu ao processo “Mani Pulite”, fez com que políticos oportunistas se apresentassem como “não-políticos” enquanto outros agentes estatais, que tradicionalmente exerciam papel menor no jogo politico, adquirissem protagonismo. Algo semelhante acontece no Brasil, com juízes e procuradores da República transformados em heróis enquanto políticos travestidos de “não-políticos” (o exemplo de João Dória Jr. em São Paulo é o mais significativo) foram eleitos pelo voto popular.

Deu-se uma espécie de regressão pré-moderna e, com ela, o fortalecimento de fenômenos como o “messianismo” e a “demonização”. Se a crise política brasileira que culminou com o pedido de impeachment, por um lado, revelou tanto a descrença na democracia representativa quanto a tradição autoritária em que a sociedade está lançada (a crença em resposta de força e a desconfiança em relação aos direitos e garantias fundamentais, vistos como obstáculos aos desejos da maioria), por outro, escancarou a receptibilidade de novos messias ou salvadores da pátria.

Manifestações populares deixaram claro que grande parcela da população brasileira deseja identificar entre os diversos atores sociais aqueles que encarnem a vontade popular (na verdade, a vontade e a visão de mundo dessa parcela da sociedade), mesmo que para isso tenham que atuar sem limites jurídicos ou éticos.

O “messias” age em nome do povo sem mediações políticas ou jurídicas. Esse “salvador da pátria” pode ser um empresário de sucesso (“messianismo empreendedor”), um juiz midiático (“messianismo jurídico”, para utilizar a expressão da cientista política Esther Solano) ou um militar saudosista dos regimes de exceção (messianismo bélico), não importa: entre pessoas autoritárias, os heróis sempre serão autoritários; entre pessoas ignorantes ou burras (a burrice aqui entendida como uma categoria moral), a legitimação do “messias” sempre se dará no “vazio do pensamento”. Correlato à identificação de um messias, está a demonização daqueles que pensam diferente.

Estes, transformados em inimigos, não merecem direitos e devem ser eliminados.

Esse fenômeno, que aposta em um Messias para liderar a luta/guerra contra o mal, é propício à eliminação das regras do jogo democrático, pois aposta em um “governo de pessoas” (de um Messias) em detrimento do modelo constitucional de um governo submetido a leis adequadas ao projeto constitucional, pois o Messias age sem mediações ou limites ao poder, não há mais que se falar em “separação de poderes” ou em “direitos fundamentais”. Abre-se, pois, espaço para lideranças carismáticas e pouco democráticas, em especial em sociedades como a italiana e a brasileira, fortemente inseridas em uma tradição autoritária.

Outra característica percebida na Itália, e que se reproduz no Brasil, é a confusão entre a esfera pública e privada, entre poder político e o poder econômico. Com a ascensão de Berlusconi na Itália e a queda de Dilma Rouseff no Brasil, agrava-se a confusão patrimonialista, ou seja, há um movimento que leva ao desaparecimento da própria ideia de conflito de interesses entre os projetos do poder político e os interesses privados dos detentores do poder econômico. O poder político tornar-se subordinado, sem mediações, ao poder econômico: o poder econômico tornar-se o poder político.

Pode-se, ainda, afirmar que a aproximação, quase identidade, entre o poder político e o poder econômico (um complexo de interesses econômicos, financeiros, midiáticos, etc.) produz o aumento da corrupção, mas dificulta sua identificação, isso porque muda o paradigma do próprio sistema de corrupção, bem como desaparecem ou são drasticamente reduzidos os mecanismos de controle dos atos do governo. Antes, o corruptor (geralmente, o detentor do poder econômico) “comprava” o corrupto (detentor de parcela do poder político) para alcançar um objetivo distinto daquele que se daria no exercício legítimo do poder político. Havia, então, uma relação oculta entre política e economia.

Agora, quando o detentor do poder econômico assume diretamente o poder político, desaparece qualquer distinção entre o poder político e o poder econômico, os interesses privados passam a ser tratados, sem qualquer mediação (nem sequer o recurso à corrupção vulgar) como “interesses públicos”, isso em corrupção do sistema econômico, do princípio da livre concorrência, do sistema de proteção trabalhista e dos demais direitos sociais, do sistema de direitos e garantias liberais, da liberdade de informação, enfim, corrompe-se o próprio Estado Democrático de Direito.

Foto de Edilson Dantas, na festa da Premiação Brasileiros do Ano, da revista Istoé, em SP.

Ainda, e nesse particular se está a seguir a descrição de Luigi Ferrajoli do contexto italiano (mas, que poderia ter sido escrito por um brasileiro sobre o que se passa aqui), compõem o quadro de crise da democracia constitucional, a perda do papel dos partidos políticos na mediação representativa, a afirmação da televisão como forma privilegiada da comunicação política, o controle da informação (inexistência de garantias do direito ativo de liberdade de quem faz a informação e do direito passivo à não desinformação), a tentativa de uniformizar o pensamento no sentido de naturalizar o status quo (o que passa pela demonização dos diferentes, em especial daqueles que resistem a esse projeto), a transformação da informação em uma fábrica de consenso (a televisão, como percebe Marcia Tiburi, como uma prótese de pensamento), a despolitização massiva e a primazia dos interesses privados (a perda do valor da solidariedade).

O círculo parece se fechar. Não se mostram claras as saídas para essa crise. Mas, aderir ao pessimismo imobilizador equivaleria a aceitar o projeto que levou à crise do Estado Democrático tanto na Itália quanto no Brasil. Deve-se, antes de mais nada, superar a crise de imaginação que assola aqueles que pretendem construir um mundo melhor.

A partir da reação aos projetos educacionais emancipatórios (e, hoje, não pode mais haver dúvida de que a educação nem sempre é um fator de emancipação humana), poder-se-ia apostar em um modelo de educação crítico e pensado para a realidade do Brasil, uma educação comprometida com a transformação social e capaz de ressignificar a existência de valores que são inegociáveis, como o primeiro passo para superar o atual estado das coisas. Essa hipótese parece promissora na exata medida em que são claros os seguidos atentados aos projetos educacionais emancipatórios e as demais tentativas de controle ideológico, impostas desde o ensino fundamental, bem como nas horas de “lazer” pela indústria cultural e, no caso brasileiro, pela programação das redes de televisão.

Em um próximo texto nesta coluna, essa ideia será aprofundada a partir da hipótese de que o projeto ideológico-conservador, que no Brasil recebeu o nome de “Escola Sem Partido” (e que nos Estados Unidos da América fez com que o Tea Party passasse a exercer influência nas escolas), e que procura forçar a adesão a uma determinada ideologia que se apresenta como – e que alguns desavisados acreditam ser – neutra, aparece como um sinal de que a educação transformadora ameaça o projeto político de dominação que aposta na produção em larga escala de indivíduos acríticos, voltados exclusivamente para o consumo e incapazes de romper o consenso imposto no interesse dos detentores do poder econômico.

Rubens Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ e escreve a Coluna ContraCorrentes, aos sábados, com Giane Alvares, Marcelo Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano.

Foto: Antonio Di Pietro, um dos protagonistas da mani pulite.

 

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