A Ditadura do Judiciário rasga qualquer chance de defesa e é retrocesso civilizatório

Por Roberto Tardelli, no Justificando

Nos idos da ditadura militar, no que chamávamos de Emenda nº 01/69, havia uma clareza. Em seu art. 181, o selo de qualidade, explicitamente dizia que Ficam aprovados e excluídos de apreciação judicial os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964″.

O Poder Judiciário, excluído do processo histórico-político, somente assim o foi porque houve uma grandiosidade de seus membros em não tolerar o regime de exceção; por não ser um aliado confiável, embora o STF fosse já àquela época cordato e dócil aos interesses do governo, melhor seria que se abrisse uma fenda no princípio da inafastabilidade de apreciação dos conflitos de interesse pelo Judiciário.

Finda a ditadura militar, sobreveio a Constituição-Cidadã e, por algum tempo, medrou uma esperança de construção de um sistema jurídico que se sentisse libertado pelo fato de ser o Brasil uma república fundada, dentre outros pilares, na cidadania e na dignidade da pessoa humana.

Sim, a enorme contradição, cuja culpa assumo por ser da geração que deveria combatê-la e não o fez, estava em que, mesmo com uma constituição evidentemente de inspiração humanista, o pau continuava quebrando e pretos e pobres eram seviciados, como, de resto, sempre ocorreu na História desse hospício gigante, chamado Brasil. Para muitos, a Constituição era somente um texto distante.

Era uma contradição grave, que haveria de ser enfrentada um dia. Não sabíamos que estaria por vir uma vulgarização de uma pilastra de sustentação da República; não supúnhamos que iríamos levantar, pedra sobre pedra, uma doutrina que deixou sem proteção e, curiosamente, sem possibilidade de apreciação pelo Poder Judiciário, atentados contra o maior dos valores ético-jurídicos do sonho constitucional de 1988, que é a proteção da liberdade.

Foi uma onda a que não demos o devido valor e que acabou levando as consciências jurídicas do país, muitas delas notáveis, recrutadas, contudo, para o front inexistente da Guerra Contra O Crime. Estabelecido o exército de pensadores, afiadas as inteligências para a desconstrução dos direitos, o bombardeio não tardaria.

Bastaria uma força policial doutrinada para destruição.

As hostes inimigas foram claramente identificadas na criminalidade comum, principalmente nos crimes contra o patrimônio e no tráfico de entorpecentes – este último, eleito consensualmente como o maior inimigo da estabilidade dos lares brasileiros.

Ninguém ou muito poucos se davam conta que as estruturas de inserção econômica-social-política-cultural não se renovavam, enquanto a população dobrava de tamanho e enquanto mais se aprofundava o fosso da desigualdade, enquanto aumentava o processo de favelização, enquanto caíam no abismo os projetos de educação e saúde públicas, enquanto mais e mais se concentravam as terras agriculturáveis, enquanto se agravava a agressão ao meio-ambiente, enquanto males civilizatórios como o racismo e a misoginia eram marginalizados do debate democrático, nunca houve, de fato, democracia.

O enfrentamento dessas questões implicariam sacrifícios à elite que se incomodava com a criação de direitos inéditos a uma população que nunca teve direitos. A cortina de fumaça, nesses tempos de medos líquidos estava fácil e era óbvia: havia a necessidade de um maior recrudescimento penal, que atenderia às necessidades de controle social, em razão dessa malha inédita de direitos ao populacho; tudo, essa é a ironia, sob o aplauso desse populacho, que não se dava conta que os movimentos eram no sentido de legitimar um chicote mais grosso para suas costas.

Nesse caldo de cultura, era preciso combater o único mecanismo de defesa ágil que havia, o único mecanismo que poderia repor as coisas em seus lugares. Iniciava-se, assim, uma doutrina, a que juristas mais cultos do que eu (algo não muito difícil, reconheço) chamariam de “defensiva”. Pouco a pouco, o habeas corpus foi sendo desconstruído e às únicas situações em que ele poderia ser derradeiramente chamado, ele não mais poderia responder.

Foi a vitória do não-pensamento, resumido a um clichê: “as estreitas vias do habeas corpus não comportam análise de provas”.

Um tiro no peito e aquela prisão, acima trazida, restará soberana, ainda que, para sua decretação, forçosamente tenha a autoridade judiciária procedido a uma análise das provas. Se a análise que fez for abusiva, estúpida ou preconceituosa (exemplos apenas de abusos de autoridade), nada poderá ser feito e não haverá remédio contra ela, não porque a lei os houvesse impedido, como fizeram os militares nos anos de chumbo.

O que dói na alma é ver que é o próprio Judiciário que alija do Judiciário a apreciação de uma prisão abusiva.

É o próprio Judiciário e seu acólito fundamental, o Ministério Público, concebido no ventre constitucional para ser grande protetor dos valores constitucionais, que cuidaram de negar jurisdição aos que se encontram injustamente presos, como a negar pão aos que têm fome.

Ninguém pareceu se importar que essa negativa quebra por completo a paridade entre as partes, princípio fundamental de qualquer confronto minimamente civilizatório, desde um jogo de futebol de botão até uma disputa processual, na medida em que se reconhece a possibilidade de uma apreciação superficial da prova, em um pedido de prisão, mas nega a mesma apreciação superficial da prova em um pedido de soltura.

Inverteram-se as posições e a porta de entrada à prisão é muito mais larga e ampla que a porta de saída, a cada dia mais estreita, a não tornar surpreendente os dados do CNJ, acerca de nossa realidade prisional. Penso que, vistos de perto, esses dados serão ainda mais chocantes.

Lembro-me de uma oportunidade de sustentação oral, no TJSP; aberta a sessão da Câmara Criminal, seu Douto Presidente alertou aos presentes que nenhum pedido, que implicasse o exame de provas, feito em HC, seria conhecido; antes de qualquer defesa, anunciou a regra de ferro: nenhum HC seria apreciado e, por consequência, deferido e, finalmente, ora bolas, que fossem os advogados cantar em outra freguesia. Pensei, “teje julgado e teje indeferido.”

Essa desconstrução do Habeas Corpus, esse seu esvaziamento equivale à negativa de jurisdição, fazendo-nos aproximar, na realidade crua da vida, à realidade formal da Constituição dos militares, reconheça-se, mais sinceros. É a porta de entrada para a ditadura, não escrita, ascética, invisivelmente presente.

Tamanha é essa desconstrução que, ontem, tive que ouvir do Procurador de Justiça, pessoa que tinha na conta de ser gentil e elegante, pelo assim pensei durante os mais de vinte anos em que convivemos fraternalmente no Ministério Público, dizer, da tribuna da Procuradoria Geral de Justiça, investido da enorme responsabilidade de falar em nome do Ministério Público, em solenidade de julgamento, que eu deveria convencer a cliente, que se rasga a gritar por sua inocência, que fizesse uma delação premiada.

Naqueles minutos horrorosos em que temos que ouvir o insuportável, fiquei pensando: em que quadra histórica um agente ministerial de alto escalão, homem dotado de titulações acadêmicas que obteve, em nome de uma proteção à liberdade, que jurara no passado e que eu via abjurar no presente, teria a cara de pau de sugerir ao advogado que deixasse de lutar pela inocência exclamada pelo réu, para transformá-lo em mais um delator, vulgarizando ao tom de pilhéria o direito à presunção de inocência, trazendo para si o disparador de raios de culpa.

Olhava para dentro de mim, ouvindo aquele delírio persecutório, quando me dei conta do verso brechtiano:

“Realmente, vivemos muito sombrios!

A inocência é loucura”.

Roberto Tardelli é Advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway. Procurador de Justiça do MPSP Aposentado.

 

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