Saneamento precisa ser inserido na agenda política do país. Entrevista especial com Roberval Tavares de Souza

Vitor Necchi – IHU On-Line

A lei que prevê a universalização do saneamento básico até 2033 completou dez anos em janeiro e, no ritmo atual, isso não será alcançado. O prognóstico negativo é do presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental – Abes, Roberval Tavares de Souza. Para atingir a meta, seria necessário investir cerca de R$ 15 bilhões por ano até 2033, mas a média de investimento é de R$ 8 bilhões, ou seja, quase a metade. “Se continuar neste ritmo, não conseguiremos universalizar no prazo estipulado”, afirmou Souza em entrevista concedida por telefone para a IHU On-Line.

Conforme Souza, “o grande problema é que os governos, tanto municipais, quanto estaduais e federal, não encaram o saneamento como prioridade de Estado”. Ele garante que a meta de universalização será alcançada somente quando o saneamento for encarado como prioridade pelo Estado. Enquanto isso não ocorre, as consequências são graves. “A conexão é total entre saneamento e saúde”, ressalta. “A Organização Mundial da Saúde preconiza em estudos recentes que cada real investido em saneamento reduz quatro reais em despesas na saúde.” O resultado dos investimentos insuficientes já é percebido, pois há uma quantidade crescente de doenças de vinculação hídrica nos Estados onde o saneamento é menos avançado.

Os efeitos vão além. “Nas cidades onde há saneamento mais avançado, ocorrem muito menos faltas ao trabalho decorrentes de doenças. O saneamento interfere diretamente na produtividade das cidades e na renda per capita dos trabalhadores. É um item muito delicado relacionado à qualidade de vida”, explica Souza.

Roberval Tavares de Souza, presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental – Abes, é graduado em Engenharia Civil pela Universidade de Mogi das Cruzes – UMC e pós-graduado em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo – USP e em Gestão Empresarial pela Fundação Getulio Vargas – FGV. É superintendente da Unidade de Negócio Sul da Diretoria Metropolitana da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – Sabesp, onde já foi gerente de manutenção, de operação, da área comercial e do departamento administrativo e financeiro.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em termos gerais, o que estabelece a Lei do Saneamento Básico, cuja promulgação completou dez anos em 5 de janeiro?

Roberval Tavares de Souza – O grande objetivo é institucionalizar a regulação do setor de saneamento em todo o país. Ela veio para estabelecer contratos de programas e de concessões entre as operadoras e os municípios, que são os poderes concedentes do serviço de saneamento. Outro ponto fundamental que a lei prevê é a universalização do saneamento até o ano de 2033. Quanto ao primeiro ponto, isso aconteceu de forma efetiva. Hoje, as operadoras estão muito mais calcadas na lei para operar o sistema de saneamento. O problema ficou com a parte da universalização. Estamos muito longe de atingir a meta até 2033, que é universalizar o abastecimento de água, a coleta, o tratamento de esgoto e a coleta de resíduos sólidos em nosso país.

IHU On-Line – O primeiro princípio fundamental dessa lei é a universalização do acesso, mas, conforme levantamento da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental – Abes a partir de dados de 2015, 34,7% dos domicílios brasileiros, ou seja, um em cada três, ainda não tem esgoto ligado à rede pública. Isso representa cerca de 69,2 milhões de pessoas. Esse quadro deve-se a quê?

Roberval Tavares de Souza – O grande problema é que os governos, tanto municipais, quanto estaduais e federal, não encaram o saneamento como prioridade de Estado. Muitos encaram como prioridade de governo, mas passa o governo, vem outro e não continua os projetos implantados pelo anterior. Nós só vamos conseguir atingir a meta de universalização quando o saneamento for encarado como uma prioridade pelo Estado. Um exemplo: a vacinação contra paralisia infantil é uma prioridade de Estado. Não importa o governante que sentar na cadeira, prefeito, governador ou presidente, este programa não se interrompe. O saneamento deve ser encarado dessa maneira, de forma perene, com investimento ao longo do tempo, para que consigamos atingir a universalização. Lógico que estou falando de uma média do país. Há alguns Estados e municípios que efetivamente vêm encarando o saneamento como prioridade. Por exemplo, os Estados de Paraná, São Paulo e Minas Gerais que, ao longo dos últimos 25 anos, trataram a questão como prioridade de Estado. Desta maneira, são os estados mais bem classificados na questão de saneamento.

IHU On-Line – Além da questão do esgoto, a lei estabelece as diretrizes para abastecimento de água, limpeza urbana, manejo de resíduos sólidos, drenagem e manejo de águas pluviais urbanas. Qual a situação desses outros serviços, no que ser refere à cobertura?

Roberval Tavares de Souza – Saneamento tem quatro pilares: abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, coleta e disposição final de resíduos sólidos e drenagem urbana. A questão da água e do esgoto está muito bem explorada pelos indicadores que demonstramos. Com o avanço constante da coleta, tem muito a avançar ainda a questão da disposição final dos resíduos.

Nosso país ainda dispõe de vários lixões, que deveriam acabar e ser substituídos por aterros sanitários. Há dois meses, foi inaugurado em Brasília um aterro sanitário. Ou seja, a capital do país ainda tinha lixão com catadores pegando lixo, de forma totalmente inconveniente. Com o aterro, progressivamente o lixão será deixado de lado, até a sua extinção. Quanto à questão da drenagem, é um assunto ainda tratado muito localmente. Vários municípios desenvolveram seus planos de drenagem, mas ainda falta bastante para atingir a excelência nesse serviço.

IHU On-Line – A precariedade no saneamento básico explica o recrudescimento de doenças como dengue, zika, chikungunya e febre amarela?

Roberval Tavares de Souza – Com certeza. A conexão é total entre saneamento e saúde. A Organização Mundial da Saúde preconiza em estudos recentes que cada real investido em saneamento reduz quatro reais em despesas na saúde. Os governantes precisam se apoderar dessa informação para ter o saneamento como prioridade de Estado. Observamos uma quantidade crescente de doenças de vinculação hídrica nos Estados onde o saneamento é menos avançado. Dados do Ministério da Saúde demonstram que as cidades com pior classificação em saneamento são aquelas que têm os maiores gastos com saúde corretiva.

IHU On-Line – Que outros problemas decorrem da cobertura limitada?

Roberval Tavares de Souza – O principal item é a saúde. Há uma grande vinculação entre saneamento e qualidade de vida. Nas cidades onde há saneamento mais avançado, ocorrem muito menos faltas ao trabalho decorrentes de doenças. O saneamento interfere diretamente na produtividade das cidades e na renda per capita dos trabalhadores. É um item muito delicado relacionado à qualidade de vida.

Os trabalhadores de cidades com baixos índices de saneamento acabam faltando mais ao trabalho, gerando queda de produção e, por consequência, redução do salário. Isso inclusive gera custos ao governo, por conta dos afastamentos.

IHU On-Line – Onde a situação do saneamento básico é melhor? E pior?

Roberval Tavares de Souza – A região Sudeste tem o melhor saneamento do país. A pior situação é no Norte. O Estado mais avançado é São Paulo, seguido pelo Paraná, e o que tem mais dificuldade com saneamento é o Pará, seguido do Amapá.

IHU On-Line – De quem é a responsabilidade pela execução do saneamento básico?

Roberval Tavares de Souza – A responsabilidade é municipal. O município é o que chamamos de poder concedente. Isso exclui as regiões metropolitanas, onde os Estados e os municípios têm uma ação compartilhada em relação ao saneamento. A característica do saneamento é de serviço local. Para os municípios do interior, temos uma atuação específica. O serviço pode ser executado por meio de uma autarquia, que pode contratar uma empresa estadual ou privada. Nas regiões metropolitanas, a gestão é compartilhada, isto é, Estados mais municípios se unem para resolver os problemas.

IHU On-Line – Embora a responsabilidade seja primeiramente dos municípios, as verbas são de natureza federal também?

Roberval Tavares de Souza – Sim. O governo federal tem como responsabilidade a integração dessa situação e a disponibilização de recursos do próprio governo ou de linhas de financiamento de seus bancos de fomento, como BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] e Caixa Econômica Federal, para que as operadoras consigam investir. Porém, os investimentos em saneamento ocorrem apenas onde ele efetivamente foi colocado como prioridade, mesmo sem apoio do governo federal, que não tem disponíveis linhas de financiamento constantes para que o saneamento possa existir.

IHU On-Line – O descumprimento do que a lei estabelece acarreta algum tipo de responsabilização?

Roberval Tavares de Souza – A lei disponibiliza um plano estratégico, o Plano Nacional de Saneamento Básico, que estabelece que o saneamento deve ser universalizado até 2033. Para isso, precisaríamos investir cerca de R$ 15 bilhões por ano até 2033. A média de investimento em saneamento no país é de R$ 8 bilhões, ou seja, quase a metade. Portanto, se continuar neste ritmo, não conseguiremos universalizar no prazo estipulado. Não há responsabilização para o descumprimento da meta.

IHU On-Line – O que falta para ampliar o saneamento básico no país? Recursos, vontade política?

Roberval Tavares de Souza – O primeiro ponto é vontade política, sem dúvida. Reitero: temos pontos positivos. Em alguns Estados onde a questão foi colocada como prioridade, o saneamento avançou muito. O saneamento não avança onde ele não entrar na agenda política. E os Estados das regiões Norte e Nordeste não estão contemplados como locais onde o saneamento avança porque não há prioridade política. Havendo isso, o segundo ponto é ter disponibilidade de recursos financeiros para que se consiga efetivar a tão almejada universalização.

Enterrar tubo não dá voto, diz o jargão. Este é o grande problema do político, ele não enxerga os benefícios de implantar o saneamento. São benefícios correlatos à saúde, à redução de despesas com doenças de veiculação hídrica. Preferem construir ponte porque dá para fazer foto ao lado dela. Não dá para fazer o mesmo com o tubo, porque ele está enterrado.

IHU On-Line – Quais são as perspectivas para aumentar a cobertura de saneamento básico?

Roberval Tavares de Souza – A luta diária da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental – Abes é discutir o saneamento. Temos eventos durante todo o ano e um grande evento anual. Nosso congresso será em outubro, em São Paulo, para debater e arrumar caminhos e soluções. O grande caminho é inserir o saneamento na agenda política do país. Assim, conseguimos avançar muito mais rápido. Se estiver nessa agenda é porque a sociedade está cobrando, e isso é importante para o avanço do saneamento no país.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Roberval Tavares de Souza – Há um tema, que está acontecendo muito no país, que leva a um desencontro com o que estamos promovendo em relação ao saneamento. Há muita discussão sobre a privatização do setor de saneamento. Só que os Estados não estão encarando isso como uma discussão sobre saneamento. Simplesmente entregam as empresas em troca de dívida fiscal. O Rio de Janeiro tinha um déficit fiscal e resolveu entregar a empresa de saneamento para quitar parte dessa dívida.

Não estão discutindo saneamento, se é melhor ou pior privatizar o setor. Nós somos totalmente contrários à não discussão. Não está havendo debate entre a sociedade, as entidades de classe que têm a ver com saneamento e o governo. O governo simplesmente está querendo entregar as empresas como uma moeda de troca. Isso não é legal. Deve haver debate para se saber o que é melhor para o saneamento do país.

IHU On-Line – É um momento delicado, porque o governo federal, em troca da renegociação das dívidas dos Estados, está exigindo a privatização dos serviços de saneamento.

Roberval Tavares de Souza – Está exigindo sem nenhum debate, simplesmente olhando a questão financeira. Sou totalmente adepto ao controle fiscal. O que estamos discutindo é que não está havendo debate sobre se saneamento é bom ou ruim. Temos exemplos de ótimas empresas públicas e ótimas empresas privadas, como temos exemplos de péssimas empresas públicas e péssimas empresas privadas. A discussão não é se é público ou privado, mas de como melhorar o saneamento, e o governo federal não está discutindo isso, estão querendo entregar as empresas públicas, forçando a barra sobre os Estados que estão com problemas fiscais e dívidas enormes. Estão entregando as empresas de saneamento sem olhar se é bom ou ruim para a população.

O debate tem que ocorrer com todos os entes da sociedade. Saneamento é saúde. Não é algo que implanta, por exemplo, como a estrutura de telefonia. A correlação entre os gastos de saúde com doenças de veiculação hídrica é total. Isso pode afetar, e muito, o desempenho da saúde no país.

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