Focamos no Diabo e esquecemos do Inferno

Mas o mundo e as pessoas que nele habitam não são a mesma coisa”.
Arendt, Hannah (Homens em tempos sombrios, 2008).

Por Leonardo Marino, em Justificando

Willian foi fruto da violência. Sua mãe foi violentada aos 13 anos e engravidou de seu algoz. Contudo, como poderia acontecer, sua mãe não realizou um aborto ou rejeitou o filho fruto da violência. Pelo contrário, procurou de todas as formas construir as condições necessárias para a sua sobrevivência e o amou de maneira incondicional. No entanto, a cruel realidade das regiões mais empobrecidas do Brasil, obrigou sua mãe a fazer uma dura escolha, acompanhar a criação de seu filho ou garantir o sustento de sua alimentação. A escolha, quase que natural, foi pela segunda opção e Willian, assim como, outras crianças de sua comunidade, foi educado pelas ruas, nas valas de esgoto, nos campos de terra batida e nas intensas relações de convívio inerentes aos habitantes das Favelas.

Sua presença no universo escolar foi curta, não passou dos primeiros anos do Ensino Fundamental, engrossando a massa de brasileiros considerados como analfabetos funcionais. Willian foi seguidamente expulso dos estabelecimentos de ensino. Para os professores, Willian só acarretava trabalho, seu comportamento não se adequava ao ambiente escolar e suas brincadeiras excessivas eram consideradas como um empecilho para o desenvolvimento dos demais alunos. Se fosse uma criança oriunda das camadas mais abastadas da sociedade, seria considerado como uma criança hiperativa e teria um acompanhamento psicopedagógico ao longo de sua vida de estudante. Porém, como originava-se dos estratos mais empobrecidos da sociedade, sua ‘agitação’ provocou seu distanciamento dos bancos escolares.

Com 15 anos, Willian passou a atuar como olheiro do tráfico. Sua carreira no crime tinha início, mas, de forma semelhante à sua vida escolar, era não foi bem-sucedida. Em pouco tempo, Willian foi preso e enviado para uma instituição socioeducativa. Tal fato ocorreria diversas vezes ao longo dos próximos três anos e seria um prenúncio de uma vida marcada pela apartação prisional.

A maioridade, comemorada com festas e presentes por diversos jovens, para Willian representou sua entrada no sistema penitenciário brasileiro

Com pouco mais de 18 anos, Willian foi preso em um latrocínio que culminou com a morte de 3 pessoas, entre suas vítimas estava uma criança de 3 anos e sua mãe. Willian foi duramente julgado e o clamor da opinião pública acarretou a uma severa condenação. Porém, sua entrada no sistema penal ocorreu com naturalidade, uma vez que a vida nos presídios não se distanciava muito da realidade que ele foi acostumado a tolerar ao longo de sua vida. O odor nauseante dos presídios, marcado por uma mistura de fezes, urina, esgoto, suor e comida azeda não lhe era anormal, na verdade, representava uma triste similaridade com diversos aspectos de sua vida, o que de certa forma garantia a sua parcimônia.

No último mês de janeiro, a brutalidade da vida de Willian e seu rosto foram mundialmente conhecidos. Ele foi um dos presos filmados em seus derradeiros minutos de vida. Willian foi decapitado e teve seu corpo incinerado nas rebeliões que eclodiram nos presídios brasileiros. Willian foi abortado, tardiamente abortado, o sistema prisional produziu o ato que sua mãe não realizou. Em seus últimos instantes de vida, Willian materializou com seu corpo a dura realidade vivenciada nas periferias brasileiras, regiões em que atos similares ocorrem de forma corriqueira, sem que se desperte atenção.

A história contada até aqui é um híbrido entre ficção e realidade. Willian não existe, porém, sua história guarda semelhanças com a de inúmeros jovens brasileiros; são milhares de Willians espalhados por esquinas, becos e ruelas das grandes cidades. Os atos de barbárie vivenciados nos primeiros dias de 2017, assustaram a opinião pública, pois colocaram luz sobre uma realidade obscurantizada e contribuíram para revelar o tempo sombrio em que vivemos; um tempo marcado pelos extremos de violência e por uma visão estreita da realidade.

O reducionismo presente na maior parte das análises sobre crimes e criminosos nos leva a desprezamos as motivações, as formas como os Willians constroem seus códigos de conduta, seus valores, as maneiras como eles se movem no mundo e de que forma eles sobrevivem a uma realidade bestial. Em uma cultura individualista como a nossa, consideramos o crime como uma opção, uma opção de indivíduos que não procuram os meios legais para a sua sobrevivência, ou como uma patologia, uma perversidade congênita de indivíduos que nasceram para fazer o mal. Para nossa infelicidade, o reducionismo analítico nos coloca em um círculo vicioso, em um processo continuo de produção de Willians e de transformação destes indivíduos em objetos que devem ser tratados ‘inumanamente’, que merecem um destino brutal pelos atos cometidos. O reducionismo nos leva a confundir justiça com vingança e a normalizar a barbárie.

Em momentos como o que vivemos, marcado por episódios de extrema violência, com dezenas de pessoas decapitadas, esquartejadas e incineradas, questionamos o sentido de humanidade dos indivíduos que cometem tais crimes; questionamos se existe, concretamente, a possibilidade de ressocialização de indivíduos capazes de realizarem atos com tamanha crueldade e violência, transformamos os indivíduos em monstros. Nestes momentos, reduzimos a nossa visão e focamos apenas no Diabo, mas, esquecemos do Inferno. Em outras palavras, atribuímos aos indivíduos a total responsabilidade pelo ato e esquecemos os processos precedentes. Arrogamos toda a responsabilidade aos indivíduos, mas não olhamos suas trajetórias de vida, os processos formativos que antecedem ao ato de violência derradeira.

A redução da violência ao ato violento, obscurece as múltiplas facetas do mundo e não contribui para entendermos as origens da brutalidade. Não devemos isentar os indivíduos de suas responsabilidades, não devemos absolver incondicionalmente as pessoas que realizam atos bárbaros, porém, é fundamental que investiguemos suas origens, suas trajetórias; é necessário entendermos o papel que a sociedade e o Estado desempenham na construção desses indivíduos e na concreção de uma conjuntura cada vez mais violenta. Não podemos reduzir a criminalidade a uma escolha discricionária entre o certo e o errado, não podemos imputar unicamente aos indivíduos a responsabilidade pelos crimes.

Como nos alertou Nicos Poulantzas (2000), em sua obra ‘O Estado, o poder e o socialismo’, os problemas reais são bem graves e complexos para serem resolvidos por generalizações ultra simplificadoras e grandiloquentes, que jamais conseguiram explicar o que quer que seja.

Leonardo Freire Marino é Doutor em Geografia pela UFF e Professor Adjunto da UERJ, onde integra o Grupo de Pesquisa Geografia História e Política desenvolvendo estudos e pesquisas sobre violência e educação.

Familiares de detentos aguardam em frente à penitenciária de Alcaçuz. Foto: Anderson Barbosa /G1.

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