A tenologia da invisibilidade

Por J. P. Cuenca, no The Intercept Brasil

Na semana passada, o monólogo em tom de desabafo do humorista e escritor Assaf Harel na última edição do seu programa na TV israelense viralizou na internet. É fácil entender a popularidade do vídeo. Harel parece revelar uma verdade que, para muitos, precisa de decodificação: o estado de apartheid em Israel só existe por ser baseado na desumanização dos palestinos.

Não apenas por sionistas de direita, diga-se. O ponto de Harel é que a esmagadora maioria da população do país, vivendo sua vidinha do lado certo do muro, prefere ignorar o estado de opressão e miséria que seu governo impõe aos palestinos há décadas. “A inovação mais impressionante de Israel, mais que qualquer projeto de alta tecnologia ou armamento Rafael, é nossa impressionante habilidade para ignorar o que está acontecendo aos nossos vizinhos a poucos quilômetros de distância. Um povo inteiro transparente. Como se não existisse.”

Se há algum paralelo possível entre a ocupação das terras palestinas e o estado de exceção sob o qual vivem milhões de brasileiros em favelas, sem direitos e sob opressão militar e terrorismo de Estado, talvez o maior seja exatamente esse: o solipsismo dos privilegiados do lado de cá do muro.

Trata-se de conceito filosófico bastante elementar: baseia-se na negação de tudo o que está fora da experiência do indivíduo. Como um “só acredito vendo” in extremis, o solipsismo é uma poltrona cômoda para a moral dos indivíduos. Se o que eu não vejo não existe, mais fácil deixar de apontar os olhos para certas realidades e abrir uma cervejinha gelada – nas praias de Tel Aviv ou do Rio. Afinal, numa sociedade entorpecida e dormente, estamos tão acostumados ao assassinato de jovens negros em autos de resistência quanto a beber cerveja de milho.

Algumas das viagens de regresso mais estranhas que já fiz na vida duraram pouco mais de uma hora: sair de Porto Príncipe, no Haiti, e desembarcar em Miami, atravessar o check-point de Erez, em Gaza, e chegar a Tel Aviv, sair do Alemão numa tarde de operação policial e chegar a Botafogo. Em todas, chegando ao destino, a mesma sensação bizarra de normalidade. Do terror à banalidade do cotidiano, vestimos antolhos que nos fazem deixar de ter visto o que vimos e saber o que sabemos. E aí o trabalho é evitar que a Matrix nos cegue de novo e apague as ruínas da memória. E fazer isso sem cair na desesperança – ou desespero.

É sintomático que, não só em Israel, organizações que tentam dar visibilidade ao que está acontecendo ganhem a pecha de “extrema-esquerda”. É uma falácia, infelizmente cada vez mais popular. Como diz Harel, tachar de extremista a defesa de direitos humanos fazendo um paralelo com a extrema-direita que defende a violência – ou mesmo a assume com as próprias mãos – não faz nenhum sentido. É apenas mais uma tentativa de apagamento.

Essa desumanização do “outro” através de uma capa de invisibilidade está muito bem estruturada por uma grande imprensa que manipula a realidade e costuma trabalhar como assessoria de imprensa do Exército Israelense (lá) ou da Polícia Militar (aqui).

Um exemplo histórico disso, como já escrevi, foi a cobertura apologética e irresponsável do jornal O Globo sobre o início da ocupação das favelas pelas Unidades de Polícia Pacificadora e pelo Exército Brasileiro, com o mesmo tom triunfal dos releases sobre a Guerra do Iraque escritos pelos redatores do Donald Rumsfeld. Dentro das suas fronteiras, no ar-condicionado do aquário, foi fácil e prático ignorar os direitos civis negados aos moradores de favelas, negros e pobres desaparecidos ou assassinados pelas forças do Estado transformando-os em homo sacer contemporâneos.

Homo sacer é uma figura do direito romano arcaico, um ser humano excluído dos direitos civis que podia ser morto por qualquer um impunemente. No Brasil, não têm sido poucos. Ao longo de um período de 10 anos (2005-2014), foram registrados, apenas no estado do Rio de Janeiro, 8.466 casos de homicídio decorrentes de intervenção policial. Mais de dois por dia.

Quantos viraram notícia? E como? É através desse silêncio e do viés em notícias onde todos são igualmente tratados como “suspeitos” que a imprensa ratifica a marginalização dessas comunidades e o terrorismo de estado. Seus conhecidos dois pesos e duas medidas têm conseqüências dolorosas para quem não é branco e tampouco chegou à classe média.

Não precisamos nem mesmo ficar na violência policial. As reações ao caso do menino de 13 anos que morreu após ser perseguido por seguranças do Habib’s são triste exemplo, especialmente depois que um médico bolsonarista assinou o laudo necroscópico. Elas são as mesmas provocadas por qualquer corpo de brasileiro pobre no chão. Enquanto a vida de uns valer mais que a de outros – e nós preferirmos viver desviando o olhar para tranquilizar a consciência que nos resta – estaremos longe de qualquer futuro.

 

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