Em busca de comida, mais de 100 índios venezuelanos Warao migram para Manaus

Os indígenas, que já foram deportados pela Polícia Federal em Roraima, estão recebendo ajuda humanitária da população

Síntia Maciel, especial para a Amazônia Real

Quem circula diariamente pelo entorno da Rodoviária de Manaus, nas ruas do Centro ou do bairro Educandos já percebeu homens, mulheres e crianças falando uma língua estrangeira desconhecida, ou um espanhol incompreensível. As mulheres chamam a atenção pelos longos cabelos escuros e saias e vestidos coloridas. Esses são os índios venezuelanos da etnia Warao, que estão migrando desde o mês de janeiro à capital amazonense em busca de comida.

Eles, que falam a língua do mesmo nome da etnia, estão longe de casa a uma distância superior a 1.700 quilômetros. São os povos mais antigos do Delta do Orinoco, conhecidos também como “pessoas da canoa”.

Segundo a Pastoral do Migrante, ligada à Arquidiocese de Manaus, um mapeamento identificou a presença de 130 índios Warao na cidade no mês de janeiro de 2017. Atualmente, eles somam 115 divididos em três grupos. Um deles, com 30 pessoas, está abrigado há mais de um mês no entorno da Rodoviária, que fica na zona centro-sul da cidade.

No local, eles dormem em barracas de lona azul. Lavam as roupas e as penduram na cerca de arame farpado da rodoviária, como se fosse um gigante varal. Tudo que eles têm dentro das barracas são sacolas com alimentos, calçados, medicamentos, roupas, brinquedos, entre outros itens, doados pela população de Manaus; pessoas ligadas a igrejas, escolas e o cidadão comum que tem o sentimento humanitário e solidário.

Como já publicou a agência Amazônia Real, os índios Warao fogem para cidades brasileiras do extremo Norte desde 2014, quando a crise política e econômica na Venezuela se agravou, provocando a falta de gêneros alimentícios, de higiene pessoal, remédios, atendimento de saúde e energia para a população.

Os índios viajam das aldeias do Delta do Orinoco, no estado Delta Amacuro, no nordeste do país vizinho, em canoa, ônibus, pegando carona ou pagando táxi para fazer um percurso de 925 quilômetros até chegar à fronteira de Santa Elena do Uairén com Pacaraima, em Roraima.

Mas em Roraima, os Warao foram hostilizados por parte da população. Entre 2014 e 2016, a Polícia Federal deportou 532 índios a pedido da Prefeitura de Boa Vista, que atendeu a uma solicitação de populares descontentes com os índios pedindo esmolas nos semáforos. Em 9 de dezembro do ano passado, a polícia tentou fazer uma deportação em massa de 450 indígenas, mas a Justiça Federal suspendeu a ação.

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público Federal (MPF), em Brasília, e de mais 11 organizações signatárias dos Direitos Humanos, que defendem os direitos e a proteção dos povos indígenas e os direitos de migrantes e refugiados, entre elas a Conectas e a Cáritas Arquidiocesana, da Igreja Católica, protestaram contra as deportações em massa dos Warao pela PF.

A polícia justificou as deportações sob o argumento de os índios Warao serem “estrangeiros que estão sem documentos regular de entrada ou vencido exercendo atividade artística remunerada, inclusive, pedindo esmolas ou vendendo artesanatos nas ruas e semáforos, o que é incompatível com a condição de turista”, diz uma nota divulgada pela PF de Roraima.

Cruzando a floresta amazônica

Para chegar a Manaus, os índios Warao partem de Boa Vista de ônibus e percorrem os 781 quilômetros da viagem pela rodovia BR 174 – que liga os estados do Amazonas e Roraima – a região mais preservada da floresta amazônica.

Na rodoviária onde está abrigado em uma barraca de lona, o indígena Warao Elias Perez, 28 anos, disse em entrevista à Amazônia Real que viajou acompanhado da esposa grávida de cinco meses, Domidia, 25 anos. Ele contou que enfrentou três dias de viagem a bordo do ônibus. O objetivo da migração, segundo ele, foi a busca por comida.

“Na Venezuela não temos emprego, não temos comida, não temos remédios, não temos esperanças de nada. A nossa única saída foi vir para o Brasil para conseguir alimentos, roupas, dinheiro e o mais que pudesse, para voltar e ajudar nossos irmãos. O governo [venezuelano] não nos ajuda em nada”, desabafa.

Perez conta que na Venezuela trabalhava fazendo pequenos serviços, mas em virtude da crise que tomou conta do país não conseguiu nem mesmo quintais para capinar e, assim, sustentar a família. A expectativa dele é partir de Manaus para casa, no Delta do Orinoco, no próximo mês de abril. Para isso, eles pretendem arrecadar dinheiro para comprar as passagens de ônibus.

As empresas que fazem o transporte interestadual entre Manaus e Boa Vista cobram pela passagem de ônibus de R$ 100 a R$ 164,00. As crianças com até 6 anos de idade não pagam. Os idosos com documentação do benefício da previdência social poder receber descontos e até a gratuidade da passagem, mas essa opção não inclui aos imigrantes.

Manauaras compram artesanatos

Uma das formas que os índios Warao conseguem dinheiro para comprar as passagens de ônibus é vendendo artesanato, arte que predomina nas aldeias desse povo, também conhecido como ‘pessoas da canoa’, pois são exímios pescadores.

A adolescente Siomara Moranera tem 17 anos. Ela, a mãe, Zulema Moranera, 35 anos, a avó, Cornotera Moranera, 65 anos, e dois irmãos, de cinco e sete anos de idade, estão abrigados na rodoviária de Manaus. Todas as mulheres são artesãs.

“Faço colares, pulseiras, brincos e a minha mãe com a minha avó saem para vender diariamente no Centro de Manaus. As peças variam de R$ 2 a R$ 5. É a única forma que temos para levantar algum dinheiro para comprar nossas passagens de volta para casa”, destaca a jovem indígena Warao.

Assim como Elias, Siomara reclamou da falta de oportunidades na Venezuela. “É grande o desemprego e o desespero entre os venezuelanos. Muitas pessoas estão passando fome por não conseguir uma ocupação remunerada”, diz.

Apesar da ajuda que vem recebendo da população de Manaus, com doação de roupas, gêneros alimentícios, entre outros materiais, tanto Siomara quanto Elias não souberam dizer quando irão voltar para a casa. Eles dizem que não há perspectivas de uma vida melhor em seu país.

Ajuda humanitária

Na primeira quinzena de fevereiro deste ano, um grupo de 40 alunos da Escola Adventista realizou uma ação solidária na rodoviária de Manaus. Eles distribuíram alimentos não perecíveis, brinquedos e roupas aos indígenas Warao. Um levantamento preliminar, de acordo com a diretora-geral das Escolas Adventistas do Amazonas e Roraima, Edeíse Printes, identificou as necessidades do grupo.

“Ao longo dos anos trabalhamos vários projetos de ação social e sempre envolvemos os jovens das nossas escolas. No levantamento feito aqui [Manaus], identificamos 30 pessoas e o que de mais urgente elas precisavam, como roupas e alimentos não perecíveis″, informa Printes. Segundo ela, uma ação semelhante também foi realizada pela igreja em Boa Vista.

A chegada dos índios Warao a Manaus chamou a atenção da Pastoral do Migrante, ligada à Arquidiocese de Manaus. A coordenadora da instituição, Valdiza Carvalho, diz que é preocupante no grupo a falta de documentação de identificação e a vulnerabilidade de mulheres e crianças. Por isso, segundo ela, as ações humanitárias junto aos indígenas precisam ser feitas quando chegam na cidade.

Desde o final de 201o o fluxo migratório de estrangeiros aumentou em Manaus. Os haitianos chegaram em massa após o terremoto que devastou Haiti. Entre 2011 e 2016 foram mais de 10 mil pedidos de refúgio solicitados pelos imigrantes na capital amazonense.

Atualmente esse fluxo migratório de haitianos caiu, segundo a Pastoral. De dezembro de 2016 a fevereiro de 2017 chegaram apenas 154 haitianos.

Conforme Valdiza Carvalho, um mapeamento realizado por instituições envolvidas com ações humanitárias identificou a imigração de 130 indígenas Warao desde o mês de janeiro de 2017. Desse número, porém, ao menos 15 Warao já retornaram para a Venezuela de ônibus, durante o período do Carnaval, restando na cidade 115 migrantes.

No caso dos índios Warao, a coordenadora da Pastoral do Mirante constatou que eles não querem ir para um abrigo público. “Em virtude da questão cultural, os indígenas não quiseram ficar nos abrigos que conseguimos, por serem fechados. Eles preferirem locais abertos”, diz Valdiza Carvalho.

Segundo ela, representantes da pastoral participaram de reuniões na Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania (Sejusc) do estado e na Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos (Semasdh) nas quais foram traçadas algumas estratégias para a ajuda humanitária aos índios Warao. As pessoas doentes foram encaminhadas a unidades de saúde, diz. “A nossa preocupação maior é com as crianças que se encontram nas ruas, correndo riscos”, afirma Valdiza Carvalho.

Ela disse que os indígenas migrantes da Venezuela que permanecem na cidade são acompanhados pela Pastoral do Migrante e pelas secretarias do governo e da prefeitura. No próximo dia 20 de março haverá uma nova reunião para avaliar a situação deles. “Essa será a quarta reunião em que será avaliado o que as duas secretarias [Sejusc e Semmasdh] podem fazer pelos indígenas que ainda estão aqui em Manaus”, diz Valdiza Carvalho.

Pastoral descarta deportação

Indagada pela Amazônia Real sobre as deportações que a Polícia Federal fez de índios Warao em Roraima e contestadas pelo Ministério Púbico Federal, a coordenadora da Pastoral do Migrante descartou uma ação semelhante da PF em Manaus.

“Ao contrário do que ocorreu em Boa Vista, em Manaus não há esse risco. A Polícia Federal não tem dinheiro para custear as passagens para deportar essas pessoas. Eles não estão fornecendo formulários para quem precisa emitir alguns documentos, imagina pagar a passagem de volta dessas pessoas, ainda que seja via deportação”, afirma Valdiza Carvalho.

A Amazônia Real procurou a Superintendência da Polícia Federal no Amazonas para a Delegacia de Migração falar sobre os índios Warao. As perguntas foram enviadas por e-mail mas não foram respondidas até o momento, entre elas, sobre o número de imigrantes venezuelanos em Manaus, destacando o total de indígenas. A reportagem apurou que, por duas vezes, agentes federais estiveram no abrigo de índios na rodoviária da cidade, mas sem abordagem ostensiva.

Em Boa Vista os Warao tem um abrigo

Na capital de Roraima estão vivendo atualmente 209 índios Warao no abrigo administrado pelo Centro de Referência ao Imigrante (CRI), segundo a Coordenação do Gabinete Integrado de Gestão Migratória de Roraima (CAMs), ligado a Secretaria de Defesa Civil. A assessoria de imprensa do governo disse que não há uma estatística sobre o número de índios dessa etnia na cidade de Pacaraima.

Segundo a CAMs, 30 mil venezuelanos migraram para Roraima entre 2015 e 2016, sendo que mais de 900 eram índios Warao. A coordenação disse que a criação do Centro de Referência ao Imigrante (CRI) os migrantes indígenas passaram viver no abrigo, onde têm alimentação e atendimento médico. “Dessa forma reduziu-se a necessidade da mendicância. Além disso também houve uma campanha de conscientização da população no sentido de não estimular mais a mendicância. Assim muitos [ Warao] retornaram à Venezuela ou dirigiram-se para Manaus”, disse a assessoria

Sobre o atual fluxo migratório de venezuelanos para Roraima, a assessoria da CAMs disse que está prosseguindo de forma constante. “Não há indicações de que essa situação irá se alterar”, informou a assessoria.

Mulheres indígenas da etnia Warao migram para Roraima (Foto: Marcelo Mora/Amazônia Real)

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