A quem interessa a reforma do Ensino Médio do Governo Temer?

Por Grupo de Trabalho de Política Educacional – USP, no Correio da Cidadania

Foi surpreendente para os professores e professoras do Brasil a apresentação de uma reforma de ensino por meio de Medida Provisória (MP 746, agora Lei 13.415/2017) pelo atual governo. Não bastasse isso, incomum até durante a ditadura militar de 1964/85, os prazos foram todos reduzidos para uma aprovação célere. Todos os seriamente envolvidos com a Educação ficamos perplexos. Sabemos que nenhuma reforma de ensino consegue ter êxito se não houver, antes e durante sua implantação, debates, discussões, leituras e tempo de reflexão para eventual mudança de práticas e perspectivas.
O que estava acontecendo com o ensino médio para que tal mudança se apresentasse como indiscutível, necessária e inadiável? Aparentemente nada, pois as evidências alardeadas para a repentina pressa são conhecidas há anos: o desempenho insatisfatório dos concluintes em avaliações nacionais padronizadas. Na verdade, não seria mais lógico abrir esse processo de mudanças após a aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que ainda está em discussão no Parlamento?

Despedaçando a formação

Lembremos também que o texto da BNCC ainda pode sofrer alterações por parte do Conselho Nacional de Educação (CNE), que tem por função essa elaboração e cujo calendário oficial prevê até o fim do ano de 2107 para finalização da tarefa. Desse modo, o texto aprovado, que toma a BNCC como pré-requisito para estabelecer certas exigências, curiosamente, teve de citar essa Base sempre no tempo verbal futuro.

A pressa, caracterizada pelo inusitado uso de uma MP para tão importante reforma do ensino, pode ser atribuída ao verdadeiro teor da medida, muito distante da propaganda, que foi desferida de modo vigoroso e talhada especificamente para o público jovem e suas insatisfações: vocês vão poder escolher seu itinerário formativo!

Na realidade, a reforma aprovada, Lei nº 13.415/2017, remodela 6 artigos importantes (art. 24; 26; 36; 44; 61 e 62) da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei 9394/96) e introduz um novo (art. 35-A), retirando, na prática, a eficácia de normas legais existentes que fortalecem a formação humana integral, a valorização dos profissionais da educação e, em especial, a real autonomia pedagógica das unidades escolares. Contraria, na essência, o que está disposto no art. 12 da LDB, de que “os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do seu sistema de ensino, terão a incumbência de: I – elaborar e executar sua proposta pedagógica”.

A principal modificação feita na LDB, por meio da Lei 13.415, refere-se ao caput do seu Art. 36, que passa a apresentar o seguinte teor: “o currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos, que deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino, a saber: I – linguagens e suas tecnologias; II – matemática e suas tecnologias; III – ciências da natureza e suas tecnologias; IV – ciências humanas e sociais aplicadas; V – formação técnica e profissional”.

Além do equívoco epistemológico, cometido nessa classificação, de denominar área de conhecimento as “ciências da natureza” e as “ciências humanas”, acrescentou-se a elas, como também às linguagens e à matemática, “e suas tecnologias” e, respectivamente, “aplicadas”, o que exacerba o aspecto técnico em detrimento de outras interpretações, inclusive da interdisciplinaridade, por exemplo, com a aproximação entre física ou química de filosofia ou história.

Nada mais que uma fraude

Contudo, o problema maior é o engodo aplicado à sociedade, em particular a sua parcela jovem. Engana-se quem julga que essas opções são verdadeiras, pois não há, na Lei, nenhuma disposição quanto à oferta simultânea de quaisquer delas pelas escolas e nem mesmo pelas redes públicas. É possível prever que, dadas as poucas possibilidades da maioria dos sistemas, estes acabem optando por um único itinerário formativo, ou seja, aquele que, ao mesmo tempo, tenha menores custos permanentes e corresponda às qualificações dos professores da respectiva rede.

De fato e curiosamente, o novo artigo introduzido pelo Senado (35-A) contém uma afirmação inusitada, em seu §5°: “A carga horária destinada ao cumprimento da Base Nacional Comum Curricular não poderá ser superior a mil e oitocentas horas do total da carga horária do ensino médio, de acordo com a definição dos sistemas de ensino”. E isto embora esse mesmo artigo afirme, em seu caput, “A Base Nacional Comum Curricular definirá direitos e objetivos de aprendizagem do ensino médio (…)”. Considerando que a meta da Lei é atingir 4.200 horas de aula, ao longo dos três anos do ensino médio, resulta que a carga relacionada à BNCC não poderá ocupar mais de 43% desse total (?!). Contudo, as contradições não terminam aí: sabidamente, a BNCC reserva 40% de sua carga total à parte diversificada, ou seja, sujeita à opção pelas redes e escolas.

Desse modo, é possível que apenas 60% das, no máximo, 1.800 horas dedicadas à BNCC venham a corresponder ao conteúdo comum a todas as escolas do país. Na prática, isso pode significar que algumas matérias com déficit de professores já estabelecido há algum tempo – por exemplo, Física e Química – apenas estarão representadas em uma fração quase insignificante das horas totais atribuídas a esse novo ensino médio!

Que futuro pode-se esperar para uma nação que opta por esse tipo de caminho formativo para a grande maioria de sua juventude, alijando-a, ainda mais, do contato estruturante com um conhecimento essencial para a compreensão do mundo atual? Por óbvio, é de se supor que as escolas particulares de elite, que atendem menos de 10% da população na faixa etária, farão opções mais condizentes às reais bases para uma educação abrangente e isso, necessariamente, ampliará o fosso que já existe no país, entre ricos e pobres, quanto às oportunidades de desenvolvimento intelectual.

O futuro é mais apartheid social

Portanto, o que esta reforma apresenta, de fato, de “novo e revolucionário”, lembrando que o governo teve que pagar youtubers para falarem bem da proposta, omitindo que se tratava de propaganda oficial? Que aspectos negativos ela traz para, de forma capciosa (contrariando as mais de 500 propostas de alteração – emendas parlamentares, não acatadas – que a MP recebeu durante seu trâmite no Parlamento e omitindo os protestos, via abaixo-assinados de associações científicas e sindicais), o Presidente da República precisar afirmar, no dia da sua sanção, que havia “100% de apoio” da população para a reforma, então oficializada?

Resumindo os fatos, um primeiro aspecto a se considerar quanto a consequências da aplicação da reforma aprovada via Medida Provisória é que, apesar de se propagar que os alunos poderão escolher qualquer um dos cinco itinerários, quem vai estabelecer qual ou quais itinerários de fato estarão disponíveis são os sistemas de ensino que, em função da Emenda Constitucional 95/2016, não poderão aumentar custos de pessoal. Assim, as escolas só poderão ter uma opção, em função da existência (ou não) de professores efetivos.

Uma segunda questão, e esta altera bastante a concepção de currículo de formação básica dos jovens, é que Educação Física, Sociologia, Filosofia e Arte são propostas como “estudos e práticas”, ou seja, seus conteúdos poderão ser ensinados e diluídos em outras disciplinas e não mais como componentes curriculares.

Um dos poucos aspectos que foram relativizados na forma final da Lei 13.415 foi com relação à exigência exclusiva do inglês. Ela continua como única língua estrangeira obrigatória, mas passam-se a permitir, como optativas, as outras línguas, citando-se o espanhol como possibilidade.

Um terceiro aspecto – grave nas suas consequências – é que a proposta retoma uma visão reducionista no itinerário formativo “formação técnica e profissional” como opção dual dentro do ensino médio. O itinerário V – “formação técnica e profissional” – poderá ser ofertado por meio de parceria com o setor privado e o sistema de ensino se servirá de recurso público do FUNDEB para isso. E, também, especificamente para este itinerário não há exigência de professores formados, pois aqueles que atestarem notório saber em qualquer habilitação técnica poderão receber certificado para o exercício da docência.

Abre-se, por fim, uma quarta questão, muito séria: a Lei propõe outra possibilidade de pessoas não formadas nas licenciaturas assumirem funções docentes. Segundo velhos hábitos brasileiros, qualquer profissional graduado, apenas com uma complementação pedagógica, poderá assumir aulas no novo ensino médio (conforme novo inciso V no artigo 61 da LDB). Além disso, aliados políticos do governo federal nos estados já vem apresentando Projetos de Lei em que até mesmo essa complementação ficaria superada e o notório saber passaria a depender apenas de autorizações a nível estadual, como condição para a atuação profissional como professor. Abre-se a possibilidade da profissão voltar a ser um bico, aviltando ainda mais as já insuficientes remunerações dos professores de grande parte das redes públicas.

Por fim, um aspecto grave da Lei, com repercussões na educação superior diz respeito à formação do magistério. A Lei ultrapassando seus limites e ferindo a autonomia das universidades brasileiras dispôs (§8º, do art.62/LDB) que “os currículos dos cursos de formação de docentes terão por referência a Base Nacional Comum Curricular”. Ora, essa é uma concepção de formação docente que pretende “enquadrar” que os professores só possam “aprender” a dar aulas, sobre o conteúdo que o MEC determinar. Essa concepção já fora adotada por membros do Conselho Estadual de São Paulo, em especial, por parte de conselheiras que hoje fazem parte ou assessoram o MEC (Maria Helena Castro, Guiomar Namo de Mello, Rose Neubauer da Silva).

Na ocasião, tentaram impô-la e vetaram 13 cursos de licenciatura da USP e tantos outros da UNESP e da UNICAMP. Felizmente, a Constituição Federal de 1988, ainda que retalhada e reformulada, continua a garantir nosso direito de propor com autonomia pedagógica os diferentes cursos das universidades públicas de São Paulo.

A sociedade precisa ser alertada para as consequências dessa reforma, conhecendo, discutindo e combatendo os retrocessos que a legislação aprovada trouxe para o ensino médio brasileiro. Licenciaturas das Universidades: é preciso ação para brecar as consequências dessas alterações na LDB!

O Grupo de Trabalho de Política Educacional da USP é formado pelos professores(as) Carmen Sylvia Vidigal Moraes, César Minto, Eduardo Donizeti Girotto, Ivã Gurgel, João Zanetic, Lighia B. Horodynski-Matsushigue, Lisete Regina Gomes Arelaro, Otaviano Helene e Rubens Barbosa de Camargo.

Destaque: Roberto Weigand.

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