Poder Judiciário é retrato da desigualdade de gênero

Há sim discriminação, mesmo em casos como os nossos, de juízas que conseguimos chegar a posições de igualdade. Há sim discriminação contra nós, mulheres, em todas as profissões, e é o fato de continuar a ter discriminação contra a mulher que nos faz precisar, ainda, de determinadas ações positivas. (…) Temos uma sociedade extremamente preconceituosa em vários temas, racista em vários temas e no caso da mulher, muito preconceituosa (…) Se fosse igual, ninguém estava falando. [1]

Vossa Excelência vê como é a vida… Nós (mulheres) temos um dia, Vossa Excelência tem todos os outros. Olha o princípio da igualdade…[2]

– Presidenta do STF, Ministra Carmem Lúcia

Célia Regina Ody Bernardes*, no Justificando

Há desigualdade de gênero no Poder Judiciário, ambiente laboral em que as magistradas estão sub-representadas e vivenciam experiências negativas por serem mulheres.[3] Os dados desagregados por gênero informam uma média geral de 62,7% de homens e 37,3% de mulheres, mas há desigualdades regionais: nas 27 unidades parciais da Federação brasileira, há Estados como o Amapá, com apenas 9,8% de representação feminina, e outros como o Rio de Janeiro, com 48,6% de mulheres magistradas, sendo o Nordeste a Região que engloba o maior número de Estados com mais de 40% de juízas (Bahia, Rio Grande do Norte e Sergipe).

Observando os dados desagregados por ramo do Poder Judiciário, tem-se a seguinte proporção de mulher para homens: 1M/1H na Justiça do Trabalho, 1M/2H na Justiça Estadual e 1M/3H na Justiça Federal. É nesse ramo que se verifica a mais intensa sub-representação feminina: 73,8% dxs juízxs federais são homens e 26,2% são mulheres. Os desembargadores federais são impressionantes 100% no Tribunal Regional Federal (TRF) da 5ª Região, órgão do Poder Judiciário que somente teve uma única magistrada como desembargadora federal em toda a sua existência.

Tal dado reforça a iniquidade da situação dessa trabalhadora: a mesma Região que abrange mais Estados com a melhor representatividade de gênero na 1ª instância é a que não tem nenhuma mulher na 2ª instância. Seguem-no o TRF1, com 81,5% de homens; o TRF4, com 76%; o TRF2, com 74%; e o TRF3, com 72%.

Na política associativa, contam-se nos dedos de uma das mãos as Presidentas de associações nacionais de juízxs: Ilce Marques de Carvalho (89/91), Maria Helena Mallmann Sulzbach (95/97) e Beatriz de Lima Pereira (97/99) presidiram a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA); Kenarik Boujikian (99/01 e 13/15) e Dora Martins (07/09), a Associação Juízes para a Democracia (AJD). A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) jamais tiveram uma Presidenta. Talvez uma primeira medida para reverter tal estado de coisas seja incluir as juízas no nome desses coletivos.

Esses números dão ideia do longo caminho a trilhar rumo à equidade de gênero no Poder Judiciário brasileiro. Para abreviar esse percurso e enfrentar a sub-representatividade das mulheres na magistratura federal, a AJUFE instituiu a Comissão do Acompanhamento do Trabalho da Mulher no Judiciário, que se reuniu em 8/3/17 com a Presidenta do STF, Ministra Carmen Lúcia, para relevar a necessidade, dentre outras, de o Conselho Nacional de Justiça proceder a uma ampla pesquisa sobre a magistrada no Poder Judiciário brasileiro.

Segundo a coordenadora da comissão, a juíza federal Clara da Mota Santos Pimenta, a pesquisa permitirá identificar os “entraves visíveis e invisíveis [que] as mulheres têm encontrado para sua ascensão na magistratura e por que chegamos a esses números se temos um número de inscritas quase paritário com os homens”.[4]

A integração da mulher juíza no mercado de trabalho resulta da atuação do dispositivo da dominação masculina[5] que insiste em incluí-la marginalmente, ou seja, nos modos da submissão, da precarização ou da ilicitude. Há mais em comum na experiência dessas trabalhadoras do que se supõe ordinariamente: sejam as terceirizadas[6], as mulas do tráfico[7] ou as juízas que enviam essas miseráveis ao inferno das masmorras brasileiras, a esmagadora maioria das trabalhadoras brasileiras ocupa as posições mais subalternas e vulneráveis.

Sendo esse estado de coisas uma construção histórica e não uma necessidade da natureza – e exatamente porque foi construído, pode ser desconstruído. A juíza do trabalho Elinay Almeida Ferreira de Melo bem esclarece como a mulher se inseriu no mundo do trabalho industrializado: “a partir do momento em que a produção industrial do algodão exigiu o aumento da mão de obra, para expandir-se, na Inglaterra do Século XVIII, e que se desse também a baixo custo, passando a mulher a trabalhar, juntamente com crianças, para complementarem a renda familiar. Na época, as trabalhadoras eram consideradas dóceis, fáceis de obedecer e manipular e menos afeitas à organizações como as greves e transgressões.”[8]

Observa-se que o trabalho da mulher juíza continua seguindo o mesmo padrão daquela trabalhadora fabril: ocupamos os mais baixos postos de trabalho na instituição a que pertencemos, nossos corpos politicamente dóceis e economicamente úteis não fazem carreira e, assim, nos ausentamos da cúpula do Poder Judiciário e das lutas associativas.

Basta de desigualdade de gênero no Poder Judiciário: não aceitamos mais nos dirigirem perguntas vexatórias nas provas orais dos concursos de ingresso no Judiciário; não toleramos mais termos nossas saias e decotes medidos nas entradas dos fóruns, tampouco virarmos manchete de primeira página de todos os jornais do Brasil por irmos trabalhar usando calças. Somos tão aptas quanto nossos colegas homens a compor bancas de concurso de ingresso e a sermos “convocadas” para funções jurisdicionais ou “auxiliares” em funções administrativas nas corregedorias e presidências dos tribunais.

Urge compreender as razões pelas quais não figuramos nas listas tríplices e, assim, por que motivos não ascendemos por merecimento aos tribunais na mesma proporção que os juízes. Não aceitamos mais integrar apenas a base dos órgãos do Poder Judiciário. Queremos entender e denunciar o funcionamento dos dispositivos do patriarcado que fazem com que a presença de juízas seja tanto mais rarefeita quanto mais se ascende na hierarquia das carreiras do Poder Judiciário.

Estamos imersas no afeto político da sororidade e, à diferença do Nero que nos apresenta Racine em Britannicus, perdido de si mesmo no jogo entre a Patética dos afetos e a Política dos cálculos do poder, já superamos a imensa dificuldade de estarmos à altura de nós mesmas. As juízas brasileiras estamos prontas para, a partir da escrita da história da desigualdade de gênero na magistratura brasileira, avariar essa máquina de dominação masculina.

Queremos historiar – para marretar – a desigual distribuição de poder baseada em gênero que alija as mulheres do comando dos tribunais e associações de juízas e juízes e ocupar esses espaços de poder para fazer funcionar um outro Poder Judiciário, verdadeiramente democrático, plural, justo, fraterno e solidário que, sim, é possível.

*Célia Regina Ody Bernardes é Juíza Federal em Macapá-AP e membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia), de cujo Conselho de Administração foi Secretária entre 2013 e 2014. Também integrou o Conselho Editorial da AJD, mas a atividade associativa que mais a apaixona é a militância no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. É Mestra em Filosofia pela UFPE (“Racismo de Estado: uma reflexão a partir da crítica da razão governamental de Michel Foucault”, Editora Juruá).

Notas:

[1] Ministra Carmem Lúcia, na primeira sessão plenária que presidiu na qualidade de Presidenta do STF (15/9/16), respondendo a observações feitas pelo Ministro Gilmar Mendes por ocasião do pedido de vista formulado no RE 658312, que discute a recepção do artigo 384 da CLT (intervalo de 15 minutos para a mulher antes da jornada extraordinária/) pela Constituição da República. STF recomeça discussão sobre intervalo de 15 minutos para mulheres antes de horas extras. Notícias STF. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=325337&caixaBusca=N. Acesso em: 11 mar. 2017.

[2] Presidenta do STF, Ministra Carmem Lúcia, na sessão plenária do dia 8/3/17, respondendo ao cumprimento do Ministro Luis Roberto Barroso pelo Dia Internacional da Mulher. O registro foi feito na seguinte reportagem: ‘Nós (mulheres) temos um dia, Vossa Excelência tem todos os outros’, diz Cármen Lúcia. TheHuffingtonPost. Disponível em: http://www.huffpostbrasil.com/2017/03/08/nos-mulheres-temos-um-dia-vossa-excelencia-tem-todos-os-outr_a_21876558/. Acesso em: 11 mar. 2017.

[3] No último Censo do Poder Judiciário, cerca de um terço das juízas que responderam ao CNJ expressaram ter vivido experiências negativas na carreira pelo fato de serem mulheres, seja por parte de outros profissionais ou dos jurisdicionados. Além disso, enfrentam mais dificuldades nos processos de remoção e promoção do que os colegas homens, percebem sua vida pessoal afetada em maior medida pelo exercício da magistratura e experimentam mais dificuldades no exercício da magistratura. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Censo do Poder Judiciário: VIDE: Vetores iniciais e dados estatísticos. Brasília: CNJ, 2014. 212p. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/dpj/CensoJudiciario.final.pdf. Acesso em: 14 mar. 2017. As “opiniões das magistradas sobre desigualdade de gênero” foi objeto do item 3.5 do Censo (p. 85 e seguintes).

[4] SUPREMO Tribunal Federal. Presidente do STF e do CNJ recebe juízas federais. Notícias STF. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=337742. Acesso em: 11 mar. 2017. Apesar de integrar essa comissão, escrevo neste espaço em nome próprio, e não em nome da comissão, de modo que as opiniões que aqui expresso não se confundem, necessariamente, com as posições tomadas pela Ajufe.

[5] Para Pierre Bourdieu, quando reunidas todas as condições do pleno exercício da “dominação masculina”, A primazia universalmente concedida aos homens se afirma na objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em uma divisão sexual do trabalho de produção e de reprodução biológica e social, que confere aos homens a melhor parte, bem como nos esquemas imanentes a todos os habitus: moldados por tais condições, portanto objetivamente concordes, eles funcionam como matrizes das percepções, dos pensamentos e das ações de todos os membros da sociedade, como transcendentais históricos que, sendo universalmente partilhados, impõem-se a cada agente como transcendentes. Por conseguinte, a representação androcêntrica da reprodução biológica e da reprodução social se vê investida da objetividade do senso comum, visto como senso prático, dóxico, sobre o sentido das práticas. E as próprias mulheres aplicam a toda a realidade e, particularmente, às relações de poder em que se vêem envolvidas, esquemas de pensamento que são produto da incorporação dessas relações de poder e que se expressam nas oposições fundamentes da ordem simbólica. Por conseguinte, seus atos de conhecimento são, exatamente por isso, atos de reconhecimento prático, de adesão dóxica, crença que não tem que se pensar e se afirmar como tal e que “faz”, de certo modo, a violência simbólica que ela sofre. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 2. ed. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. 160p. [La domination masculine]. Para Márcia Tiburi, “dominação masculina” é o dispositivo que atua para manter a desigualdade de gênero tanto no espaço público da política e da economia quanto no espaço privado das relações pessoais em função de determinações de gênero. “Gênero” é a categoria de pensamento que demonstra a consciência surgida na história da invenção social dos papeis atribuídos a figuras marcadas como homens e figuras marcadas como mulheres. Cf., a respeito dessas categorias, TIBURI, Márcia. Filosofia Feminista. Espaço Cult, Altos Estudos. Disponível em: http://espacorevistacult.edools.com/curso/filosofia-feminista-por-marcia-tiburi. Acesso em: 01 jun. 2016. Para a noção de “dispositivo”, cf. FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I: la volonté de savoir. Paris: Gallimard, 2002. 213 p. (Collection Tel, 248). p. 91, 139-145. ______. Le jeu de Michel Foucault. In: ______. Dits et écrits II: 1976-1988. Edição estabelecida sob a direção de Daniel Defert e François Ewald, com a colaboração de Jacques Lagrange. Tradução de Gilles Barbedette et al. 2. ed. Paris: Quarto Gallimard, 2001c. 1736 p. Texto n. 206, p. 298-329. Entrevista concedida a D. Colas et al. no 1. sem.1977. p. 299-301. FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o direito. São Paulo: Max Limonad, 2002. 329 p. p. 42, 198-199, nota 307.

[6] MELO noticia pesquisa do Sindicato das Empresas de Asseio e Conservação do Estado do Rio de Janeiro segundo a qual 92% dos trabalhadores nos serviços de limpeza terceirizados são mulheres. MELO, Elinay Almeida Ferreira de. O dia 8 de março e a ameaça aos direitos das mulheres no atual cenário brasileiro. Disponível em: http://amatra8.org.br/2017/03/08/o-dia-8-de-marco-e-a-ameaca-aos-direitos-das-mulheres-no-atual-cenario-brasileiro/. Acesso em: 11 mar. 2017.

[7] BERNARDES, Célia Regina Ody. Juízes transgressores, mulheres encarceradas. Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2016/09/21/juizes-transgressores-mulheres-encarceradas/. Acesso em: 14 mar. 2017.

[8] MELO, Elinay Almeida Ferreira de. O dia 8 de março e a ameaça aos direitos das mulheres no atual cenário brasileiro. Disponível em: http://amatra8.org.br/2017/03/08/o-dia-8-de-marco-e-a-ameaca-aos-direitos-das-mulheres-no-atual-cenario-brasileiro/. Acesso em: 11 mar. 2017.

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