“Defendo os direitos fundamentais e acredito que todo agente de estado deve defender”

Por Fernanda Valente, no Justificando

Ao observar as esculturas e quadros com representações de mulheres na sala do apartamento no Jardim Paulista, faço uma verdadeira imersão ao mundo de Kenarik Boujikian, 57 anos. A desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) me recebeu em uma calorosa quinta-feira à tarde, com um forte abraço. Ela fez questão de manter nossa entrevista mesmo com a severa dor na coluna que tem sentido há um mês.

Kenarik é natural de Kessab, na Síria, e neta de sobreviventes do Genocídio Armênio. Os pais decidiram ir para o Brasil em 1962, com ela com apenas 3 anos, e os três irmãos. Na adolescência decidiu que atuaria em uma profissão diferente do pai, um comerciante de roupas com uma loja no Brás, onde ela cresceu.

Começou o curso de Direito em 1980, na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e soube ainda no final da faculdade que seguiria na magistratura. “Não se desanime se você não passar no primeiro concurso porque não depende de sorte e sim de estudo“, esta foi a dica que ela guardou com muito apreço de um professor que teve papel essencial em sua formação. José Gaspar Gonzaga Francischini foi quem informou os alunos, dentre eles Kenarik, sobre a precária assistência jurídica aos presos. Isso a levou, no último ano da faculdade, a se inscrever como voluntária na Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru.

Posteriormente, Kenarik trabalhou na FUNAP (Fundação Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel), advogando para os presos carentes de recursos financeiros. Ingressou na magistratura quatro anos depois de formada, em 1988, no terceiro concurso que prestou. Foi procuradora do Estado e juíza substituta em Piracicaba.

Ficou conhecida para além do mundo jurídico ao atuar no caso do médico Roger Abdelmassih, condenado a 278 anos de prisão em 2010 e por presidir a Associação de Juízes para a Democracia (AJD) por duas vezes.

Mas o mais recente caso que a colocou em evidência foi um processo administrativo na instituição que integra. Em fevereiro, Kenarik foi punida pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo após ter concedido liberdade a dez presos provisórios detidos por mais tempo do que a pena fixada em suas sentenças. O caso despertou a indignação e solidariedade de juristas, que chegaram inclusive a publicar nota de repúdio. Ela também foi homenageada em uma cerimônia  promovida pelo Conselho Nacional de Justiça, pelos juízes Marcelo Semer e Elinay Melo.

Ativista de direitos humanos e militante, ela critica a falta de representatividade feminina nos altos cargos do Direito. Um levantamento feito pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostra que em São Paulo, onde a magistrada atua, 37,7% são mulheres em atividade. No país, dos 17.670 magistrados, 37,3% são mulheres. “As jovens juízas precisam saber que nem sempre foi assim. Houve luta por parte de um grupo de mulheres advogadas que tentaram de todas as formas abrandar essa desigualdade“, afirma.

Podemos fazer uma reflexão também sobre o papel do juiz. A quem está servindo o judiciário?“, questiona Kenarik. Quem acompanha a entrevista completa que você lê abaixo é o xodó da casa, uma figura peluda e fã de carinhos, o vira-lata Nino.

Justificando – Kenarik, você diz que sabia que seguiria na magistratura desde o final do curso de Direito. Por que ser juíza?

Kenarik – Eu acreditava que dentro da área do Direito, a função do juiz apresenta um certo peso para a sociedade e poderia assim dar alguma efetividade, algum tipo de mudança.

Como é ser mulher desembargadora?

Uma vez que vivemos em uma sociedade patriarcal, o machismo é refletido em todas as relações humanas e no direito não é diferente. O que vemos é um Legislativo com número baixíssimo de mulheres ocupando as cadeiras da Câmera dos Deputados e Senado, no Executivo e Judiciário é a mesma coisa. Na magistratura, então, temos os problemas que estão presentes no exercício de qualquer poder. Ser juíza é como ser mulher em qualquer profissão.

Você já sofreu preconceito de gênero?

Já me perguntaram isso e eu disse por muito tempo que não sentia diretamente. Há 30 anos, eu via uma curiosidade no olhar das pessoas. Em Piracicaba, por exemplo, eu costumo dizer que as pessoas iam até lá para me ver, eu me sentia um bicho em uma jaula (risos). Teve um dia que um advogado veio até a porta da minha sala, eu perguntei se ele queria despachar, e ele respondeu “não, eu só vim [te] ver…”.

Eu senti um preconceito maior quando eu fui trabalhar na segunda instância [no Tribunal de Justiça de São Paulo], suponho que seja porque o trabalho é colegiado, a decisão não depende só de uma pessoa. Mas isso não significa que outras juízas não sofram.

Quem te inspira Kenarik? Você tem referências?

Hoje, todas as mulheres de luta são referência. A começar pela minha mãe, que saiu de uma aldeia na Síria para vir morar no Brasil e enfrentou uma cultura muito diferente da sua de origem. (…) Quando eu era jovem, não haviam muitas mulheres no sistema de Justiça. Enquanto advogada, eu ia no tribunal e só tinham homens para despachar um processo. Lembro até hoje de um dia na faculdade que, ao fazer uma pesquisa de jurisprudência, me deparei com a decisão de uma desembargadora do Rio Grande do Sul. Falei: “nossa, que maravilha, tem uma mulher!”.

O concurso para a magistratura mudou depois da atuação da Associação de Juízes para a Democracia, certo? Como era o concurso antes?

Primeiro tínhamos que fazer uma prova oral e depois havia uma entrevista com algumas perguntas absurdas, que eram feitas apenas para as mulheres. ‘Como faria para julgar o marido?’, ‘achava certo namorar alguém?’, e por aí vai. A mentalidade machista permanecia e o mecanismo para barrar a entrada da mulher era a prova, que vinha com identificação de gênero, ou seja, sendo mulher, já estavam no “escanteio”. Foi uma proposição da AJD [da qual é cofundadora e faz parte desde então] e assim pudemos observar um aumento significativo de mulheres ingressando na magistratura, ainda que a “conta gotas”.

Será que não tinha nenhuma mulher competente para ingressar na magistratura?, ela questiona. 

No TJ nós nunca tivemos uma mulher em cargo de direção. O órgão especial, composto por 25 membros, segue a mesma lógica. O mundo do Direito formalmente não deveria ser assim, mas é. No Supremo Tribunal Federal, apenas três mulheres ocuparam cadeiras [Ellen Gracie, Cármen Lúcia e Rosa Weber]. Olhando para outras instituições, nunca tivemos uma Procuradora Geral da República ou uma presidenta da OAB, por exemplo.

Muito se especula sobre uma crise no Judiciário. Qual a sua opinião?

Nós temos que perguntar ” quem o judiciário está servindo?” O último levantamento do CNJ sobre os 100 maiores litigantes do Judiciário, feito em 2012, aponta para os bancos, empresas de telefonia e saúde. Fica o questionamento se não existiriam outros meios de processos para esses “grandes clientes”. O que está por trás disso? O conceito de crise é bem amplo.

E quanto à democracia?

Nós tivemos um rompimento da democracia com o impeachment, né? E acho que a Dilma ser mulher, foi um fator – não o único – para destituí-la. Por tudo o que está em curso no país: a reforma do ensino, a reforma previdenciária, a gravidade do congelamento do orçamento por vinte anos, entre outros, o golpe não acabou no dia que o Congresso declarou o impeachment. Ele segue diariamente, se aprofunda e se perpetua.

Você está em meio a um processo administrativo por libertar dez presos provisórios que já haviam cumprido pena. Qual o sentimento em relação a punição?

Considero gravíssima. Tenho 27 anos de carreira e, nessa altura do campeonato, receber uma pena é triste. Eu nunca vi nenhum juiz receber tanta solidariedade e gestos de carinhos e isso é uma das coisas mais fantásticas que descobri. Me fortaleceu demais.

Como você vê o entendimento do Órgão Especial do TJ-SP?

Bom, eu recebi uma pena de censura. Isso me impede de receber promoção no período de um ano, no critério de merecimento, haja vista que as promoções de juízes na Constituição são previstas de forma alternada entre merecimento e antiguidade. Além disso, constará no prontuário que fui uma juíza censurada, ou seja, que cometeu uma falta disciplinar.

Você considera o caso do médico Roger Abdelmassih um dos mais importantes para a sua carreira?

Primeiro você deve saber que eu não dou detalhes sobre os meus processos. O caso do Roger foi um marcante e diferenciado por envolver muitas vítimas. Outro fator é que o réu era um médico e o abuso acontecia dentro da relação profissional. Normalmente crime sexual apresenta uma vítima, eu consigo me lembrar de até três, mas em um contexto familiar. E neste processo, não foi numa relação familiar ou de absoluto desconhecido. O mais impactante para mim foi ver em um processo tudo o que a gente lê em livros, artigos e escuta o movimento feminista dizer: a dificuldade das mulheres em contar sobre a agressão, a dor do relato, a sensação da mulher de, mesmo sendo vítima, se sentir culpada pela pressão social (…).

Me conta sobre a sua experiência no Carandiru.

Entrar numa prisão é um choque, é um outro mundo, né? Eu fui para o Carandiru como voluntária, por sugestão de um professor muito querido. Um dos primeiros casos que eu assumi lá, tratava de um menino que insistia ser menor de 18 anos, por isso, não poderia ficar ali. Eu fui atrás de muitos documentos até encontrar uma prova de que tinha tido um processo para retificação de idade dele. Eu fico pensando ‘aquela voz ali, sozinha, falando e ninguém acreditando’. Foi uma experiência impactante e eu vou carregar para sempre a vivência. Guardo até hoje a minha carteirinha da época.

E na FUNAP?

Como advogada na Fundação eu tive que trabalhar exclusivamente para quem tinha o vírus HIV e, na época [em 1987], era algo completamente novo no país. Ninguém queria atender eles por medo. Era muito triste, eu começava um atendimento e logo em seguida a pessoa morria.

O quanto vivenciar o dia-a-dia nas prisões influenciou sua opinião sobre o sistema carcerário?

Os estudos mostram que prisão não resolve. Em todo caso, a visita à cadeia é prevista em lei para defensores e membros do Ministério Público, por exemplo, porque são essenciais para quem lida com o sistema penal. Então, ao fazer uma visita, não é para ficar na sala do diretor tomando cafezinho e sim ter o contato. Acredito que a lei reconhece uma importância do contato com os presos.

Por sua militância, você ganhou a fama de “juíza de esquerda”. Defender direitos fundamentais é ser de esquerda ou progressista?

Porque é colocado como algo de esquerda? Historicamente no Brasil, algumas pautas são defendidas em quem segue uma ideologia política de esquerda ou centro-esquerda. Eu digo que sim, defendo os direitos fundamentais e acredito que todo agente de estado deve defender, porque esta é a nossa função.

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