Atacados, Pataxós ocupam Parque do Descobrimento

Habitantes seculares do Sul da Bahia, pressionado por turismo e “racismo ambiental”, indígenas exigem demarcação de território e denunciam extrativismo ilegal, má gestão e descaso do Estado

Por Bruna Aieta – Outras Palavras

Os Pataxó, povo originário da região sul da Bahia, mantêm ocupado desde 11 de março o Parque Nacional do Descobrimento, uma área de 22,7 mil hectares cujos biomas e espécies nativas estão ameaçadas por pressão de empresas e descaso de órgãos públicos. A sede do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), órgão do ministério do Meio Ambiente também está ocupada. O ato é de resistência. Os Pataxós querem o reconhecimento e demarcação de seu território e estão ameaçados por reintegrações de posse que podem desalojar centenas de famílias.

“Nossos direitos estão sendo violados pelo governo federal, pelo governo estadual e pelo governo municipal. Então estamos aqui esperando o juiz federal, o presidente da Funai, o Ministério Público e a coordenadora da Vigilância Sanitária, a senhora Mônica Marapá”, afirmou uma das lideranças da etnia, Valmir Pataxó.

Além de reivindicar a revisão do processo fundiário, eles chamam atenção para a dificuldade de acesso aos serviços públicos de saúde, de responsabilidade da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), e alegam ameaça à preservação do Parque.

Nele, pela estrada que atravessa a antiga Mata Atlântica, rios, lagos e represas estão secos. No alto, mais adentro, é possível avistar uma passarela de cerca de cem metros, construída com madeira do próprio parque para o evento “Motor Rock” – que não aconteceu ali por causa da ocupação – além de móveis e maquinários. Foram ainda encontrados buracos de mais de 15 metros de profundidade, possível início da atividade de mineração. A última denúncia trata de um incêndio ocorrido semana passada, a cerca de 6km da sede, supostamente provocado para incriminar os ocupantes.

Fotos e vídeos dessas denúncias foram postadas nas redes sociais e entregues a funcionários da Funai que estiveram no portão do Parque no início da semana. Diante da proposta de que desocupem a sede e vão até Porto Seguro para uma possível negociação, as lideranças recusaram-se a sair, afirmaram estar cansados de correr atrás de autoridades e reclamaram do sumiço da Funai nos últimos dez anos.

“Nós vamos esperar eles aqui. Não vamos sair. Porque nós fazemos isso sempre, viajamos pra Brasília e pra Salvador. Quando a gente volta, cadê a palavra? Não tem nada”, afirma Valmir.

O Parque Nacional do Descobrimento e o Parque do Monte Pascoal são Unidades de Conservação (UCs) do governo federal, criadas nos anos de 1943 e 2000, respectivamente. São áreas que se sobrepõem às terras indígenas, ou seja, algumas das aldeias ameaçadas estão justamente no entorno e em pequenas partes das reservas. Nasce daí mais um conflito, entre a direção do Parque do Descobrimento e moradores das comunidades.

As denúncias demonstram a urgência de uma gestão compartilhada do parque com os Pataxó. Eles querem de volta ao menos as cinco cadeiras no Conselho Gestor do Parque, retiradas em 2014. Mas a principal demanda é que ele seja transformado em Unidade Extrativista, reconhecendo as práticas de sustentabilidade do Povo Pataxó.

“O povo Pataxó precisa de recursos ambientais como sementes, folhas, cipós e fibras para sua reprodução física e cultural, uma vez que fazem parte do seu artesanato e dos seus rituais tradicionais”, escreveu Paulo de Tássio, do site Racismo Ambiental. “Observa-se a propagação de um racismo ambiental fundamentado num conservacionismo míope do mito da natureza intocável.”

As comunidades querem que pelo menos os carros da Sesai possam passar pela Estrada Real, no caso de ser necessário atendimento médico urgente.“Eles usam esse parque pra fazer passeio turístico, e o índio não pode. Nós que somos filhos da terra, remanescentes. Pra onde vão nossos direitos de patrícios da terra?”, pergunta Buri Pataxó.

Os mais recentes processos de reintegração de posse afetam 520 famílias, 1.600 pessoas que vivem em oito aldeias pelas matas e roças dos municípios de Santa Cruz de Cabrália, Porto Seguro e, mais ao sul, em Prado, nas terras de Coroa Vermelha, Barra Velha, Comexatibá (Cahy-Pequi), Tibá, Alegria Nova, Craveiro, Mucugê e Águas Belas, entre outras. Ao todo são 19 aldeias que abrigam 11 mil pataxós nessa região sul da Bahia. Segundo o Censo, há cerca de um pataxó para cada 5 habitantes da zona rural.

“Não queremos o Brasil só pra nós, queremos a parte que nos cabe, e com toda a justiça!”, brada Buri Pataxó, uma das líderes da etnia. “Nós somos criminalizados, marginalizados. Mas eles não olham o lado humano. O Brasil é um país pluriétnico, mas infelizmente não é aceito como tal. E então nos ameaçam, nos cercam de todas as formas, usam e abusam da autoridade que têm. O índio quer a terra pra sobreviver nela, e com ela. É uma relação de troca. A gente cuida da terra e ela nos dá o alimento, nos acalenta, como mãe. Já eles querem a terra para explorar, para enriquecer e ter altos lucros.”

A ancestralidade desse povo, da família linguística Maxakalí, é anterior ao século XVI e, apesar de terem também, como outras culturas indígenas, o costume de migrar, os registros da época demonstram que a grande maioria de seus antepassados manteve-se na atual Costa do Descobrimento, mesmo após a tomada do território pelos europeus. Antecedem a criação da nação brasileira, mas até hoje são obrigados a comprovar perante a Justiça sua morada e cultura de séculos.

Interesses econômicos

Entre os interessados na área, o mais devastador talvez seja uma empresa do setor imobiliário, Góes Cohabita, que se diz proprietária de diversas áreas e está com pedidos de reintegração de posse. Em 2006 a empresa obteve decisão favorável na Justiça Federal de Eunápolis, e agora exige cumprimento da sentença. Nesse mesmo ano foi interrompido o processo aberto em 1998 pelas comunidades, com apoio da Funai (Fundação Nacional do Índio), que recorre ao Ministério Público Federal (MPF) pela inclusão de novas áreas na demarcação feita anteriormente pela União. Argumentam que há áreas que foram “ignoradas” pelo Estado e apresentam um desenho com limites maiores, abrangendo todas as aldeias.

Mas as lideranças Pataxó acabam de descobrir que há muitos outros interesses na região: ao todo, são 152 contestações, abertas pelo próprio ICMBio, por outras empresas, fazendeiros e até assentados do Incra.

Terra de Comexatibá

A identificação antropológica da presença de Pataxós desde o século XVI na terra de Comexatibá (Cahy-Pequi), por exemplo, foi publicada apenas em 2015. É o primeiro passo para assinatura da carta declaratória, e o território ainda precisa ser homologado, mas já possui consistência legal. Mesmo assim, um ano depois, uma das aldeias foi atacada de surpresa pela Polícia Federal, com a destruição, inclusive, de uma das casas da Escola Estadual Indígena Kijêtxawê Zabelê.

“Por falta de precisão nos autos do processo, o juiz determinou que o autor da ação apresente novas informações, precisando os limites da área a ser reintegrada. Assim, o despejo acabou sendo adiado por até três meses para coleta de subsídios, mas não foi suspenso”, explica o Cimi (Conselho Indigenista Missionário).

Monte Pataxó

Massacres, expulsões e ataques contra indígenas por parte de fazendeiros, grileiros e Estado são fatos que se repetem nos mais de cinco séculos da história brasileira.

Nessa costa do “Descobrimento”, um caso famoso é o Fogo de 51 (1951), quando dezenas de homens foram presos, mulheres estupradas e a Aldeia-Mãe de Barra Velha, incendiada. A ação policial fez os indígenas se dispersarem pela floresta e pela cidade, e só nas duas últimas décadas eles voltaram a construir novas aldeias. Também reconstruíram Barra Velha, agora em seu terceiro centenário.

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