Água para que te quero

O Cerrado é considerado o berço das águas brasileiras e ele está quase extinto. O que você está fazendo para impedir que isso aconteça?

Bruna Toscano*/Estúdio Massa – CPT

O Brasil tem a maior reserva de água doce e potável do mundo. ela recebe o nome de Aquífero Guarani e está localizada no Centro-Leste do nosso continente. mas, não se engane: apesar de enorme (são 1,2 milhão de km2), ela não é infinita. Além de tudo, é abrigada pelo segundo maior bioma brasileiro, o Cerrado, que está em vias de ser extinto.

“Cuide da água. No futuro, ela vai valer mais do que o petróleo.”

A frase pode ser batida, mas ela é tão verdadeira quanto o motivo de ser um conselho certeiro: a humanidade está consumindo toda a água potável disponível no planeta.

Olhando de longe, a ameaça não parece ser, assim, tão assustadora. Afinal moramos no Brasil, país rico em recursos naturais e hídricos, não é mesmo? Errado.

Coloque uma lupa sobre o problema e já vai ser possível entender porque tem muita gente preocupada com o futuro que se desenha: o segundo maior bioma do Brasil, o Cerrado, está prestes a ser extinto. E se isso acontecer, provavelmente a humanidade toda vai sofrer as consequências.

SEM CERRADO, SEM ÁGUA, SEM VIDA

Não dá para falar de água sem falar de Cerrado. E para quem não conhece a fundo o bioma, pode até parecer estranho que um lugar composto de troncos baixos e retorcidos, que sofre com queimadas constantes, seja considerado o berço das águas do Brasil.

Basicamente, esse é o Cerrado: o segundo maior bioma da América Latina (ocupa 22% do território brasileiro, segundo o Ministério do Meio Ambiente), extremamente rico em fauna e flora, capaz de abastecer 3 das maiores bacias hidrográficas da América do Sul e abrigar 3 dos maiores aquíferos do mundo, alimentando-os por meio de suas áreas de recarga, onde são reabsorvidas as águas das chuvas.

Considerada a savana mais rica em biodiversidade do mundo, ele fica no coração do Brasil e atua como elo entre quatro dos seis biomas do país: Mata Atlântica, Amazônia, Caatinga e Pantanal. Sua área ocupa, além do Distrito Federal, mais 11 estados brasileiros, concentrando 5% de todas as espécies do mundo e 30% da biodiversidade do país. Muitos dos animais dessa fauna só existem no Cerrado. No caso das aves, 90% delas só se reproduzem nesse habitat.

Tanta riqueza natural pode ser explicada por meio da história. O professor Altair Sales Barbosa, um dos mais profundos conhecedores do bioma, conta que “a história recente da Terra começou há 70 milhões de anos, quando a vida foi extinta em mais de 99%. A partir de então, o planeta começou a se refazer novamente. Os primeiros sinais de vida, principalmente de vegetação, que ressurgem na Terra se deram no que hoje constitui o Cerrado”.

A FLORESTA INVERTIDA

Os vários elementos do Cerrado convivem em perfeita harmonia e vivem intimamente interligados uns aos outros. A vegetação depende do solo, que é oligotrófico (nível muito baixo de nutrientes); o solo depende do clima tropical subúmido (duas estações, uma seca e outra chuvosa); muitas sementes dependem do fogo, porque é ele quem quebra a dormência da maioria das plantas com sementes.

Duas características, no entanto, são determinantes para que o Cerrado seja um dos mais importantes biomas do Brasil: a capacidade que suas plantas têm de captar o carbono do ambiente e a capacidade das raízes de captar e reter água. E essas duas características o transformam em uma verdadeira floresta invertida.

Segundo o professor Altair, “de todas as formas de vegetação que existem, o Cerrado é a que mais limpa a atmosfera. Isso ocorre porque ele se alimenta basicamente do gás carbônico que está no ar, porque seu solo é oligotrófico”.

Dele também nascem vários rios pequenos que vão formando as bacias hidrográficas. A bacia do São Francisco, por exemplo, depende 97% das águas que nascem no Cerrado. Isso porque o solo facilita com que a água penetre profundamente nos lençóis freáticos, formando os aquíferos.

Os aquíferos são outro ponto de extrema importância quando se fala em Cerrado: toda a água captada e distribuída pelos aquíferos garante a sobrevivência de grande parte da população brasileira. Se o Cerrado não for preservado, a sobrevivência de nossa própria espécie estará ameaçada.

INVISIBILIDADE OU DESCONHECIMENTO?

Durante quatro décadas, o Cerrado perdeu metade de sua vegetação nativa. Apesar de ser considerado o celeiro do mundo, ações governamentais de ocupação e incentivo à agropecuária iniciadas ainda durante a ditadura militar permitiram que o Cerrado fosse desmatado sem grandes implicações.

A invisibilidade do bioma aliada ao desconhecimento de grande parte da população permitiu que projetos como o Matopiba (Plano de Desenvolvimento Agropecuário) levasse para o Cerrado grandes empresas e indústrias do agronegócio.

O resultado agora é bem visível: 50% da área do Cerrado já foi transformada em “área convertida”, ou seja: no lugar da vegetação nativa, pasto para gado e plantações. A colcha de retalhos que se formou, ora com mata nativa, ora com pastos, faz com que o bioma não consiga se manter ou reestabelecer sua biodiversidade depois de ter sido desmatado.

Outro grande problema que o Cerrado enfrenta com o agressivo aumento do agronegócio é a poluição das águas, do ar e dos solos. Os agrotóxicos utilizados nos monocultivos penetram e degradam o solo, além de contaminarem as nossas águas.

Esses produtos químicos poluem o ar e matam diversas das formas de vida que ali vivem. As abelhas nativas do Cerrado, que são as únicas que conseguem fazer a polinização das plantas nativas, já estão quase extintas. Isso significa que daqui a algum tempo novas plantas não vão mais nascer simplesmente porque não existirá abelhas para fazer a polinização das espécies.

As matas ciliares, que deveriam servir como corredores ecológicos de migração das espécies, têm sido degradadas. As margens dos rios foram ocupadas por ambientes urbanos. Assim, os sistemas agrícolas implantados pelo ser humano chegam até à margem de córregos e rios, degradando ainda mais o leito dos rios e provocando o assoreamento.

Ao observar as nascentes dos grandes rios, é possível ver que elas ou estão secando ou estão migrando cada vez mais para áreas mais baixas. Quando isso ocorre, é sinal de que o lençol que abastece essa nascente está rebaixando.

Sobre esse assunto, o professor Altair faz um alerta: “Observe, por exemplo, o caso das nascentes do Rio São Francisco, na Serra da Canastra; o caso das nascentes do Rio Araguaia ou do Rio Tocantins, que tem o Rio Uru em sua cabeceira mais alta. A cada dia que passa as nascentes vão descendo mais. Vai ocorrer o dia em que chegarão ao nível de base do lençol que as abastece e desaparecerão.”

A DESTERRITORIALIZAÇÃO E OS POVOS DO CERRADO

Com o incentivo governamental para que as grandes empresas cada vez mais utilizem o Cerrado para a produção de soja, cana, eucalipto, algodão e criação de gado, o interesse corporativo tomou conta do bioma.

E quando essas empresas chegam às áreas do Cerrado, o que acontece é a expulsão dos povos que lá vivem, por meio da falsificação de documentos, da negociata com cartórios e com políticos. Com a grilagem de terras, as empresas e latifundiários adquirem milhares de hectares e expulsam os moradores tradicionais. Esse processo desestrutura comunidades inteiras.

Diferentemente do agronegócio, os povos e comunidades tradicionais do Cerrado utilizam a terra de forma a respeitar seus ciclos naturais. Os extrativistas (que vivem da terra) e as comunidades indígenas e quilombolas são os grandes defensores do bioma.

Cerca de 12,5 milhões de brasileiros que vivem no Cerrado, parte deles lutando diariamente para preservar e defender o bioma. Eles se consideram parte integrante da natureza e têm a consciência de que suas ações de preservação são fundamentais para que o Cerrado continue vivo.

As comunidades praticam uma agricultura agroecológica, que utiliza os bens naturais para sua própria subsistência. Essas comunidades cultivam uma relação de respeito com a natureza. Quanto mais famílias e comunidades estiverem praticando esse tipo de agricultura, menor será o espaço ocupado pelas grandes empresas.

Os povos do Cerrado também lutam para manter viva sua cultura e tradição. É por meio delas que as novas gerações descobrem a importância do Cerrado para a preservação da vida no planeta e aprendem a se defender das grandes empresas e a lutar pelo bem comum de todos, que é a água.

AS CRISES HÍDRICAS SÃO O PRENÚNCIO DO FIM DA ÁGUA

Se você vive em alguma grande cidade brasileira, é possível que já tenha enfrentado algum problema de falta d’água.

 As recentes crises hídricas, que assolaram o estado de São Paulo e agora o Distrito Federal, têm relação direta com o Cerrado. Segundo Marzeni Pereira, tecnólogo em saneamento da Sabesp, “a estiagem em São Paulo, com certeza, tem relação com o desmatamento da Amazônia e do Cerrado. Obviamente, sempre que há desmatamento se reduz a evaporação de água pela evapotranspiração das árvores. O Cerrado brasileiro sofreu muito com a devastação promovida pelo agronegócio.

Para se ter ideia, no ano passado, em torno somente de quatro produtos (soja, carne, milho e café), o Brasil exportou cerca de 200 bilhões de metros cúbicos de água. Não produziu, apenas exportou, ‘água virtual’, como se diz. Tal número significa abastecer São Paulo por quase 100 anos, apenas com a quantidade de água gasta por esses quatro produtos.”.

Além disso, a irrigação intensiva de larga escala provocada pelo agronegócio no Cerrado reduz os afluentes dos grandes rios, que sofrem ainda mais com a redução da água. Como o Cerrado faz a ligação entre quatro biomas brasileiros e abastece 8 das 12 grandes regiões hidrográficas do Brasil, o resultado só pode ser um: a falta de água até para consumo humano.

ÁGUA: DE DIREITO HUMANO A COMMODITY

A receita para equilibrar a demanda versus a conservação é cuidar dos mananciais. Não basta apenas que a população faça um controle de seus gastos de água, evitando o desperdício: é preciso que o agronegócio e as empresas também sejam responsabilizados por seus atos. Isso implica em adotar medidas mais sérias de proteção aos mananciais e aquíferos, a inclusão das grandes empresas em cotas de racionamento (atualmente, as empresas não entram nos racionamentos propostos pelo governo), impedir que o agronegócio e as empresas utilizem a água dos grandes rios para irrigação e frear o desmatamento para criação de grandes áreas de cultivo. A própria legislação ambiental vigente abre precedentes para a contínua degradação do Cerrado.

Por mais incrível que possa parecer, o bioma mais degradado e que mais precisa de proteção ainda não é Patrimônio Nacional. Isso significa que políticas como o Matopiba, que é um plano de desenvolvimento que coloca o Cerrado como área de expansão da fronteira agrícola, vão continuar existindo enquanto nada for feito para proteger o bioma.

Em 50 anos, isso pode significar o desaparecimento não só do Cerrado como bioma, mas também da água e da vida. Sobre essa questão, o professor Altair é taxativo: “A extinção do Cerrado envolve também a extinção dos grandes mananciais de água do Brasil, porque as grandes bacias hidrográficas ‘brotam’ do Cerrado. O Rio São Francisco é uma consequência do Cerrado: ele nasce em área de Cerrado e é alimentado, em sua margem esquerda, por afluentes do Cerrado: Rio Preto, que nasce em Formosa (GO); Rio Paracatu (MG); Rio Carinhanha, no Oeste da Bahia; Rio Formoso, que nasce no Jalapão (TO) e corre para o São Francisco. Se há a degradação do Cerrado, não há rios para alimentar o São Francisco. Você pode contar no mínimo dez afluentes por ano desses grandes rios que estão desaparecendo”.

CERRADO: PATRIMÔNIO NACIONAL

Por incrível que pareça, apesar da importância do Cerrado para o Brasil e para o mundo, o bioma ainda não foi transformado em Patrimônio Nacional.

E enquanto isso não acontece, as grandes empresas podem continuar desmatando o Cerrado sem maiores implicações legais e jurídicas.

No vídeo ao lado [não existe o vídeo ao lado na matéria original], você vai poder ver como a degradação e o desmatamento desenfreados afetam um dos mais ricos e importantes biomas brasileiros e como a abundância de água e a riqueza genética do Brasil Central podem contribuir para mudar a maneira de explorar a região, assegurando a sobrevivência do Cerrado.

*Coordenação: Coletivo de Comunicadores do Cerrado 

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