Para combater racismo contra indígenas, servidores públicos revisam conceitos e história

Aprofundamento teórico marcou primeiro dia de curso realizado em Santarém (PA)

MPF/PA

Uma sociedade não consegue combater o racismo se não consegue reconhecê-lo. E, para reconhecê-lo, é preciso entender que essa violência muitas vezes passa despercebida porque está baseada em preconceitos tão enraizados na cultura dessa sociedade que são tidos como verdades, e não mais como preconceitos.

Partindo desse ponto de vista, de que a melhor forma de erradicar o preconceito é entender como e por que ele surge, o primeiro dia do curso de formação para servidores públicos em Santarém (PA) sobre os direitos indígenas e o respeito à diversidade etnicorracial, nesta quarta-feira, 29 de março, foi um mergulho no estudo do racismo e das histórias e culturas indígenas geral e regionais.

O racismo surge da crença de que existem sociedades superiores às outras, teoria que levou às barbáries da 2a Guerra Mundial, registrou a representante do Ministério da Educação (MEC) no evento, Susana Martelletti Grillo Guimarães. Essa crença, ao ser adotada pela antropologia, deu origem à ideia de que todas as sociedades seguem uma única linha evolutiva, cujo ponto mais avançado, na época dos europeus à América, seria a civilização europeia.

O conceito de que os indígenas pertencem ao passado da humanidade, ou a uma ‘humanidade ainda selvagem’, só começou a ser revisto a partir do final do século 19, mas ainda há muito dele incorporado ao nosso cotidiano. Como exemplo, Susana Grillo Guimarães citou termos utilizados para descrever as culturas indígenas que carregam uma alta carga pejorativa, como ‘tribos’ ou ‘sociedades frias’, referências de um modo de entender o indígena que via esses povos como totalmente isolados.

O uso do termo ‘povos’ só passou a ser feito muito recentemente, após a ratificação pelo Brasil, em 2004, da convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “E, mesmo assim, no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, o caso em que a questão indígena teve maior visibilidade no Judiciário, o termo não foi utilizado pelo ministro Ayres Britto”, observou o pesquisador e analista do Ministério Público Federal (MPF) Rodrigo Magalhães de Oliveira.

“É impensável que um servidor público se torne agente de discriminação, que exija autorização da Funai [Fundação Nacional do Índio] para que os indígenas exerçam o direito de solicitar benefícios de forma autônoma, como os benefícios previdenciários”, novamente exemplificou a representante do MEC. Segundo ela, o estudo da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Constituição deveria ser incluído no currículo escolar como forma de evitar a disseminação de preconceitos.

Citando a jornalista Eliane Brum, a procuradora da República Fabiana Schneider destacou que nada é mais autoritário do que dizer ao outro que ele não é o que é. E é justamente por isso que vêm passando os povos indígenas de Santarém e região: a sociedade está negando a eles o direito que eles têm de buscar suas origens.

“Guardadas as devidas proporções, podemos fazer um paralelo entre o indígena que busca seu autorreconhecimento como indígena ao brasileiro que busca sua cidadania italiana, por exemplo. São direitos igualmente justos, mas apenas o não índio é incentivado pela sociedade a exercer esse direito. Os indígenas continuam a ser discriminados por essa busca de suas origens”, comparou representante do MPF.

Após fazer um resumo das violências institucionais que os indígenas sofreram no país, desde a proibição e criminalização, por Marquês de Pombal, do uso das línguas indígenas, até o genocídio indígena provocado pela ditadura militar instaurada em 1964, a procuradora da República exibiu o vídeo da mais recente campanha do Instituto Socioambiental (ISA), a #MenosPreconceitoMaisÍndio, que pergunta: “Se tudo mudou em 500 anos, por que não podemos mudar e continuar a ser índio?” (confira o vídeo).

“Cabe a nós dizer quem é ou quem não é índio? Não é possível querermos congelar os indígenas naquela visão estereotipada dos romances de José de Alencar. Existem elementos externos que vão interferir na dinâmica natural de qualquer comunidade e, por isso, ser índio é uma consciência de sua indianidade”, completou a procuradora da República.

O servidor do MPF Rodrigo Oliveira lembrou que o combate ao preconceito contra os indígenas é ainda mais importante na região oeste do Pará porque a área é uma das de maior diversidade de povos no mundo. São pelo menos 40 povos indígenas em toda a região e cerca de 40 comunidades quilombolas só na chamada Calha Norte do Pará.

Houve também a apresentação de muitos exemplos práticos. Um deles: mesmo dentro de universidades, onde imagina-se que há um grau aceitável de informação e tolerância, os indígenas sofrem preconceitos por usarem ornamentos indígenas ou por não terem um suposto biotipo indígena, conta a estudante de medicina Maura Arapyun.

“As pessoas falam que somos ‘índios falsos’ porque não temos o cabelo liso, porque não andamos pelados ou pintados, porque não temos os olhos puxados, e esse tipo de questionamento surge a todo momento, e é dolorido”, criticou.

Também foram citados casos de crianças impedidas de entrarem em sala de aula por estarem pintadas com as pinturas corporais tradicionais indígenas, casos de críticas a pedidos, por indígenas, de ambulâncias para atendimento médico de urgência, e casos que já motivaram iniciativas do MPF, como a ação contra o não atendimento a saúde de povos indígenas de terras não demarcadas e o mutirão pelo respeito à grafia dos nomes indígenas, feito em parceria com o Ministério Público do Estado e Defensoria Pública do Estado.

Ao final do primeiro dia de curso, o professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) Florêncio Almeida Vaz Filho, com o apoio dos mediadores Iannuzy Tapajós, João Tapajós e Luana Kumaruara, fez um histórico detalhado das lutas do movimento indígena e apresentou o documentário Terras dos Encantados [veja abaixo], do diretor indígena Clodoaldo Correa.

Foto: Ascom/MPF-PA

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