Leis evoluíram para defender os direitos indígenas, mas o serviço público não

Segundo dia de curso realizado em Santarém (PA) mostrou contrastes entre a modernização da legislação e o despreparo de servidores para lidar com as questões indígenas #abrilindigena

MPF/PA

As palestras e debates do segundo dia do curso de formação para servidores públicos em Santarém (PA) sobre os direitos indígenas e o respeito à diversidade etnicorracial, nesta quinta-feira, 30 de março, apontaram uma série de exemplos que deixam claro o abismo entre as leis e as práticas cotidianas de instituições e de servidores públicos no atendimento a indígenas.

De um lado, uma legislação que passa a reconhecer, garantir e promover o respeito à diversidade etnicorracial, como a Constituição de 1988 e a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 2004. De outro, instituições e servidores públicos que continuam a tratar o indígena como um incômodo.

“Hoje mesmo já me deparei com uma situação de discriminação causado por esse tipo de postura. As carteiras de trabalho atualmente só estão sendo emitidas por meio de um formulário de requisição disponível na internet. Eu expus a um servidor do Ministério do Trabalho a minha preocupação com a dificuldade que os indígenas terão em receber o documento, já que não têm acesso à internet. A resposta que recebi foi a de que os indígenas têm que se virar. ‘Já que eles querem participar da nossa sociedade, eles que se adéquem à nossa realidade’, disse o servidor do Ministério do Trabalho”, relatou o coordenador técnico local da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Santarém, Aléssio Dantas.

Dantas e outros participantes do evento também lembraram que são comuns casos de servidores públicos que, sem nenhum tipo de embasamento legal, decidem que podem dizer quem é e quem não é indígena, e, uma vez tomada essa decisão, permitem ou não o acesso de indígenas a políticas públicas.

“Aqui na região do baixo Tapajós os indígenas sofrem duplamente o preconceito: primeiro, por serem indígenas; depois, por não terem os traços físicos caricaturais que os não índios acham que os índios devem ter”, contou o servidor da Funai.

Essa dupla discriminação leva à negação do direito à utilização das grafias próprias indígenas no momento do registro de recém-nascidos – prática que vem sendo combatida na região pelo Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Estado (MP/PA), Defensoria Pública do Estado (DPE/PA) e Funai –, à proibição da entrada nas escolas de estudantes com pinturas corporais, à exigência de “autorização da Funai” – algo não previsto em lei – por parte dos bancos, para permitir que os indígenas possam abrir contas bancárias, entre outros exemplos.

Dos casos relatados pelos participantes do curso, servidores públicos estaduais e federais da educação e das demais áreas que prestam serviços a indígenas, um chamou a atenção por também ter sido uma ameaça de agressão física a crianças indígenas. Segundo os relatos, uma diretora de escola da região teria dito que as pinturas corporais indígenas seriam apagadas com esponjas de aço caso as crianças entrassem pintadas na escola.

A demora para a aprovação da normatização das escolas indígenas em Santarém, Belterra e Aveiro, documento amplamente discutido pelos povos indígenas e com minuta pronta, e a insistência de órgãos e servidores públicos em só atenderem os indígenas habitantes de Terras Indígenas demarcadas também foram atribuídas ao preconceito duplo contra os indígenas do baixo Tapajós.

Apesar de a Constituição não vincular o reconhecimento de direitos à conclusão do processo demarcatório das terras, na região só os indígenas com terras demarcadas vinham tendo acesso a políticas públicas de saúde, por exemplo. Para esse direito ser respeitado foi preciso que o movimento indígena se mobilizasse, e que o MPF buscasse a Justiça Federal.

Para discussão dos participantes, o assessor jurídico do MPF Rodrigo Magalhães de Oliveira citou uma frase do filósofo Jean-Paul Sartre que resume o momento paradoxal vivido pelos indígenas do baixo Tapajós, cujos direitos são negados justamente por uma sociedade que se diz plural: “Vocês converteram-nos em monstros, o vosso humanismo pretende mostrar-nos que somos universais e as vossas práticas racistas particularizam-nos”.

Contraste

Para deixar claro que a visão do indígena como alguém a ser “domesticado” pelos não indígenas é um pensamento que ficou – ou deveria ter ficado – no passado, as palestras deste segundo dia de curso enfocaram a evolução histórica das leis e políticas públicas referentes aos direitos indígenas.

Com a participação da estudante de direito Auricélia Arapyun e da coordenadora de educação indígena da secretaria municipal de Educação de Santarém, Iára Arapyun, o representante do MPF tratou da história dos direitos indigenistas e a evolução do integracionismo à autonomia, e da luta pelo reconhecimento da Terra Indígena Maró como Terra Indígena.

A palestra do coordenador técnico local da Funai, Aléssio Dantas, sobre os desafios enfrentados pela instituição na região teve a mediação do estudante de geografia Edgar Carvalho Filho Maytapu.

Iára Arapyun voltou à mesa, desta vez para mediar a palestra da representante do Ministério da Educação (MEC) no evento, Susana Martelletti Grillo Guimarães, que falou sobre a educação escolar indígena diferenciada.

A saúde indígena diferenciada foi tratada pelo antropólogo e analista técnico de políticas sociais na divisão de atenção à saúde indígena do Distrito Sanitário Especial de Saúde Indígena (Dsei) Guamá-Tocantins, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), Pedro Macdowell, e pelo coordenador do polo base do Dsei Guamá-Tocantins em Santarém, Clebson Printes, com a mediação do estudante de geografia Diego Arapyun.

Imagem: Reprodução do MPF.

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