Temer e o viés machista da Reforma da Previdência, por Leonardo Sakamoto

No blog do Sakamoto

O projeto de Reforma da Previdência prevê que homens e mulheres possam se aposentar a partir dos 65 anos, o que tem gerado polêmica uma vez que, em média, mulheres trabalham cinco horas a mais que nós, homens, somando-se o trabalho para fora e o trabalho em afazeres domésticos. Se ambos os gêneros contarem com a mesma idade mínima, o tempo de desgaste maior das mulheres por conta dessa dupla jornada não será contabilizado.

Em entrevista publicada, neste sábado (8), pela Folha de S.Paulo, Michel Temer deixou a entender – ainda que de forma acanhada – que a reforma pode vir a aceitar uma idade mínima menor para aposentadoria das mulheres. ”Convenhamos: Se nós tivermos a idade de homem de 65 anos, e a de mulher 64 ou 63, não significa que não tenha sido feita uma grande conquista”.

A decisão sobre isso depende menos da articulação política no Congresso Nacional e mais da pressão sofrida pelo parlamento. O movimento feminista, com suas diferentes frentes de ação, é um dos mais fortes em capacidade de mobilização e articulação no país. Ou seja, Temer pode afirmar que cedeu até onde podia e que até aceitaria uma diferença de idade de um ou dois anos entre os gêneros. Mas a decisão final sobre isso não depende só dele.

”A diferença de idade para se aposentar é conquista que vem da articulação das mulheres durante a Assembleia Constituinte. Com muita atuação, a chamada ”bancada do batom” junto com os movimentos de mulheres conseguiram aprovar o reconhecimento da dupla jornada de trabalho”, afirma Maíra Kubik Mano, professora do programa de Pós-graduação em Estudos Interdisciplinas sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia.

”A grande questão é que as mulheres querem se aposentar na mesma idade que os homens se elas tiverem exatamente a mesma jornada que os jomens, o que é absolutamente irreal hoje. E isso significa perda de direitos”, completa.

Mulheres deveriam ganhar mais que os homens, no Brasil, considerando sua formação, experiência e produtividade em relação à atividade econômica e à posição profissional. O dado faz parte do ”Relatório sobre Salário Global”, divulgado Organização Internacional do Trabalho, o último que trouxe dados específicos sobre o Brasil. Contudo, as brasileiras recebem salários menores.

Um dos fatores apontados pela Organização Internacional do Trabalho para essas diferenças é a discriminação – aqui muitas vezes travestida de ”costume”, ”cultura” e ”tradição”. Até porque violência de gênero não se manifesta apenas através da porrada, mas possui mecanismos mais sutis.

De acordo com a Síntese de Indicadores Sociais, do IBGE, divulgada em 2015, que analisa a série histórica de 2004 a 2014, em média o rendimento das mulheres era 74% do rendimento dos homens no último ano da série. Entre as pessoas com até quatro anos de estudo, esse valor era de 78%, e para quem tem mais de 12 anos era menor ainda, 66%.

A jornada de trabalho remunerada das mulheres era de, em média, 35,5 horas semanais, enquanto os afazeres domésticos, que são horas de trabalho não remunerado, representavam 21,2 horas semanais.

No caso dos homens, a jornada de trabalho remunerada era de 41,6 horas semanais e a de afazeres domésticos, de 10 horas semanais – menos da metade da jornada feminina nesse tipo de trabalho. Detalhe: de 2004 a 2014, a quantidade de tempo dedicada aos homens para esse trabalho não se alterou.

Com isso, a jornada feminina semana (56,3 horas) é superior à masculina (51,3 horas) em cinco horas.

O trabalho doméstico ainda não é considerado trabalho, mas sim obrigação, muitas vezes relacionado a um gênero que tem o dever de cuidar da casa. Dever este que não está no código genético da humanidade mas foi construído e não raro imposto. Transformado em tradição e cultura, é abraçado e dificilmente discutido. Como se mulher cuidar da casa e dos filhos fosse a coisa mais natural do mundo.

É sintomático, portanto, que apenas recentemente a Organização Internacional do Trabalho tenha conseguido aprovar uma convenção para igualar direitos para trabalhadoras domésticas em relação ao restante da sociedade. Ou que o Brasil aprovasse uma lei que abrisse uma fresta de luz na senzala das trabalhadoras empregadas domésticas, garantindo a elas os mesmos direitos que o restante da população.

Segundo a Síntese de Indicadores Sociais, as mulheres continuam com menos acesso a cargos de direção do que os homens. Isso sem contar que, quando atingem esses postos, sua remuneração corresponde a 70% da masculina.

”Outra questão, é o papel reprodutivo da mulher e o tempo que ela fica fora do mercado de trabalho. A competição com o homem é desigual, porque ela não tem promoção, não tem cargo de chefia, ganha cerca de 30% a menos que o homem pela mesma função e, por essa mesma razão, sua taxa de desemprego é muito mais alta”, afirma Eduardo Fagnani, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas e coordenador da rede Plataforma Política Social.

Defensores da imposição de uma mesma idade mínima entre homens e mulheres para aposentadoria afirmam que isso é adotado em países desenvolvidos. Mas a comparação é refutada por especialistas contrários à Reforma da Previdência, que explicam que as condições sociais e econômicas no Brasil colocam a mulher em desvantagem no mercado de trabalho.

Para o professor Marcus Orione, professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ligado ao Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social, é uma simplificação fazer essa comparação.

”A idade é igual em outros países porque as condições de proteção da mulher no mercado de trabalho são completamente distintas do que ocorre aqui. Há proteção da Seguridade Social e o homem também é um cuidador do ambiente doméstico. No Brasil, a mulher trabalha em casa, depois vai para a jornada fora e volta para cuidar dos filhos.”

Ele lembra a necessidade de aumentar substancialmente a licença paternidade e, principalmente, garantir creches de qualidade. Além de uma mudança de mentalidade sobre o compartilhamento dos afazeres domésticos.

A diferença de idade não é porque mulheres são mais frágeis. Pelo contrário, serve para compensar um sistema injusto social e economicamente, tratando os desiguais na medida de sua desigualdade. O contrário, a imposição de uma igualdade que não existe, é retirar proteção social e aprofundar nossa estrutura machista de país.

”Não é correto tentar inspirar a reforma brasileira nos países desenvolvidos, porque o Brasil não conseguiu resolver sequer as desigualdades sociais do século 19”, afirma Fagnani.

Ou seja, o governo está propondo trocar o piso de uma casa, que claro, precisa de melhorias. Mas ignora que suas fundações, que não garantem segurança para os seus moradores, precisam de uma reforma mais urgente. Resta saber se os moradores vão topar continuar sob risco de fundações de baixa qualidade e com um chão remendado por conta da promessa de que ainda restará um telhado (esburacado, graças à aprovação da lei da terceirização ampla) como consolo.

 

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