Judiciário paulista: “A elite da elite financiada com dinheiro público”

Por Tatiana Carlotti, Carta Maior

As Jornadas de 2017 da Carta Maior trazem o poder Judiciário para o centro de debates neste mês de abril. Na última semana, a advogada Luciana Zaffalon apresentou os resultados de sua pesquisa de doutorado, defendida em fevereiro na FGV-SP, sobre o impacto das disputas corporativas do Sistema de Justiça nas disputas políticas do Estado de São Paulo, em um contexto de fascismo social.

Com a experiência profissional de quatro anos na Ouvidora Externa da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e sete anos na coordenação do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDD), ela se debruçou sobre a dinâmica das relações entre o governo paulista e as instituições de Justiça – Tribunal de Justiça (TJSP), Ministério Público (MPSP) e Defensoria Pública (DPESP) – do Estado de São Paulo.

Foram analisados centenas de documentos e projetos de lei, relativos às três instituições analisados, compondo um minucioso e importante diagnóstico sobre a captura do poder Judiciário pelo poder político em São Paulo. O estudo, inclusive, mostra o imbricamento entre os interesses corporativos e os políticos e partidários, em um contexto onde as carreiras são compostas por membros vitalícios em um governo sem alternância partidária no estado, desde 1994.

“Em um espaço com forças políticas tão fortes, capazes de se consolidar em um projeto partidário e hegemônico no Estado de São Paulo, seria ingenuidade imaginar que essa força política não opere dentro do sistema de Justiça”, aponta a advogada ao salientar a “obscuridade”, a “perspectiva de privilégio” e de “proteção das elites” enquanto marcas do sistema da Justiça paulista.

Enquanto isso, o encarceramento em massa da população mais pobre se torna “regra do nosso sistema de Justiça”. O mecanismo é notório: blinda-se as elites enquanto à sociedade civil “se reservam as periferias, a prisão ou a morte”.

Cooptação via benefícios remuneratórios
Os dados apresentados por Luciana ao longo da conferência falam por si. Ao analisar os projetos de lei, entre janeiro de 2011 a junho de 2016, relativos ao TJSP, MPSP e DPESP, na Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP), ela descobriu, por exemplo, que no momento da provação da Lei Orçamentária de São Paulo, a ALESP transfere a sua atribuição de aprovar as complementações orçamentárias para o governo do Estado.

Ou seja, as negociações relativas a essas complementações que, no caso do Judiciário, dizem respeito a uma série de benefícios, são realizadas no gabinete do governador. “Isso cria a dinâmica de alimentação de um imbricamento muito profundo entre disputas remuneratórias e disputas políticas rigorosamente como regra”. Para termos uma dimensão do que isso significa, em 2017, o Judiciário paulista abocanhou 21% das suplementações orçamentárias do Estado de São Paulo.

Em relação às reformas corporativas aprovadas na ALESP, o PSDB e, em particular, o governador de São Paulo lideram a apresentação de projetos relativos à organização do sistema de Justiça ou benefícios remuneratórios, explicitando o “robustecimento corporativo e de vantagens das carreiras jurídicas viabilizado por propostas diretas do governo do Estado”.

Os projetos propostos pelo MPSP e TJSP, por sua vez, não apenas “se dedicavam ao apetrechamento das instituições do Judiciário, mas fomentavam a rotina de negociação direta de suplementação orçamentária com o governo, com a criação quase invariável desses benefícios e desses fortalecimentos institucionais”.

O resultado, aponta, é “uma espiral elitista de formação corporativa e institucional”. Segundo Luciana, “é frente aos atos de vontade do governador que o funcionamento aristocrático da justiça local tem se concretizado, viabilizando a evolução da organização corporativa do poder em detrimento da cidadania”.

Salários acima do teto constitucional
As folhas de pagamentos do MPSP, inclusive, dimensionam a “espiral elitista”. Em 2015, somente 60 dos 1.920 registros salariais dos promotores paulistas não superaram o teto constitucional como média mensal, ou seja, apenas 3,1% da carreira recebeu abaixo do teto constitucional de R$ 33.762,00. “E eu não estou contabilizando 13° e férias”, apontou Luciana.

Naquele ano, o rendimento mensal médio de um promotor de Justiça do Estado de São Paulo chegou a 46 mil reais, e a soma dos complementos remuneratórios (benefícios e penduricalhos) ultrapassou 62,5% da remuneração padrão. Na Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por sua vez, o rendimento mensal médio foi de R$ 26.980,00. E com base em dados do CNJ, Luciana aponta uma despesa média mensal de R$ 45.906,00 com magistrados na Justiça paulista.

Para dar uma dimensão do que significam esses números, ela citou os dados da PNAD de 2015. No Brasil, apenas 2,3% das pessoas ganharam acima de 8 mil reais naquele ano. No Estado de São Paulo, foram somente 3,3% da população. E se considerarmos apenas os funcionários públicos com ensino superior, o índice não ultrapassa 12% com ganhos mensais acima de 8 mil reais.

“Quando a gente olha o teto constitucional, estamos falando um patamar de rendimento acima do qual se encontram somente uma parcela ínfima da população: 0,8% no Brasil e 0,10% em São Paulo. É a elite da elite financiada com dinheiro público via projetos propostos pelo governo do Estado”, apontou.

Enquanto isso…
Em sua pesquisa, Luciana também analisou os pedidos de suspensão de decisões judiciais solicitados pelo governador paulista ao Tribunal de Justiça. O resultado impressiona: em 100% dos casos, quando o governador pedia a aplicação do teto constitucional, o pedido foi recusado. Por outro lado, 82% dos pedidos relativos à licitações e contratos públicos foram atendidos, assim como 87% dos pedidos relativos à privação de liberdade, leia-se pedidos da Fundação Casa ou do sistema prisional.

“Em 13 dos 15 processos que trataram de temas relacionados à privação de liberdade os efeitos das de primeira instância foram suspensos a pedido do Governo do Estado”, destaca. A justificativa na solicitação da suspensão de direitos aos presos? “Há um prejuízo público em fazer um gasto público não previsto no orçamento original”. E isso acontece, destaca a advogada, “mesmo que o Tribunal fique com 21% de toda complementação orçamentária de São Paulo”.

São casos, por exemplo, de observância do Estado da Criança e do Adolescente relativos à superlotação e problemas com os banheiros e ventilação na Fundação Casa; de instalação de equipe mínima de saúde em unidade prisional  onde 60 pessoas haviam morrido por questões de saúde; de interrupção de novos presos e transferência dos que ali estavam por conta de condições de insalubridade nas carceragens; de superlotação e até de garantia de banho em temperatura adequada.

“Eu fico com complementação para garantir os benefícios corporativos, mas os presos não vão ter equipe mínima de saúde porque isso vai ser um rombo no orçamento não previsto”, destaca. Apontando que o aprisionamento em massa da população mais pobre é “regra do funcionamento da nossa Justiça”, Luciana analisou a escalada das prisões no Estado, sobretudo após a aprovação da Lei de Drogas, que fez com que a polícia continuasse prendendo as mesmas pessoas mas, agora, com penas mais longas.

“Nos últimos dez anos houve um aumento dramático da população carcerária”, destaca, apontando também o aumento, cada vez maior, de assassinatos por policiais em São Paulo. Uma média de 2,3 pessoas oficialmente mortas por dia, em 2015, pelas polícias do Estado de São Paulo.

Lembrando que a Constituição de 1988 garante que o controle externo das polícias compete ao Ministério Público e que as policias – civil e militar – estão sob a gestão da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, Luciana alertou para o fato de “estarmos no sétimo secretário da SSP que é promotor de Justiça”, ou seja, “o MP que devia fazer a fiscalização passou a ser o gestor da polícia”.

O que resulta disso é dramático: em 90% dos casos de letalidade cometida por policial, o MP pede arquivamento dos processos que é concedido pelo Tribunal de Justiça ou pelo Judiciário de primeira instância. Soma-se a isso a “seletividade racial, territorial e social do controle estatal exercido por meio do direito penal”.

Atuando sobretudo nas periferias, as prisões cometidas pela PM se dão sem nenhum controle. “Os flagrantes quase invariavelmente são convertidos em penas de prisão” e a PM, em geral, atua como única testemunha nestes casos, sem que a alegação policial no momento da prisão passe por algum tipo de revisão. “A categorização ou é mantida ou agravada até o momento de fixação da pena. Tudo só vai piorando para as pessoas que são presas nestas condições”.

Ouça aqui a íntegra da conferência de Luciana Zaffalon

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