Cadastro Ambiental é usado para legalizar grilagem na Ilha de Marajó

Especialistas alertam que função inicial do CAR foi desvirtuada e maiores prejudicados são populações tradicionais

Por Lilian Campelo, Brasil de Fato

O Cadastro Ambiental Rural (CAR), criado para controlar, monitorar e combater o desmatamento das florestas e demais formas de vegetação nativa do Brasil, está sendo utilizando, na Ilha de Marajó, no Pará, como instrumento para grilar terras e expulsar famílias ribeirinhas dos lotes onde moram, como denunciam pesquisadores consultados pela reportagem do Brasil de Fato. A situação paraense é especialmente complicada. De acordo com os números do último boletim informativo do cadastro, o percentual de áreas cadastradas no estado é maior do que todo o seu território físico.

No documento, consta a informação de que o limite de superfície para cadastro no estado paraense é de 56.836.278 hectares, contudo, na base de dados já constam 57.205.478 hectares declarados. Comparando os números do mês anterior, o documento aponta que houve um aumento de 69.290 hectares.

É o caso do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Ilha Santana, localizado em Ponta de Pedras, na ilha de Marajó. Consta no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar) o registro do cadastro ambiental rural coletivo do assentamento, mas, sobre ele, há outro cadastro, ou seja, um está sobreposto ao outro, como é possível verificar no mapa do sistema.

O CAR é um registro eletrônico para imóveis rurais e, segundo o site do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), órgão federal vinculado ao Ministério do Meio Ambiente responsável pelo gerenciamento do cadastro ambiental no país, foi criado para integrar as informações ambientais.

O cadastro é feito por autodeclaração e registrado na plataforma virtual do Sicar, do governo federal, podendo ser feito também pelo órgão ambiental estadual, como por exemplo a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas-PA). Na inscrição, devem constar todas as informações ambientais da propriedade ou da posse rural, indicando a localização por meio de coordenadas georreferencias e se o território é uma Área de Preservação Permanente (APP), área de uso restrito, área consolidada, reserva legal, floresta ou área remanescente de vegetação nativa.

CAR sobreposto da empresa Ecomapuá Conservação Ltda chamada de Fazendo Lago Jacaré inseridas nas Reservas Extrativistas Mapuá e Terra Grande Pracuúba delimitadas pelas linhas laranjas. Ao redor, formando círculos de cor verde mais clara são outros imóveis rurais cadastrados no sistema do CAR

CAR latifúndio

Carlos Ramos, engenheiro florestal e consultor socioambiental da Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetagri) e da Comissão Pastoral da Terra no Pará (CPT), informa que existem muitas áreas da União com registro no CAR e cita como exemplo o município de Chaves, também na Ilha de Marajó, onde existem diversos cadastros de imóveis rurais no Sicar, mas sem o conhecimento de famílias ribeirinhas que lá vivem.

“Existem várias famílias morando e tem muito CAR em cima delas e elas nem sabem disso. Segundo a legislação brasileira, você só pode regularizar áreas acima de 2.500 hectares se passar pelo Congresso nacional. Esses CARs [diz apontando no mapa], muitos deles estão acima de 2.500. Então não é só a grilagem, é grilagem com latifúndio”.

Os dados do boletim apresentado pelo SFB não contabilizam os imóveis sobrepostos e cadastrados em Unidades de Conservação (UC) e Terras Indígenas (TI). Essas informações estão no próprio site do Sicar. Somente no Pará, 1.214 imóveis rurais foram registrados em Terras Indígenas, cuja extensão totaliza uma área de 1.234.162,67 hectares. Em Unidades de Conservação existem 139 imóveis rurais sobrepostos, correspondendo a uma extensão de 308.422,51 hectares.

Durante a entrevista, Ramos vai apresentando diversos outros exemplos de CAR sobrepostos, um deles chama atenção. É o caso do CAR registrado dentro de duas Reservas Extrativistas denominadas Mapuá e Terra Grande Pracuúba. A área desse cadastro dentro das reservas foi registrada em 58.118,42 hectares e afirmar, “a área é 4 mil vezes  maior que o Bosque Rodrigues Alves que tem 13 hectares” em Belém.

A informação é que o registro pertenceria à empresa Ecomapuá Conservação Ltda. No site do CAR na Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), o registro está como pendente e ainda é possível verificar no mapa a localização do CAR dentro da reserva; na plataforma do Sicar do governo federal, a localização no mapa já não consta mais.

Conforme a Secretaria de Meio Ambiente, as informações inseridas no sistema são analisadas e recebem status de ativo quando são enviadas as informações pendentes e é passível de cancelamento se verificado que a declaração está incorreta, ou no caso de sobreposições do imóvel rural em Terras Indígenas, Unidades de Conservação, Terras da União, áreas consideradas impeditivas, áreas embargadas ou com outros imóveis rurais.

Grilagem?

Eliane Moreira, promotora de Justiça Agrária da primeira região do Pará no Ministério Público do Estado (MPE), no artigo O Cadastro Ambiental Rural: a nova face da grilagem na Amazônia?, afirma que o CAR não pode ser “considerado título para fins de reconhecimento do direito de propriedade ou posse”. Contudo, como o ato da inscrição exige documentos que possam comprovar a propriedade ou a posse, a situação gera um grande problema: “Juridicamente não existe posse em terra pública  e só há posse válida em terra particular”, situação que vem acirrando os conflitos já existentes.

“Da mesma forma, os sistemas estaduais não têm dado a devida atenção a esta situação, gerando a expedição de cadastros que muito mais contribuem para o agravamento de conflitos e para a grilagem de terras ao se manter vínculo do cadastro com o termo ‘proprietário’”, analisa.

Caos Fundiário

A quantidade de cadastros de imóveis rurais e sobreposições expõem o caos fundiário no Pará. O professor no programa de pós-graduação em direito na Universidade Federal do Pará (Ufpa) Girolamo Domenico Treccani afirma que se fossem comparados os dados de cadastros no Incra, CAR e registro de imóveis dos cartórios, se verificaria que “não existem informações confiáveis”.

O professor também foi assessor chefe no Instituto de Terras do Pará (ITerpa) e participou da Comissão Permanente de Monitoramento, Estudo e Assessoramento das Questões ligada à Grilagem que analisou os documentos de posse e propriedade de terra nos cartórios do estado. Após a verificação, foram solicitados o bloqueio de cerca de seis mil títulos que detinham entre 2.500 a 1 milhão de hectares.

Ele analisa que o CAR esteja sendo utilizado para outros fins fora do propósito para a qual foi criado, e alerta que as maiores vítimas serão as populações tradicionais.

“Me parece que está se desvirtuando a ideia e a prática do CAR para que ele se transforme em algo que dá direito ao acesso à terra. Isso está absolutamente errado. A maior vítima disso, evidentemente, são as populações tradicionais. Por isso, é fundamental que elas despertem para a necessidade que cada área quilombola titulada deveria ter o CAR”, alerta o professor.

Edição: Vanessa Martina Silva.

Imagem destacada: Comunidades ribeirinhas e quilombolas são as mais afetadas pelas irregularidades / Carolina de Melo Franco | Wikicommons

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