O que pensam 5 mulheres indígenas que são lideranças em suas comunidades

Relatos sobre maternidade, protagonismo feminino e mudanças climáticas fazem parte do livro “Povos Indígenas no Brasil”

por Tory Oliveira — CartaCapital

Fátima, Josiane, Magaró , Aracy e Estela são algumas das lideranças femininas indígenas contemporâneas, cujo depoimento sobre temas como a maternidade, as relações de poder dentro das comunidades, o modo de vida tradicional e as mudanças climáticas foram coletados por antropólogas para o livro Povos Indígenas no Brasil (2011-2016), publicado pelo Instituto Socioambiental (ISA) no mês de abril.

Segundo o Censo IBGE 2010, dos 817 mil indígenas distribuídos entre mais de 240 povos, 444 mil são mulheres. Para além dos desafios ligados ao contexto dos povos indígenas, como a disputa por terras, os avanços dos ruralistas e a violência no campo, as indígenas também enfrentam questões como a violência contra a mulher.

“Num contexto de defesa de territórios e exclusões sociais, as mulheres indígenas têm sido alvo de violências perversas baseadas em gênero, a exemplo de feminicídios, exploração sexual, tráfico de pessoas e agressões de outras naturezas que se acentuam na medida em que elas afirmam o seu protagonismo político em defesa dos seus povos e seus direitos”, declarou a representante da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasman.

Os depoimentos presentes no livro procuram dar representatividade às lideranças femininas dos povos Guarani, Wajãpi, Xavante, Tivcuna, Baikari, Tukano, Paumari, Ikpeng e Kawaiwete, ao mesmo tempo em que almejam “tornar conhecidas as trajetórias, memórias e perspectivas de algumas mulheres indígenas e, por meio delas, entrever as formas como povos e comunidades diferentes produzem conhecimentos, corpos, arte, alimento, política, diversidade”.

A publicação completa está no site do Instituto Socioambiental.

Conheça trechos de algumas das histórias:

“A gente aprende observando nossas mães” 

Aracy Xavante nasceu na aldeia Pimentel Barbosa, no Mato Grosso, e é neta da liderança que fez o contato de seu povo com os homens brancos na década de 1940. Os Xavante vivem no leste do Mato Grosso e pertencem ao tronco linguístico Jê. Atualmente, sua população é de 18,3 mil pessoas.

Em depoimento gravado pela antropóloga Camila Gauditano em 2010 e traduzido por Cipassé Xavante, Aracy comenta sobre as principais fases da vida para a mulher xavante.

“Quando pequena, a gente aprende observando as nossas mães, a gente aprende brincando. Nós que temos curiosidade e é a primeira vez que estamos vendo aquilo, a gente observa as nossas mães e vendo, a gente imita as nossas mães fazerem as coisas. Eu aprendi vendo a minha mãe (…)

A maneira de se comportar durante a gestação e quando chega o dia de sentir as dores, nossas mães também orientam: não temos que ficar assustadas, temos que ficar calmas. Quando eu tive a primeira filha, eu sentia a primeira dor. Eu não sei se todo mundo pensa assim, mas temos que enfrentar a dor porque somos mulheres e não temos que deixar nosso marido ou a família dele envergonhados. 

Não é só o homem que tem conhecimento da região onde tem a melhor caça: nós também conhecemos a região onde tem muita batata, muita fruta do cerrado. É difícil a mulher se perder; as nossas mães, as nossas avós já andaram ali, esse lugar já é conhecido e elas que transmitem o conhecimento do lugar. 

Nós, mulheres, sonhamos muito. Algumas sonham com choro, mas a gente esquece muito. Eu mesma sonho mais com choro, acordo lembrando do choro, mas depois esqueço” 

“Não são só os indígenas que vão morrer. Somos todos nós”  

Magaró Ikpeng vive no Território Indígena do Xingu, no Mato Grosso, e é uma das 65 mulheres coletoras que se autodenominam Yarang. O termo significa “saúva” na língua ikpeng, uma alusão ao movimento de recolher as sementes do chão da floresta e levá-las para casa.

Em depoimento gravado por Isabel Harari em 2016 e traduzido por Oreme Ikpeng, ela fala sobre as mudanças climáticas sofridas pelo planeta e sobre o que significa ser mulher e liderança Ikpeng.

“Quando ela acorda, sempre acorda pensando nas sementes (…) Os homens não têm isso; eles não ficam pensando nas sementes. Acordo já cedo pensando com a ideia de colher semente e, inclusive, minhas filhas estão me chamando de Semente. A gente tem que andar no sapé, no sapezal, na mata fechada ou na mata aberta. Cada semente é um lugar e um desafio para colher. 

Aí a gente fica sabendo que a Terra vai esquentar, que a Terra vai explodir, que as pessoas vão morrer, e que a Terra está muito quente por causa das mudanças climáticas. Tudo isso todo mundo sabe. Os próprios brancos ficam falando, mas são os próprios brancos que desmatam. Os brancos acham que só nós vamos ser impactados com o que eles estão causando. Não são só os indígenas; não sou só eu que vou morrer. Somos todos nós que vamos morrer.

Quando eu vou trabalhar, vou com as minhas noras, minhas netas, minhas sobrinhas, minhas filhas, porque aí elas ajudam na colheita. Sou chefa delas aqui dentro de casa, mas todas ajudam e mandam em meu nome.

Eu sou uma liderança, então tenho essa responsabilidade de estar no centro, nas decisões, de falar. Eu não sou chefa das pessoas, sou líder delas, das mulheres. Então as mulheres decidem, falam, e eu só falo o que elas decidirem. 

A todas as meninas indígenas, que estudem, que aprendam, que se dediquem em sua comunidade, para lutar pelos seus direitos, para aprender a ser professora, agente de saúde, dentista, liderança na sua aldeia. E também ser liderança para representar mulheres” 

“Ser mulher ticuna é ser guerreira” 

Josiane Tutchiauna é mulher ticuna e tem 36 anos. Desde os 12, acompanha os pais na militância indígena. Graduanda em Antropologia Social, atua no âmbito das políticas educacionais e nas relações de gênero e sexualidade. Ela relata os desafios das mulheres indígenas no Alto Solimões e revela como, pouco a pouco, conseguiram quebrar tabus. Seu depoimento foi colhido pela antropóloga Patricia C. Rosa.

“Ser mulher ticuna na minha geração é ser mulher guerreira, batalhadora, mulher que trabalha continuamento pela defesa do seu povo, de sua comunidade. Ser mulher indígena e ticuna é ser aquela que mantém, lado a lado com os homens indígenas, o espírito guerreiro dos seus ancestrais no seu corpo, na sua alma, sem temer a nada.

Pouco a pouco, a geração de que eu faço parte está alcançando o objetivo de conseguir um espaço como mulher líder; e de não deixar morrer esse espírito de guerreiras que tinham nossas antepassadas.

Hoje, nós, mulheres ticuna, também buscamos igualdade de gênero na política. O objetivo é seguir mostrando que as mulheres também sabem sobre política, dos saberes tradicionais, da cultura, de educação e saúde; está na hora das mulheres ticuna serem as protagonistas.

Queremos mostrar aos jovens que somos ricos sem saber, que não precisamos viver na dependência do sistema capitalista, que controla todo mundo. Ser mulher ticuna hoje é isso: ser mulher guerreira que luta pelos direitos das mulheres indígenas”

“Gostaria que meus filhos e netos quisessem saber da nossa língua” 

Na década de 1960, quando era bem jovem, Fátima Paumari viu um hidroavião com missionárias pousar pela primeira vez nas águas do Lago Marahã, na região do rio Purus, no Amazonas. Foi uma das principais tradutoras de textos bíblicos para a língua paumari. Amava cantar, dançar e contar histórias. Fátima morreu em outubro de 2016, em decorrência de uma pneumonia não diagnosticada a tempo, pouco depois de gravar o depoimento colhido pela antropóloga Oiara Bonilla. 

“Hoje em dia, essa nova geração não dá mais ouvidos, nem obedece os conselhos da mãe. Dizem que o que as mães aconselham não é verdadeiro. No meu tempo, crianças, moças e rapazes ouviam e seguiam os conselhos das mães, mas agora não dão mais ouvidos para nada.

Antigamente, casávamos com os nossos primos de verdade, esse era o jeito dos nossos antepassados. Agora há uma grande mistura. Os não-indígenas já têm espaço demais entre nós, em nossas aldeias. Agora vivemos na mistura. Não queremos mais saber do jeito dos antigos. 

Gostaria muito que nossos filhos e netos ainda quisessem saber da nossa língua, dos nossos cantos. Eu continuo fazendo viver a nossa língua, os nossos cantos, para a nova geração. Gostaria que, no futuro, meus netos, por sua vez, ensinassem nossa língua aos netos deles, e assim manteríamos a nossa língua viva. 

Não quero que desvalorizemos mais a nossa língua, como se a jogássemos fora. Nossos cantos já não são cantados como antigamente, mas eles ainda são lindos. Gostaria que as pessoas do meu povo fossem capazes de cumprimentar e responder em nossa língua”.

 “Está tudo fora do tempo”

Estela Vera é uma opuraheiva, rezadora e xamã do povo Ava Guarani. Com cerca de 70 anos, vive no território Protero Guasu, no município de Paranhos, em Mato Grosso do Sul. Sua terra é declarada como indígena desde 2000, mas ainda não foi demarcada, deixando os cerca de 200 habitantes em situação de vulnerabilidade e violência. Seu depoimento foi colhido pela antropóloga Lauriene Seraguza.

“Se não tiver mais reza e rezador, o mundo vai acabar. Tudo vai acabar, os sinais de que o mundo está acabando já estão aparecendo. Hoje temos menos rezadores (opuraheiva), chuvas sem limite. Está tudo fora do tempo. No mundo todo está acontecendo isso, não só no Brasil. 

Vivo com a minha reza ainda pela vida dos inocentes, pois ainda aparecem crianças que esperam muitas coisas de mim. Por isso tenho forças para continuar a minha vida como opuraheiva.

Nós opuraheiva somos diferentes dos crentes, dos evangélicos. Nós pedimos pela vida de todas as pessoas, pedimos para melhorar cada vez mais o nosso mundo. Os crentes pedem para Jesus vir logo, acabar com tudo e levá-los embora para junto dele. 

Não é o mundo que precisa de solução, somos nós que estamos fazendo tudo errado. Nós é que não obedecemos mais as inspirações que Kurahy (Sol) nos deixou, não estamos sendo obedientes a ele e, por isso, ele já se cansou de nós. 

Eu me sinto muitas vezes presa, pois não sei onde vou fazer a minha reza, para quem vou cantar meus cantos, meu conhecimento. Durante os meus sonhos, eu sou cobrada para fazer a minha reza e os meus cantos. Sonhos sempre que tenho que rezar com dois meninos e duas meninas, durante 15 dias, para continuar a saber o que vai acontecer no nosso mundo. Mas acordo e penso: para quem vou fazer meus cantos? Para quem vou contar minhas histórias? Quem está interessado?”

Foto: Mulheres participam de competições na Semana dos Povos Indígenas, em São Felix do Xingu, no sul do Pará (Thiago Gomes/Agência Pará/Fotos Públicas)

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