Entre a floresta e a praia, quilombo briga pela posse da terra

Há pelo menos dez anos, comunidade da Fazenda, no litoral de São Paulo, aguarda definição. Caso está na fila em meio a 1.600 processos para titulação de remanescentes de quilombos.

Na DW

Com passos curtos e apressados, apoiado na bengala, José Vieira é o primeiro a chegar todas as manhãs na casa de farinha. Aos 79 anos, ele passa os dias esperando visitantes interessados na história do lugar, a comunidade Quilombo da Fazenda, em Ubatuba, litoral de São Paulo.

“Eu sou neto de escravo. Este lugar aqui pra mim é a minha casa”, conta Zé Pedro, como é conhecido. Ele mantém a tradição de contar as histórias ouvidas desde a infância sobre a fuga dos escravos para dentro da mata ainda no século 19, e acredita que o avô tenha ajudado a mover aquele moinho de água.

A estrutura hoje é usada pra fazer farinha esporadicamente, quando a colheita de mandioca na comunidade é farta. Mas as roças de subsistência enfrentam restrições. Embora as famílias vivam no local há décadas, a maioria descendente de escravos, elas ainda não têm o título da terra.

“Meu avô foi filho de escravo”, diz o morador Cirillio Braga. “Aqui era a área do meu pai, da minha mãe, onde eles plantavam mandioca, milho, feijão. Eles morreram, e a gente ficou cuidando do lugar”, diz o produtor rural, que transformou a roça tradicional numa agrofloresta.

Caso atípico

Segundo a Constituição Federal, remanescentes de quilombos têm a garantia do reconhecimento e propriedade definitiva da terra. Dados do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) mostram que 220 títulos foram emitidos até agora, mas a fila de espera é longa: 1.632 processos estão em andamento no país.

O caso do Quilombo da Fazenda é atípico. Na década de 1950, o antigo proprietário abandonou a área, mas as famílias que trabalhavam na fazenda continuaram vivendo no local. Quase 30 anos depois, o governo estadual criou um parque de conservação ambiental para frear a especulação imobiliária e proteger a mata atlântica.

Com a medida, a paisagem não poderia mais ser alterada, e os quilombolas foram pegos de surpresa, relembra Roberto Braga, que mantém o cultivo iniciado pelo pai, em 1950. Ele conta que foi processado por mexer no terreno da sua casa sem pedir autorização para o parque.

“O morador tradicional não quer muita coisa, não. Ele quer um espacinho pra poder plantar, mexer com a terra, colher uma mandioca, uma banana. O morador é que protege essa mata, esse parque”, diz sobre a relação com a área.

“Se por um lado o parque não ajudou a gente em nada, por outro lado, se ele não existisse, talvez a gente não estivesse mais aqui”, reconhece Roberto.

“Meu avô foi filho de escravo”, diz o morador Cirillio Braga. “Aqui era a área do meu pai, da minha mãe”. Foto: N. Pontes, Deutesche Welle

Briga que se arrasta

Por estar dentro de um parque estadual, o caso do Quilombo da Fazenda passou para a competência do estado de São Paulo. O Incra diz acompanhar a discussão junto à Fundação Florestal, que administra o parque, e cita impasses.

“O relatório técnico-científico sobre a comunidade da Fazenda foi feito pelo estado. Mas ele sequer foi publicado, principalmente porque o parque estadual não concordou com os resultados”, revela Antônio Oliveira Santos, do Incra.

Há dez anos que o relatório em questão foi entregue à Fundação Florestal, segundo informações divulgadas pelo Itesp (Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo). Questionada, a Fundação Florestal alegou que os estudos foram encaminhados para as instâncias superiores para finalização do processo, sem citar prazos.

Para a Defensoria Pública, que move uma ação para agilizar o reconhecimento, a unidade de proteção ambiental gerou restrições às atividades tradicionais da comunidade, como proibição da caça e pesca artesanais.

As medidas teriam aprofundado “o processo acelerado de criminalização, conflitos e dissolução comunal enquanto unidade de identificação étnica integradora da formação material e imaterial da nação brasileira”, diz o texto ajuizado em 2016.

Uma das soluções propostas pelo Incra é recategorizar o parque para uma unidade de uso, que possa ser usada para extrativismo, por exemplo.

Moinho hoje é usado pra fazer farinha quando a colheita de mandioca na comunidade é farta. Foto: N. Pontes, DW

Morada em meio à floresta

“A nossa grande esperança é que nosso território seja reconhecido”, diz Vera Lucia Jorge Braga, presidente da associação quilombola.

O sossego, o trabalho na roça e o convívio com os vizinhos, entre a praia e a floresta, fazem com que os moradores briguem pelo direito de permanecer, diz a líder comunitária. “Se tirarem a gente daqui, a gente morre”.

Zé Pedro, morador vivo mais antigo do quilombo, diz que a posse definitiva da terra é fundamental para que a história não seja esquecida. “É importante preservar o lugar para preservar a raiz e a vida das pessoas. Não é bom ter uma água limpa? Uma comida natural? Uma mata? Isso é preservar a vida.”

José Vieira, de 79 anos, passa os dias esperando visitantes interessados na história do lugar. Foto: N. Pontes, DWelle

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