Muros do condomínio esquerdista transformados em pontes de diálogo pragmático com a maioria inconformada. Entrevista especial com Moysés Pinto Neto

Patricia Fachin – IHU On-Line

A consciência de que todo o sistema político brasileiro foi atingido pelas recentes delações dos executivos da Odebrecht “só não é compartilhada pelos mais fanáticos dos dois lados da polarização pós-2014”, afirma Moysés Pinto Neto à IHU On-Line. Na avaliação dele, as delações “arrasadoras” das últimas semanas demonstram que a “corrupção representa, no Brasil, uma cultura de saque das elites que permanece desde a Colônia e é extremamente difundida na sociedade”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Pinto Neto comenta a atual conjuntura política e a atuação da esquerda nesse cenário. Para ele, embora a esquerda tenha passado pela “maior crise desde o começo da Nova República”, de outro lado, emergiram “compostos de movimentos sociais ligados às políticas identitárias”, os quais, em sua maioria, convergiam com a esquerda institucional. Entretanto, assinala, “ao tomar a frente enquanto vanguarda da esquerda, a esquerda cultural involuntariamente provoca um problema diante do senso comum: a esquerda é quase sempre identificada com intelectuais, artistas, estudantes, professores e sindicalistas. Assim, a figura corresponde, em termos de estilo, a um fragmento muito localizado da sociedade, sem comunicação com a maioria”. Isso significa, explica, que “as forças da esquerda estão divididas entre o reformismo e o identitarismo” e, de outro lado, as forças de direita estão divididas entre “o liberalismo e o fascismo”. Contudo, adverte, “há – por baixo de todos os retratos oficiais da esfera pública – forças anárquicas ganhando cada vez maior experiência de organização”.

Contrapondo-se à esquerda institucional, que está “desidratada”, e à esquerda identitária, que é “excessivamente apaixonada pelas próprias ideias”, Moysés Pinto Neto propõe e defende um “pragmatismo radical”, que “envolve a possibilidade de traduzir pautas radicais para além dos emblemas identitários, reaprendendo a desenvolver tática e estratégia capazes de articular em termos do senso comum tais demandas”.

Moysés Pinto Neto é graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e doutor em Filosofia nessa mesma instituição. Leciona no curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil – Ulbra Canoas.

Nesta segunda-feira, 24-04-2017, o pesquisador estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, participando do ciclo “A reinvenção da política no Brasil contemporâneo. Limites e possibilidades”, ministrando a palestra “A desidentificação da esquerda como possibilidades na política brasileira contemporânea”.

O evento inicia às 19h30min, na sala Ignacio Ellacuría e Companheiros e poderá ser acompanhado, diretamente via youtube nesta página  A programação completa está disponível aqui.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que avaliação faz do atual momento político? Que implicações a lista do ministro Fachin pode gerar para a política neste momento, considerando as delações dos executivos da Odebrecht?

Moysés Pinto Neto – Estamos vivendo o momento de desconstrução que alguns já anteviam há bastante tempo. Nas últimas entrevistas ao IHU, vinha insistindo que a indignação contra o sistema político não era apenas seletiva, embora boa parte das manifestações entre 2015-2016 tenham sido banhadas de antipetismo visceral. A indignação, contudo, tem seu berço no acontecimento de 2013 e na ruptura que se estabeleceu a partir dali com certas práticas da sociedade brasileira, dadas como usuais.

A delação é arrasadora e a consciência de que atinge o sistema político como um todo só não é compartilhada pelos mais fanáticos dos dois lados da polarização pós-2014. A Operação Lava Jato é reflexo da aliança bem-sucedida traçada entre segmentos mais próximos da classe média e da direita e o complexo Polícia Federal/Ministério Público/Poder Judiciário em 2013. Lembro que, entre as principais pautas dos movimentos, estava a autonomia investigatória do Ministério Público em relação aos políticos. O que não impede, por óbvio, as críticas aos excessos e abusos contra direitos e garantias individuais praticados, que sempre serão contra-majoritários, mas tampouco podem vir desacompanhados da realidade material sobre a qual incidem.

Posições como as que têm sido defendidas pelo economista Bresser-Pereira, por exemplo, mostram o conservadorismo e a fragilidade das forças que resistem às mudanças radicais exigidas pelas ruas. O desprezo pela pauta contra a corrupção sob a alegação de moralismo é um erro tático da esquerda. A corrupção é um significante aglutinador que pode operar no vazio. Se é verdade que existe uma longa tradição de crítica oportunista da direita em relação à corrupção, é também verdade que existe uma dimensão da corrupção que não se reduz ao mero funcionamento azeitado da máquina pública. Uma crítica sistêmica da corrupção não remete apenas à necessidade de reforma política, mas à própria natureza da democracia em jogo.

Um regime político cujo principal motor é o dinheiro, como se sabe desde os gregos, é uma plutocracia, não democracia. Os arranjos traçados desde o alto da pirâmide, portanto, enfraquecem a própria possibilidade de os cidadãos decidirem com autonomia acerca do seu próprio destino. Ela captura a disputa política para o interior de negociações opacas e blinda um sistema excessivamente profissionalizado para equilibrar interesses parciais para além do que seria recomendado em termos comuns. Com isso, a corrupção captura a própria democracia, impedindo a deliberação pública. Etiquetar a crítica desse processo como mero moralismo, alegando ser a corrupção inerente ao sistema, é partir para uma posição de cinismo que produz justamente o desengajamento dos sujeitos políticos.

Política reduzida à negociação

Sob esse prisma, a frequente acusação de “antipolítica” que cai sobre as manifestações contra a corrupção acaba reduzindo a política a uma esfera das negociações opacas e produzindo, como efeito reflexo, o tipo de cinismo que elege populistas reacionários como Donald Trump, catalisador da desilusão em relação ao espetáculo que encobre tudo e figura como sagrado intangível. Ao fazer o voto no impossível, o eleitor reconecta-se com a possibilidade de fazer diferente e com isso pode sentir-se novamente capaz de decidir os rumos da democracia. No entanto, o faz numa atitude cínica, pois a ideia de programa para o futuro foi sequestrada pelo bloco unidimensional que disputa o poder nos termos da tecnocracia (de direita ou de esquerda). A impotência de transformar o jogo corrupto transforma-se na aposta cega em qualquer carta fora do baralho na medida em que o conjunto está viciado e não dá alternativas por dentro. Ou se aceita a condição de democracia-em-suicídio, com o governo tecnocrático alheio à indignação dos de baixo, ou se aposta numa carta totalmente imprevisível que pode, no mínimo, ressuscitar a sensação da potência democrática.

O jogo aqui é de dupla dimensão: ao mesmo tempo em que o grande bloco político tecnocrático afirma sua inevitabilidade, apela à consciência política e à responsabilidade no voto; o outsider, ao contrário, afirma apenas sua própria condição de fora da tecnocracia, aproximando-se do populismo, e invoca um cinismo caricato como afeto capaz de promover mudanças. De certa forma, o gesto antipolítico é exatamente aquele que reivindica para si a política contra a tecnocracia, enfrentando o establishment na mesma medida em que desafia a imagem de futuro pré-concebido como único pela democracia espetacular.

Porém, em termos de programa, as ideias de futuro foram sequestradas por uma narrativa única que perpassa todo espectro “razoável” da política, deixando apenas como opção uma indignação vazia que lembra muito a revolta do consumidor contra um serviço mal prestado. Isso abre espaço para o crescimento do populismo reacionário contra a construção de um futuro pensado a partir das redes de inteligência coletiva que poderiam emergir pelas novas tecnologias. Em vez disso, o espaço é reduzido à dimensão mais estúpida, carregando apenas uma indignação vazia, uma revolta desorganizada contra o bloco monolítico do poder. Não por acaso as teorias da conspiração tornam-se tão populares.

A corrupção e a cultura do saque

Afora essa brecha pela qual penetra o populismo, a corrupção representa, no Brasil, uma cultura de saque das elites que permanece desde a Colônia e é extremamente difundida na sociedade. O próprio conceito de patrimonialismo, que equivocadamente se gostaria de apagar, demonstra isso. O centro político percebe esse saque como imanentemente negativo e visualiza que tudo isso enfraquece os laços de solidariedade social, numa perspectiva mais comunitária, ou a força da lei, numa perspectiva mais liberal, produzindo um contexto anômico em que geralmente prevalece a lei do mais forte. Os altos índices de criminalidade são o saque sob o foco invertido: como a elite é baseada no saque, também posso saquear – quase como “legítima defesa”. Nenhum projeto coletivo pode sobreviver ou prosperar sob essa batuta. A montagem anticorrupção, portanto, não carrega apenas um moralista/negativo, mas contém também um aspecto construtivo, um desejo de superar uma cultura organizada pelo saque em direção, por exemplo, a um futuro mais cooperativo que possa envolver um projeto comum.

IHU On-Line – De que modo a política se reorganizou entre 2014 e 2017? As manifestações de 2013 tiveram alguma influência nessa reorganização? De que modo essa reorganização política se manifesta no atual cenário político?

Moysés Pinto Neto – 2013 é o acontecimento que encerra a história, ou ao menos a primeira fase, da Nova República. Ele representa a irrupção da indignação popular em torno da sobrevivência de certas práticas políticas que passam a ser consideradas inadmissíveis. Seja pelo viés mais à esquerda, com a demanda por mais direitos sociais e diminuição do lucro das oligarquias no controle dos serviços públicos, seja mais à direita, pela crítica da corrupção sistêmica, há ali um ponto de clivagem que, apesar dos lamentos da classe política, nos conduziu a um ponto sem retorno. A multidão que sai às ruas em 2013 é uma composição tão híbrida, heterogênea e múltipla quanto o próprio lulismo, com forças políticas sendo cortadas transversalmente em relação à divisão que havia se estabelecido até então. Esse turbilhão sem forma irá desestabilizar as forças políticas institucionais, que reagirão com a demanda por ordem, o aprofundamento dos aparelhos de controle e a chantagem de que a Realpolitik era o único caminho possível.

2014 é o momento em que o choque é absorvido e metabolizado pelo sistema político. A desconstrução em parte é estancada a partir de uma nova estrutura muito mais polarizada que a anterior. De 2002 a 2013, as divisões normalmente se estabeleciam entre conservadores e progressistas, figurando a maior parte do campo político institucional (comandado por PT e PSDB) e da classe média na condição de progressista. Em 2013, teria sido esse campo – identificado por Marcos Nobre como “antipeemedebista” – que, numa confluência imprevisível e improvável, teria ocupado as ruas a fim de protestar contra a velha casta política.

O mesmo setor progressista que aprovara Lula com estratosféricos oitenta por cento saía às ruas para protestar por diversas pautas, do próprio direito de protestar até a corrupção sistêmica. É esse híbrido que se desfaz numa grande operação ortopédica (para citar Foucault citado desde a época por Bruno Cava). Essa ortopedia não apenas reconstitui uma fratura desorganizada pelos cortes transversais de 2013 – pedir mais saúde e educação é de direita ou de esquerda? Lutar contra a corrupção é de direita? Mas e o pedido de demonstração das planilhas das empresas de transporte que gerou as ocupações de Câmaras Municipais por manifestantes de esquerda? Estar contra os partidos é anarquista ou fascista? -, como refaz a estrutura sob uma forma mais pesada e polarizada.

O PT e a identidade de esquerda

A entrada de Marina Silva por acidente na disputa em 2014 trazia o risco de uma força política conseguir traduzir essa síntese ambígua e monstruosa que se formou em 2013, inclusive nas suas contradições, inconstâncias e ambivalências. Isso precisou ser neutralizado para garantir a vitória eleitoral, dobrando então a aposta à esquerda do governo Dilma por meio da agressiva campanha eleitoral e da posição sectária de intelectuais como Boaventura de Souza Santos e Frei Betto, etiquetando em Marina “a nova cara da direita” ou “um novo Collor“. Pela campanha extremamente agressiva levada a cabo pelo PT e pelo PSDB, além dos seus próprios equívocos, Marina termina despencando entre as escolhas. Mas o modus operandi fica como legado da eleição. É aqui que se gestará não apenas a polarização política, mas a transformação de campos de forças em identidades ossificadas. Para diferenciar-se de Marina, o PT teve que pagar o preço de dobrar a identidade de esquerda, traçando uma linha rígida que o separa do centro.

O segundo turno de 2014 é o ponto de viragem em que a polarização irá explodir. Com uma população mais envolvida com a política a partir da sensação de potência despertada em 2013, cada lado arma-se com suas armas mais pesadas para vencer o embate. Grande parte do campo de esquerda que havia sido crítico ao governo Dilma, recua diante da possibilidade de eleição de Aécio Neves. Forma-se então, em expressão cunhada por deputados conhecidos nas redes sociais – Marcelo Freixo e Jean Willys, do PSOL – o “apoio crítico”, no qual o militante declara seu voto à Dilma, reafirmando críticas às políticas do primeiro mandato e esperando uma “guinada à esquerda” no segundo.

Ao mesmo tempo, boa parte do campo que havia saído às ruas em 2013 na segunda leva passa ao lado de Aécio, entendendo que a mudança no governo era essencial e começando a formar um caldo mais liberal e/ou neoconservador de compreensão da sociedade. A eleição é decidida por uma fresta mínima de votos. No final, o recuo do segmento tradicional de esquerda que havia, em escalas diferentes, adotado posição crítica ao PT (por motivos iguais ou diferentes que vão desde a “Carta aos Brasileiros” até o #naovaitercopa) acaba sendo o fiel da balança. Mas a conta será paga como?

IHU On-Line – De que maneira essa reorganização política impactou a esquerda?

Moysés Pinto Neto – Contrariando aquilo que era esperado por aqueles que a elegeram, Dilma reassume o governo e nomeia um ministério altamente conservador – ainda mais que o primeiro. Tirando seu núcleo duro desenvolvimentista (do qual a latifundiária Katia Abreu, por exemplo, fazia parte), os nomes são vinculados a bancadas fisiológicas e reacionárias. Além disso, numa manobra duplamente desastrada, Dilma apoia a formação de partidos fisiológicos para tentar enfraquecer o PMDB e na eleição para Presidente da Câmara dos Deputados lança o petista Arlindo Chinaglia, que perde para o representante do baixo clero Eduardo Cunha.

Totalmente sem base na política institucional, Dilma ainda decepciona seus eleitores ao anunciar o representante do Bradesco Joaquim Lévy como ministro da Fazenda e, em seguida, as medidas de austeridade que haviam sido tratadas como “esvaziar o prato de comida do brasileiro” na sua propaganda política. Com o fim do congelamento artificial do preço dos combustíveis, a inflação dispara e o mercado passa a boicotar o governo. O impacto foi tão grande que consolidou o termo “estelionato eleitoral”.

A partir de então, organizações virtuais como o MBL, #Vemprarua e a página Revoltados Online passam a capitanear passeatas contra o governo. Utilizando de estratégias norte-americanas para disseminar ideias liberais e/ou conservadoras, esses movimentos conseguem ampliar sua base social alimentando a ideia de que a crise brasileira era resultado da visão política da esquerda. Ao mesmo tempo, a Operação Lava Jato começava a dar seus primeiros frutos. A imagem de uma gestão incompetente, politicamente desorganizada e visceralmente corrupta prolifera viralmente.

Essa é a vantagem que a direita adquiriu sobre a esquerda com a vitória de Dilma em 2014: enquanto o militante de direita é ninguém, no sentido de que não está preocupado em manter uma linha coerente de atuação e nem se vê como pertencendo necessariamente a um campo fechado, o militante de esquerda passou a ser cada vez mais uma identidade, comportando uma linha fechada e coerente de crenças e sendo obrigado a sustentar o fardo da defesa de um governo indefensável aos seus próprios olhos. O campo difuso do progressismo – que era dominante na Nova República sob a hegemonia de petistas e tucanos – passa a ser fraturado entre direita e esquerda de modo identitário, formando dois grandes condomínios.

Pela sua posição de oposição e o descrédito do governo, o condomínio da direita conseguiu arrastar para sua borda o centro, formando uma ampla maioria que desestabilizou – utilizando estratégias também gestadas em 2013 -, o campo progressista. A esquerda retroalimentou essa polarização ao reforçar táticas que funcionavam até 2013 – como etiquetar a ignorância e a tolice no adversário ou acusar o moralismo seletivo em quem atacava a corrupção – mas ia perdendo espaço à medida que ficava claro que ela tampouco tinha resposta para os grandes problemas que mobilizam as pessoas.

O surgimento da expressão “isentão” para definir aqueles que recusavam se reduzir a um dos dois polos – “petralhas” e “coxinhas” – é sintomática no sentido de que a estrutura se solidificou e funciona por meio do feedback contínuo entre as duas identidades, dissolvendo o ecossistema híbrido que foi base tanto do lulismo quanto de 2013. O bloco social que era base do PT no começo do processo – sobretudo a classe média universitária, o sindicalismo e o funcionalismo público – volta a ser a protagonista no processo de “resistência ao golpe”. A falta do apoio popular é sentida pela significativa diferença que se estabelecia entre as passeatas dos verde-amarelos, inspirados pelo condomínio da direita, e os vermelhos, inspirados pelo condomínio da esquerda. A esquerda era reduzida ao pequeno segmento dos indivíduos e grupos que se identificavam como esquerda.

IHU On-Line – Você tem falado sobre o nascimento de uma “esquerda cultural” no Brasil a partir de 2014. Quais as características dessa esquerda cultural e em que ela se diferencia da esquerda que atuava até então?

Moysés Pinto Neto – Ao mesmo tempo em que a esquerda passava pela sua maior crise desde o começo da Nova República, emergia outro campo – em boa parte, convergente com a esquerda institucional – composto de movimentos sociais ligados às políticas identitárias. Eles foram produto da reorganização política gestada em 2013 enquanto uma linha de força do período que se solidificou. O feminismo e o movimento negro, e cabe o destaque ao feminismo negro, ocupam então um espaço político de embate cultural no momento em que a esquerda institucional está sendo engolida pelos fundamentalistas do Congresso Nacional. Esses movimentos são amplos e heterogêneos, compostos de multiplicidades de pontos de vista e não raro contêm pautas diametralmente opostas entre si, como é o caso, por exemplo, do debate em torno da regulação da prostituição ou da criminalização da homofobia.

O filósofo Richard Rorty tem sido muito lembrado recentemente por ter especulado em torno das relações entre a esquerda cultural e o voto popular numa direção muito parecida com a que acabou permitindo a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. Rorty atribui a essa Nova Esquerda – formada a partir da fissura na classe trabalhadora e estudantes durante a Guerra do Vietnã – a diminuição do sadismo na sociedade. “A adoção”, diz ele, “de atitudes das quais a Direita zomba como sendo ‘politicamente corretas’ tornou a América uma sociedade muito mais civilizada do que era trinta anos atrás”, dizia. Seu habitat, no entanto, está restrito às universidades, sem conseguir dialogar com a esquerda reformista antigamente composta pelos sindicatos, partidos e outras forças favoráveis aos trabalhadores.

No Brasil, também a esquerda cultural é reflexo do enclave universitário. Uma das muitas políticas sociais bem-sucedidas do lulismo foi a inclusão universitária. Abastecida pela criação de novas universidades públicas, aumento das vagas (REUNI), financiamento (FIES), troca de dívidas públicas por vagas em universidades privadas (PROUNI), ampliação da utilização do ENEM como critério nacional de seleção e adoção do sistema de cotas para estudantes de escola pública, negros, pardos e indígenas, a política gerou uma mudança significativa no perfil econômico-social dos estudantes universitários. Desde 2013, esse segmento tem assumido com cada vez maior intensidade a vanguarda das lutas políticas de esquerda. A partir de 2014, os principais focos de resistência – ao lado de organizações bastante ligadas ao PT (CUT e MST, por exemplo) – são as escolas públicas e universidades. A consequência disso é a adoção de uma certa linha teórica específica que embasa a ação desses movimentos, em especial ocupações.

IHU On-Line – Você afirma que a esquerda tem sido “incapaz de fornecer modelos que escapam à estilização identitária”. Nesse sentido, como a esquerda tem se manifestado e se apresentado desde 2013? Em que consistiria um modelo que a desvincularia da sua “estilização identitária”?

Moysés Pinto Neto – Ao tomar a frente enquanto vanguarda da esquerda, a esquerda cultural involuntariamente provoca um problema diante do senso comum: a esquerda é quase sempre identificada com intelectuais, artistas, estudantes, professores e sindicalistas. Assim, a figura corresponde, em termos de estilo, a um fragmento muito localizado da sociedade, sem comunicação com a maioria. Perde-se com isso a possibilidade de identificação com outros agentes que constroem valor, reservando-se à esquerda apenas a crítica da sociedade – sem lugar para diversas outras atividades que percorrem a vida diária. A possibilidade de alianças e composições diferentes é perdida em nome da pureza, não raro terminando em infinitas disputas em torno de quem é a verdadeira esquerda e em verdadeiros linchamentos morais. Ora, nada mais distante do senso comum que uma posição tão exigente. O senso comum é mais pragmático e, como tal, disposto a tolerar erros em nome de uma noção bastante difusa de falibilismo. Toda vez que a composição e organização perdem espaço para a demanda por pureza, o centro fica cada vez mais distante e as batalhas travam-se no interior da bolha identitária, fragmentando um ecossistema autorreferente.

Enquanto o neoconservadorismo e o fascismo aproveitam da sobrecarga moral que perpassa o discurso da esquerda cultural criando os anti-heróis do “politicamente incorreto”, o centro permanece simpático às causas defendidas pelos ativistas (feminismo, antirracismo, anti-homofobia etc.), mas percebe a lupa da problematização como uma ação excessivamente estilizada e praticamente inviabilizadora de uma convivência fluida entre as pessoas. A identidade de esquerda torna-se uma seita envolvida com problemas que não existem para a maioria das pessoas, e esse tipo de contato perde-se na medida em que as prioridades da política parecem afastadas dos assuntos que deveriam ser prioritários. Isso é potencializado pela era da hiperconectividade, que torna a vigilância ininterrupta em torno de pontos fracos que podem estar patentes ou latentes nas diversas manifestações que percorrem o cotidiano virtual.

Na medida em que desaparece o espaço privado com a exposição da intimidade nas redes, alarga-se um policiamento integral sobre ditos e não-ditos, tornando a convivência mediada por uma sobrecarga judicativa cuja exigência converte as redes sociais em verdadeiros tribunais inquisitórios. Com isso, fragmenta-se o fragmento num processo infinito diante do qual nenhum ser humano, na sua ambivalência, fragilidade e errância, é capaz de ser absolvido.

Em outros termos, a concentração da esquerda sobre aportes teóricos extremamente densos e posições políticas que exigem um amplo cabedal “metanarrativo” acaba afastando-a da “gente comum” e tornando-a uma identidade marginal, uma bolha artificial. Com isso, não quero afirmar que é ruim ser uma identidade marginal – a maioria das utopias passa mesmo por essas marginalidades – mas é negativo que uma força no campo político torne-se um estilo identificado com uma minoria populacional extremamente focal e que muitas vezes acaba se tornando um enclave insular sem contato com o resto. É a questão colocada desde Lênin até o Podemos.

Embora não seja mais que uma hipótese que colho do ativista de direitos humanosRaphael Tsavkko Garcia, não é difícil especular que o processo de insularização da esquerda nas universidades e em torno da vigilância microscópica dos comportamentos identifique-se com o momento de impotência na política institucional. Se compararmos Brasil e Estados Unidos, onde nasce a esquerda cultural, parece que o enclave universitário se situa mais ou menos na mesma posição: diante de uma esquerda partidária desidratada e incapacidade de organização política, sobram as depurações internas por meio do policiamento de deslizes linguísticos ou erros individuais, reafirmando-se com isso uma composição: esquerda partidária desidratada + esquerda cultural + incapacidade de organizar o descontentamento + política do medo da direita + conservadorismo político + progressismo social.

No Brasil, essa equação pode ser vista na acusação verdadeira, mas que não explica o acontecimento, de que “o golpe é misógino”, como se a explicação para a queda de Dilma Rousseff fosse a inegável misoginia de grande parte dos parlamentares que votaram favoravelmente ao impeachment. Com isso, desloca-se o fenômeno da organização política (incapacidade de Dilma articular um projeto de governo desde o primeiro dia e fragilização pela oposição forte combinada à perda da base social pelo estelionato eleitoral) para uma situação de violência simbólica (a misoginia contra a mulher Dilma Rousseff praticada com frequência pela mídia e outros atores sociais), como se a explicação para todo problema pudesse ser reduzida à equação relação assimétrica de poder = violência = opressão.

IHU On-Line – Quais são hoje os principais pontos de disputa da “cultural wars”, e como ela se manifesta no Brasil?

Moysés Pinto Neto As “cultural wars“, para as quais tem chamado atenção Pablo Ortellado, são o reflexo das disputas entre a esquerda cultural e o neoconservadorismo e/ou neofascismo que foram trazidas dos EUA para o Brasil recentemente. Elas deslocam o palco principal da política das instituições para o campo comportamental. O problema é que essa disputa entre os trolls e o “politicamente correto” se retroalimenta. Não há dúvida que os movimentos sociais, em geral, têm razão nas suas diversas pautas que envolvem a defesa dos direitos das minorias e uma cultura menos violenta. Mas a composição de feebacks hoje é tão uniformizada, dada a repetição intermitente dessas polêmicas na esfera pública, que todo mundo já sabe quais serão os polos da disputa e o que irão dizer.

Em um texto ainda não publicado sobre o episódio The Waldo Moment, da série Black Mirror, busco compreender como funciona essa estrutura que se alimenta de um cinismo brutal do estilo que elegeu Trump e hoje criou os “bolsominions” no Brasil. O problema é como responder a eles. Não porque seja difícil realmente contrapor afirmações absurdas ou refutar seus erros, mas exatamente porque sobre essa resposta mesma cai o papel moral do superego numa era em que a perversão corre solta.

Está-se, assim, em um duplo jogo que é uma armadilha: de um lado, a parte sacerdotal, a “lição de moral” triste fica na conta daqueles que querem contraditar o discurso do humor brutalizado (chamada então por isso de “politicamente correto”); de outro, os próprios cínicos, na medida em que falam sem precisar de um chão de coerência (a validade normativa é menos importante que a performance na superfície), tomam para si a condição de vítima, de censurados e de patrulhados, aproveitando muitas vezes a atitude de superioridade moral que o outro polo coloca sobre si. Tem-se, assim, um não-diálogo que vai contaminando a esfera pública e tornando os polos cada vez menos comunicantes, aumentando o fosso na medida em que a estratégia chauvinista vai funcionando.

O politicamente correto (PC), ao eliminar a interpretação fora do campo do literal, é o alvo perfeito para o crescimento reativo desse fascismo: ao ser caricato, este joga no nível “meta” da linguagem que torna indecidível se o dito é realmente objeto ou não de crença pelo emissor. O obsceno, assim, não se situa no nível do ocultamento, daquilo que ninguém sabe (e precisa ser desmascarado), mas na capacidade de criar uma performatividade indecidível diante de um constativo escandaloso – jogando no nível que o politicamente correto não alcança pelo seu literalismo moralista. Assim, dentro desse arranjo, só resta ao PC o papel de polícia moral.

Não nos enganemos, contudo, quanto à natureza política da perversão: ela é conservadora porque, ao jogar no indecidível o performativo entre sério e jocoso, deixa de lado o conteúdo do enunciado – que, no fim das contas, é apenas uma reprodução banal da violência do status quo. Ao querer tocar o real por meio do obsceno, destruindo a positividade do espetáculo com uma pseudocrítica, a atitude reacionária apenas reafirma numa duplicação irônica aquilo contra a qual supostamente ela estaria revoltada. Só que a estratégia PC apenas retroalimenta esse mecanismo, gerando o feedback esperado pelo reacionário – recolocando-o na posição de outsider a partir do policiamento da seriedade.

O reacionário, falando uma estupidez, parece inteligente, enquanto o PC, policiando o conteúdo com uma constatação inteligente, parece estúpido porque “não entendeu a piada” (ironia). Inverte-se, numa simetria de duas diagonais, a relação inteligência/estupidez e burrice/inteligência. Uma estrutura em que ambos veem o outro lado como estúpido porque pensam que sabem algo que o outro não sabe. Essa estrutura de sinais invertidos não tem data para terminar, porque um polo se alimenta do outro. Na minha opinião, só construindo linhas de fuga que desconstruam – aqui num outro sentido que o que tem sido usado para a palavra – a polarização é possível escapar da sua repetição em loop.

IHU On-Line – Que possibilidades vislumbra à esquerda para a eleição presidencial de 2018? Por enquanto surgem nomes como o de Ciro Gomes, Lula e possivelmente Marina. Qual é o significado dessas possíveis alternativas?

Moysés Pinto Neto – As eleições são, mais uma vez, um obstáculo para a reorganização, tal como ocorreu em 2014. A urgência do discurso do “complexo de Katechon”, para usar a expressão de meu amigo Rodrigo Nunes, acaba colocando as questões no nível do “menos pior”. Assim, a candidatura de Lula, que seria lida até 2014 como um inegável retrocesso por grande parte da esquerda, pois a maioria esperaria renovação constante (por exemplo, Haddad), é sintomática. Ao mesmo tempo, é inegável que Lula tem uma grande vantagem e uma grande desvantagem competitiva: em contraste com as reformas impopulares do governo ilegítimo Temer, Lula aparecerá para muitos como a lembrança de um tempo de bons ventos; por outro lado, sua rejeição é altíssima, já que ele consegue sintetizar o que o eleitor antipetista mais detesta. A possibilidade de Lula se eleger também pode ser vista como conservadora ou até, mais que isso, restauradora: conservadora, porque mantém as polarizações acesas nos mesmos termos identitários que se firmaram no período 2014-2017; restauradora, porque vem com a promessa do salvamento do sistema como um todo.

Já as alternativas Ciro e Marina me parecem mais interessantes, porque refletem a cisão de conteúdo que hoje atravessa a esquerda. Ciro é ainda mais desenvolvimentista que Dilma, e Marina, por outro lado, representa uma alternativa ambientalista que ficou latente como possibilidade desde o lulismo. Ambos são bons representantes da tensão que, desde 2010, se instaurou na esquerda brasileira e, para além de questões tático/organizacionais (que existem), mostra um diferendo talvez inconciliável que impede uma simples unidade. Lula, com sua típica ambivalência, conseguiu “equilibrar o antagonismo” no período 2002-2008, mas a partir de um certo ponto a cisão se estabeleceu.

Além disso, tanto Ciro quanto Marina estão desligados das planilhas da Odebrecht e de todo complexo de corrupção que se estabeleceu no sistema político brasileiro. Podem ser vistos como outsiders – posição que, a meu ver, a esquerda deveria encampar na próxima eleição. A direita já percebeu o fato e por isso Doria começa a despontar em relação a Alckmin por estar ainda mais distante desse núcleo do poder.

Não acredito que Jair Bolsonaro possa ser competitivo em um sistema eleitoral de voto obrigatório. O fascismo também é excessivamente identitário e afasta o eleitor de centro. Além disso, pesa a falta de apoio do sistema político e o próprio vazio que aparecerá em relação às propostas do candidato. Assim como Lula, Bolsonaro se beneficia no momento de um eleitorado que já decidiu em quem irá votar, que tem convicções fortes em política. Isso, no entanto, é minoria do ponto de vista quantitativo.

Mas o que assusta na esquerda é não se perceber o erro de 2014, que foi ter abandonado totalmente as eleições parlamentares. Se hoje Temer tem poder e ameaça reformas draconianas, é porque o mesmo Congresso antes dominado por Eduardo Cunha o sustenta. Em vez dessa concentração no Executivo, poderia se estar pensando em estratégias eleitorais para ocupação das Casas Legislativas, fazendo confluir as contribuições dos movimentos identitários (com, por exemplo, protagonismo jovem, negro, indígena e feminino) e táticas organizacionais abertas e dialogais, inspiradas na liderança distribuída e agenciamento em rede, que utilizem os recursos de viralização hoje disponíveis.

IHU On-Line – Que alternativas vislumbra para a atual crise brasileira?

Moysés Pinto Neto – No meu texto procuro defender – em contraponto à esquerda desidratada hoje francamente derrotada no mundo (Hillary, Hollande, Dilma, Kirchner etc.) e à esquerda identitária (não aos movimentos identitários, mas à identidade de esquerda), excessivamente apaixonada pelas próprias ideias – o que chamo de pragmatismo radical. Procuro especular hipóteses sobre como ele poderia reconquistar o centro a partir da consciência das suas incompatibilidades e definição de novas estratégias de organização e diálogo.

A esquerda reformista reivindica para si o “realismo”, afirmando um pragmatismo que negocia com o poder em torno a concessões e aberturas. Mas é possível imaginar outro tipo de pragmatismo. Ele envolve a possibilidade de traduzir pautas radicais para além dos emblemas identitários, reaprendendo a desenvolver tática e estratégia capazes de articular em termos do senso comum tais demandas. Em contraponto à primeira [esquerda reformista], essa estratégia não rema para o centro, mas procura trazer o centro para o seu lado. Em contraponto à segunda [esquerda identitária], não pretende que o centro passe a residir no condomínio esquerdista, mas procura formar composições contingentes a partir de circunstâncias aleatórias – isto é, variáveis no caso-a-caso – que impulsionem seu programa. Para tanto, é necessário arrancar o status quo da tendência de moralização da política que caracteriza o politicamente correto, maquinando quais são as confluências possíveis para criar interstícios tradutórios – pontes, e não policiamentos – com o senso comum de acordo com os materiais disponíveis e tendo em vista a produção de resultados concretos.

Essa saída pode parecer simplista e demasiadamente idealista, mas não é. Em primeiro lugar, porque – como já dito – a insatisfação com o modelo atual está à beira da explosão. Além disso, se encontramos atualmente um cenário político em que as forças da esquerda estão divididas entre o reformismo e o identitarismo e as forças de direita entre o liberalismo e o fascismo, há – por baixo de todos os retratos oficiais da esfera pública – forças anárquicas ganhando cada vez maior experiência de organização. Os movimentos sociais que envolvem, por exemplo, o direito à cidade e as mais diversas questões urbanas têm amplo potencial de crescimento, como 2013 mostrou exemplarmente a partir da pauta do transporte público. Eles podem se conectar aos movimentos identitários por meio de outras estratégias que as “cultural wars“, como aconteceu com a eleição das prefeitas de Madrid e Barcelona a partir do municipalismo espanhol ou da confluência dos movimentos urbanos no feminismo negro nas Muitas de Belo Horizonte.

Há um substantivo consenso não-conservador em torno de vários temas cruciais ainda sem comunicação com o meio político, como ecologia, respeito à diversidade e qualidade de vida em contraponto ao crescimentismo, ao consumismo e às negociações sujas que costumam pautar o sistema político. Todo esse complexo que atravessa países e forma um verdadeiro circuito alterglobal – manifestado no ciclo de manifestações 2011-2013 – ainda não encontrou plena voz institucional. Essa força ainda está por se revelar, mas precisa encontrar outras linguagens que não apenas a esquerdista para se comunicar com a maioria.

As ocupações são outra experiência que permite visualizar a potência dessas forças anárquicas. Elas são verdadeiros experimentos coletivos de um outro espaço-tempo, outra economia, outra forma de habitar o mundo. E não se prendem apenas ao aspecto da revolta, sendo caracterizadas pelo cuidado, pela organização e pela ação coletiva. Conseguindo livrar-se da ameaça sectária que sempre as rondará como um fantasma, podem ser o embrião de novos modos de organização e distribuição do tempo/espaço.

É se conectando com essas experiências anárquicas que o campo envolvido com a transformação social pode encontrar uma saída para os dilemas atuais, transformando os muros do condomínio esquerdista em pontes de diálogo pragmático com a maioria inconformada com o mundo como está.

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