“Foi desesperador estar em Nova York e ver mais de 3 mil indígenas sendo massacrados em Brasília”, diz indígena Baré na ONU

Por Fernanda Moreira, Cimi Regional Norte II, de Nova York (EUA)

Lideranças indígenas que participam do Fórum Permanente das Nações Unidas (ONU), em Nova York, reuniram-se nesta sexta-feira, 28, pela manhã, com o ministro Ricardo Monteiro (na foto), responsável pelos temas indígenas da Missão do Brasil na ONU. Os povos Munduruku, Yanomami e Kanamary fazem parte da delegação da Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam) do Brasil. O embaixador do país na ONU, Mauro Vieira, participou durante cinco minutos do encontro com uma fala protocolar e demonstrando pouca sensibilidade e apoio às denúncias levadas pelos indígenas. A postura pouco receptiva do embaixador não é novidade aos povos indígenas.

A delegação da Repam entregou um documento denunciando as violações de direitos dos povos indígenas no Brasil, em consonância com a 14a declaração do Acampamento Terra Livre (ATL) e o documento entregue por organizações indígenas e indigenistas em Genebra, no fim de março e início abril. As incidências internacionais dos povos indígenas e aliados visam, inclusive, a documentação das violações. A Fian Brasil e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) integram as organizações de apoio na delegação da Repam.

Reforçaram o não cumprimento das recomendações da Relatora Especial sobre os Direitos dos Povos Indígenas da ONU, Victoria Tauli-Corpuz, ao governo brasileiro, divulgada em relatório em setembro 2016, após sua visita em missão ao país. Representantes Kanamary, habitantes do Vale do Javari (AM), levaram denúncias envolvendo violações aos direitos dos povos isolados.  

Rayanne Cristine Máximo França, do povo Baré, que está em Nova York com o apoio da ONU Mulheres, se deteve ao exposto no documento Recomendações da Juventude Indígena Brasileira – Resultado da Reunião preparatória, etapa Brasil para a 16a Sessão do Fórum Permanente para as Questões Indígenas da ONU.

“Em alguns momentos eu me perguntava: O que estou fazendo na ONU? Para mim foi desesperador estar em Nova York e ver mais de 3 mil indígenas sendo massacrados pela polícia em Brasília”, disse Rayanne Baré referindo-se à repressão ocorrida essa semana durante o ATL/2017. “Queremos nosso direito de participação social sem violência. Somos atacados todos os dias em nossas comunidades. Só queremos o direito de existir e de exigir nossos direitos de ser indígena”, completa.

Nesta tarde, às 16h, a delegação se reunirá com Victoria Tauli-Corpuz. O objetivo da comitiva é reforçar para a relatora da ONU o não cumprimento das recomendações feitas pela ONU ao Brasil, além de entregar os mesmos documentos. Novas situações de violências serão encaminhadas à Victoria com o intuito de que a Relatora se mantenha informada da insistente postura anti-indígena do governo brasileiro.

Povos Isolados

Segundo Armindo Góes Yanomami  a questão envolvendo os povos em situação de isolamento voluntário é de “urgência ou emergência, já que eles estão mais vulneráveis, não possuem imunidade para as doenças que os brancos trazem e não acessam mecanismos que protegem seus direitos”. Com o governo pós-impeachment, seis Frentes de Proteção Etnoambiental dos povos isolados foram fechadas.

Kora Kanamary reforçou a situação do Vale do Javari, uma das regiões que concentram mais indígenas isolados do mundo, e a importância de estar na ONU demonstrando que esses povos são livres, independentes, mas estão em risco. Legislações internacionais, das quais o Brasil é signatário, e nacional são taxativas com relação às obrigações do Estado de proteção a estas populações.   

Arnaldo Kaba Munduruku expôs a situação dos povos indígenas no Brasil e de seu povo. Indagou qual seria o papel da ONU para impedir tantas violações de direitos: “Não chegamos aqui com alegria, só trazemos tristezas. Meu povo me indicou como cacique e por isso eu sou sofredor. Como é que o governo brasileiro pode deixar os povos sofrerem assim? E eu pergunto a vocês: onde eu vou achar o poder para ajudar meu povo no Brasil?”.

Leia o documento entregue pela delegação na íntegra:

New York, 27 de abril de 2016

À Missão Permanente do Governo Brasileiro para as Nações Unidas em Nova Iorque,

De acordo com as recomendações do Relatório da missão ao Brasil da Relatora Especial sobre os direitos dos povos indígenas, em consonância com o informe entregue à ONU por organizações indígenas e indigenistas no dia 31 de março de 2017 e com a Declaração do 14º  Acampamento Terra Livre, do qual participaram mais de 4 mil indígenas, em Brasília, de 24 a 28 de abril de 2017, queremos fazer chegar ao Governo Brasileiro as seguintes considerações e exigências:

No que concerne ao direito à vida, contra a violência e a discriminação racial, muitos povos indígenas do Brasil vêm sendo assassinados por invasores de suas terras ou sofrem ameaças de madeireiros, garimpeiros, fazendeiros, grileiros, sem poderem contar com programas culturalmente apropriados de proteção a ameaçados ou com a punição dos assassinos. Lideranças Munduruku foram ameaças por um madeireiro dentro de seu próprio território, os Yanomami vivem sob ameaça dos garimpeiros invasores e os Guarani Kaiowa continuam sendo intimidados por pistoleiros e policiais. Denunciamos também o abuso e a violência com que foram tratados pela polícia legislativa os povos indígenas quando do exercício de seu direito à livre manifestação no acampamento Terra Livre, em Brasília, no dia 25 de abril de 2017.

Portanto, exigimos do Governo Brasileiro que assegure o acesso efetivo de todas as lideranças ameaçadas a um programa especial de proteção aos povos indígenas e que os policiais e servidores do Estado que cometem abuso de autoridade e violência sejam punidos.

Sobre os direitos territoriais, centenas de processos de demarcação de Terras Indígenas encontram-se paralisados e o Governo vem propondo diversas medidas administrativas e legislativas que representam enormes retrocessos ao direito originário à terra garantido na Constituição Federal de 1988. No caso do Tapajós, a Terra Indígena Sawre Muybu, ameaçada por empreendimentos hidrelétricos e minerários aguarda desde 28 de novembro de 2016 a assinatura da Portaria Declaratória pelo Ministro da Justiça e está sendo contestada por instituições governamentais, empresariais e entidades industriais com base na tese do Marco Temporal. Mesmo as Terras Indígenas já demarcadas são alvos de recorrentes invasões e não contam com a fiscalização dos órgãos competentes, como é o caso dos mais de 5000 garimpeiros que se instalaram no território Yanomami.  

Portanto, exigimos do Governo Brasileiro o cancelamento definitivo das Propostas de Emenda Constitucional e revogação de todas as medidas legislativas ou administrativas que visam a alterar e impedir os processos demarcatórios (como a PEC 215, a Portaria MJ 80/2017).

Também exigimos a restrição do Marco Temporal apenas ao caso da TI Raposa Serra do Sol ou a autorizar exploração econômica de nossas terras (como a PEC 187/2016 e o PL 1610/1996). Exigimos o cumprimento do artigo 231 da CF 88 também no que tange ao usufruto exclusivo dos recursos naturais dos nossos territórios, a partir da implementação de políticas públicas de fiscalização territorial e proteção ambiental, como a PNGATI.

Sobre o acesso à justiça, há testemunho de que mesmo com as recorrentes denúncias de diversos povos indígenas (Yanomami, por exemplo) de invasões territoriais e ameaças, não são instaurados processos criminais e os exploradores não são punidos.

Portanto, exigimos que o judiciário seja também fiscalizado por um organismo específico em seus atos discriminatórios das populações indígenas.   

Em relação ao direito à auto-determinação e ao consentimento livre, prévio e informado, medidas legislativas e administrativas, grandes obras e projetos de desenvolvimento continuam sendo concebidos e implementados sem a consulta aos povos indígenas, como se verifica, por exemplo, com a Reforma da Previdência, que impacta a aposentadoria rural da qual dependem muitas famílias indígenas. Como exemplos de projetos concebidos e discutidos pelo Governo sem consulta prévia dos povos indígenas estão Concessão Florestal no entrono da Terra Indígena Sawre Muybu, a hidrovia Teles Pires – Tapajós – Juruena.  

Portanto, exigimos que os povos em isolamento voluntário, como os que se encontram no Vale do Javari e na TI Yanomami, sejam protegidos em seu direito de permanecerem a viver de suas próprias formas, conforme preveem os artigos artigo 5 e 231 da CF e que haja mecanismos jurídicos que garantam a fiscalização e penalização para o não cumprimento destes princípios constitucionais.

Ademais, exigimos respeito ao Protocolo Munduruku do Alto e Médio Tapajós, Waiãpi, Munduruku e Apiaká de Baixo Tapajós e a todos os Protocolos de Consulta que se venham a constituir, bem como a participação dos povos indígenas na definição de um projeto socioeconômico macro para suas regiões.

Em relação ao impacto dos grandes projetos, as medidas de reparação não estão sendo implementadas de forma apropriada, como se pode observar a partir do caso da hidrelétrica de Belo Monte, do complexo hidrelétrico do Rio Madeira, que afetou povos em isolamento voluntário, das Estações de Transbordo de Cargas em Itaituba que afetam territórios Munduruku e suas fontes alimentares, sem que haja nenhuma medida compensatória ou indenizatória.    

Portanto, exigimos que o Governo siga cancelando grandes projetos com impactos irreversíveis aos povos indígenas, como o fez com o licenciamento da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, que cancele as pesquisas para projetos hidrelétricos no Tapajós e que indenizem todos os povos que tiveram seus direito violados e locais sagrados destruídos, como ocorreu com o povo Munduruku em Teles Pires e São Manuel, com medidas e indenizações definidas por eles mesmos.

Em relação à capacidade dos órgãos Governamentais, contrariamente ao recomendado pela relatora, testemunhamos o enfraquecimento da FUNAI e demais órgãos responsáveis pelos cumprimentos dos direitos e políticas indígenas. O fechamento de seis Frentes de Proteção de Povos Isolados, de Coordenações Técnicas Locais, como no caso de duas que atendiam povos da TI Yanomami e uma em Jacareacanga, bem como o estado de inoperância em que se encontram Coordenações Regionais como a de Itaituba (que atualmente conta com apenas cinco servidores dos 16 previstos), impedem que o órgão indigenista cumpra suas funções finalísticas.

Portanto, exigimos que seja garantido à FUNAI e à SESAI orçamento apropriado para que cumpra suas atividades finalísticas e que se revogue o decreto 9.010/2017.

Atenciosamente,

Povo Kanamary

Povo Munduruku

Povo Yanomami

Crédito da foto: Fernanda Moreira/Cimi.

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