Amazônia indígena: Cerco aos isolados

Fim de ações de proteção põe em risco a cultura e a vida no Vale do Javari, onde está a maior concentração de índios isolados em todo o mundo

Por André Borges (textos) e Werther Santana (fotos), no Estadão

Atalaia do Norte, Benjamin Constant e Tabatinga (AM) – O barco de alumínio atraca na beira do Rio Quixito. André Marubo salta para a terra, amarra a embarcação e sobe por uma escada vacilante de madeira, até chegar à guarita improvisada do posto de vigilância que ajudou a erguer 13 anos atrás. Do barranco da Base do Quixito, escondida nos extremos da Amazônia entre o Brasil e o Peru, o marubo mostra o que sobrou do pequeno casebre onde vai passar alguns dias, antes de partir para a sua aldeia. Parte das vigas de seu barraco apodreceu. A palha da caranã que cobria o teto se esparramou pelo assoalho. O índio caminha pelas tábuas que servem de passagem entre as casas quando a água do rio sobe. Tem as costas carregadas de sacos de mantimentos trazidos para alimentar aqueles que ficarão no posto de fiscalização quando ele for embora. André pouco fala. Ao ser questionado como é ver o esfacelamento do lugar que ele construiu, responde: “É triste. Tudo vai indo embora”.

A decadência que aos poucos corrói cada lasca de madeira da Base do Quixito, unidade de fiscalização controlada pela Fundação Nacional do Índio (Funai), é um exemplo de como tem sido a condução de ações de proteção dos povos do Vale do Javari, terra indígena que concentra o maior número de índios isolados e de recente contato em todo o mundo.

Equipes formadas por indígenas e alguns agentes da Funai procuram, num misto de resistência, ideologia e compromisso com os povos tradicionais, proteger a terra indígena nesses extremos da Amazônia, uma área que abrange 84.570 quilômetros quadrados, o equivalente a dois Estados do Rio.

Essa imensidão de floresta contava, até pouco tempo atrás, com quatro bases da Funai em funcionamento para proteger cerca de 5 mil índios isolados e de recente contato que vivem no Javari. Cabia aos postos do Ituí-Itaquaí, Quixito, Curuçá e Jandiatuba barrarem a ação predatória que avança sobre a terra demarcada. Hoje esse trabalho está perto de ser inviabilizado.

A reportagem do Estado percorreu toda a região do Javari que vive pressão de madeireiros, garimpeiros, caçadores e pescadores que insistem em invadir terras protegidas por lei. A base do Jandiatuba, erguida no Alto Solimões, está sumindo no meio da mata. Suas casas já foram engolidas pela floresta. Nos demais postos de fiscalização, que ainda funcionam precariamente, até pouco tempo atrás não havia nem sequer um gerador de energia disponível para os agentes que se metem na Amazônia para trabalhar na proteção das áreas. Na Base do Quixito, os três funcionários que permanecem no posto de fiscalização não contam nem sequer com uma embarcação disponível em tempo integral. Nada de internet ou celular. A comunicação depende de um pequeno aparelho de rádio, que funciona conforme os humores do tempo.

No ano passado, Marco Targino, indigenista da Funai responsável pelo posto Quixito, chegou a ficar 192 dias isolado na base, simplesmente porque não havia quem pudesse substituí-lo na função. “Foram seis meses e 12 dias no mato. Saí daqui surtado”, lembra. “Há tempos nossa preocupação era ter melhores condições de trabalho, uma melhor infraestrutura local, por conta das adversidades que enfrentamos aqui. Mas hoje, sinceramente, estamos num patamar abaixo disso. Nossa reivindicação é, basicamente, tentar garantir a permanência desse trabalho, prosseguir com essa política de Estado, que é a proteção dos índios isolados.”

As ações da Funai voltadas à defesa dos territórios dos povos isolados e de recente contato tiveram início nos anos 1980. A decisão de impedir a entrada de não índios e de empresas na região representou uma mudança radical na postura que a fundação mantinha até aquele momento. Foram décadas de iniciativas equivocadas, que se orientavam basicamente pela ideia de contatar e “amansar” os índios, práticas que eram defendidas pela própria Funai durante o regime militar.

Fronteira frágil

O trabalho protagonizado pelo indigenista Sydney Possuelo, baseado no respeito à vontade do índio de permanecer em isolamento, na preservação de sua cultura, de sua terra, identidade e modo de ser, representou uma guinada na forma de se relacionar com esses povos, mudança que se revelaria bem-sucedida. Hoje, porém, o destino de corubos, marubos, maiurunas, matis, canamaris e culinas está em xeque.

Até o início deste ano, havia apenas 19 servidores da Funai responsáveis por tomar conta de toda terra indígena em ações de fiscalização. Aos constantes cortes de orçamento da estatal, somam-se o encolhimento de seu quadro profissional e a desidratação de seus programas.

O Ministério da Justiça, que comanda a Funai, prefere não comentar o esvaziamento das políticas de proteção e o esquecimento que toma conta do Vale do Javari. A Funai afirma que tem procurado formas de dar continuidade às atuais políticas de fiscalização. “A Funai seguirá trabalhando para tomar as providências necessárias à proteção desses grupos, buscando garantir o pleno exercício de sua liberdade e de suas atividades tradicionais.”

São palavras de difícil compreensão para André Marubo, que tenta arrumar um canto para dormir em seu barraco sem teto, na Base do Quixito. Seu povo está entre aqueles de recente contato com não índios. Como os povos isolados, ele depende das ações de proteção para garantir seus direitos. “Não somos nós que saímos daqui”, diz André Marubo. “Vocês é que vieram para cá.”

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NA TRILHA DOS CARTUCHOS

Caça irregular e pesca predatória cercam as aldeias dos povos isolados

o alto da copa das árvores, ao longo do Rio Quixitinho, o japim fez seu ninho bem ao lado de grandes casas de marimbondos. O pássaro típico da Amazônia sabe que sua sobrevivência depende desses vizinhos. Se o ninho é ameaçado por um gavião ou qualquer outra ave, o japim, também conhecido como xexéu, sacode as asas e desperta os insetos para defender seu território.

A lição ensinada pelo japim não se aplica às trilhas e matas fechadas do Vale do Javari. Os índios isolados estão encurralados. Não há casas de marimbondos ou qualquer outro recurso que consiga frear o avanço de criminosos sobre um território protegido por lei.

Por nove dias, o Estado percorreu os rios, trilhas e matas fechadas da terra indígena Vale do Javari, trabalho que envolveu mais de 320 quilômetros de viagens de barco na fronteira do Brasil com o Peru. A expedição em terra incluiu 22 quilômetros de caminhadas. O objetivo da expedição, que foi autorizada pela União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) junto à Funai, não foi o de entrar contato com índios isolados, mas pesquisar sinais de sua presença para, a partir daí, analisar seus riscos e medidas de proteção. O que se vê são sinais de invasões por todos os lados.

Na mata fechada da fronteira entre o Brasil e o Peru caçadores sobem pelos rios carregados de armas de grosso calibre e freezers amarrados dentro de embarcações. A fiscalização na região é dificultada pelo emaranhado dos rios que avançam, retrocedem e mudam seus cursos. Como a Amazônia que se move, as aldeias também partem para outros caminhos, por conta da proximidade com não índios. Na floresta, nas trilhas usadas pelos indígenas, a reportagem encontrou cartuchos de espingarda calibre 16 pendurados em tocos, para demarcar o local de passagem. Não se trata de caçadores que buscam animais para a própria alimentação. A caça ali é profissional e predatória. Na floresta, matam macacos, veados, antas, caititus e o que mais aparecer pela frente, para revender nas cidades.

Bruno Pereira, agente indigenista da Funai que atua na Frente de Proteção do Vale do Javari, aponta para um monte de folhagem no chão. Ao erguer as plantas, mostra dezenas de sacos plásticos de sal vazios. “Olha isso. Os caçadores trazem o sal para conservar os animais abatidos, e vão fazendo isso mata adentro.”

Das águas do Javari tem saído grande parte dos peixes ornamentais que abastecem mercados como a China. Os “piabeiros”, como são conhecidos os pescadores, entram nos rios da terra indígena atrás dos alevinos do aruanã. O peixe, também conhecido como sulamba ou macaco d’água, é mandado para a Colômbia, que revende para outros países como peixe ornamental.

Apreensão de balas utilizadas por caçadores que avançam pela terra indígena, onde as invasões são cada vez mais frequentes

A indústria madeireira também marca presença, atrás de espécies nobres como a sumaúma. Do Peru, balsas sobem com guindastes de grande porte, que puxam os troncos com cabos de aço para dentro do rio. Com serras, a madeira é “limpada”, para correr rio abaixo. Quando os troncos chegam ao ponto do rio que não está mais dentro da terra indígena são amarrados e recolhidos por empresas peruanas.

Em fevereiro, uma dessas ações foi alvo de uma operação integrada que envolveu Funai, Ibama, Exército, Polícia Federal (PF) e Batalhão Ambiental da Polícia Militar (PM) do Amazonas. Uma jangada com 432 toras de madeira descia pelo Javari. Além da sumaúma, um peruano transportava toras de ucuúba, marupá, jacareúba, cedro, cedrorana e louro. Ele portava nota fiscal e seus papéis eram falsos. A madeira foi apreendida e o homem, multado em R$ 130,5 mil.

A exploração das terras do Javari não se limita à atuação de aventureiros ou organizações criminosas. A área é alvo constante de estudos e de projetos de mineração e petróleo. A Petrobrás já chegou a ter bases ativas para exploração de gás na região entre as décadas de 1970 e 1980. Nos últimos anos, organizações indígenas do Vale do Javari têm denunciado a presença de lotes de exploração petrolífera em territórios tradicionais do povo matsés, que vive no Peru.

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PROTEÇÃO DO EXTERIOR

Defesa da terra indígena passa a depender de recursos captados em países europeus

Trabalhos de fiscalização e proteção em andamento no Vale do Javari se devem, basicamente, a recursos enviados por outros países, mais precisamente da Noruega e da Alemanha. Alvo de cortes constantes no orçamento, a Fundação Nacional do Índio (Funai) tem um acordo de cooperação firmado desde 2014 com o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), uma associação sem fins lucrativos criada em 1979 por antropólogos e indigenistas.

Desse acordo entre a Funai e o CTI nasceu o projeto de “Proteção etnoambiental de povos indígenas isolados e de recente contato na Amazônia”, que prevê a liberação de R$ 19 milhões para a região até 2019. Esse dinheiro é sacado do Fundo Amazônia, alimentado pelos cofres públicos dos governos da Noruega e da Alemanha.

Sem os aportes internacionais, as ações de proteção do Vale do Javari já teriam virado lenda. O que governo federal tem reservado à Funai para executar seu trabalho mal dá para fazer o mínimo. No ano passado, o valor total empenhado nas ações da chamada Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém-Contatados (CGIIRC) foi de R$ 3,919 milhões. Desse total, R$ 2,967 milhões foram usados nas atividades com povos isolados e outros R$ 490 mil em ações com povos de recente contato. A diferença de mais R$ 461 mil só entrou nos cofres por causa de emenda parlamentar.

Desde o ano passado, agentes da Funai alertam que metade das 12 Frentes de Proteção Etnoambiental mantidas pela fundação em todo o País corre risco de fechar as portas. A Funai disse que os alertas de risco de fechamento das frentes de proteção se deram “em contexto do bloqueio de orçamento federal”.

Indígenas dormem em barcos ao lado da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), em busca de apoio à saúde e alimentação

O CTI deixa claro que não pode fazer o trabalho sozinho. “Historicamente, a Funai tem um peso para os povos indígenas nessa região e, nos últimos anos, vinha desempenhando um importante papel na organização da agenda indigenista no Vale do Javari, cumprindo sua missão institucional de coordenar a política indigenista”, diz o coordenador adjunto do CTI, Conrado Octavio. “O enfraquecimento do órgão interrompe esse processo, abrindo espaço para a desmobilização de determinadas agendas e para relações clientelistas na implementação de políticas públicas de fundamental importância para os povos indígenas. Além disso, coloca em risco a integridade territorial desses povos, o que é gravíssimo, tendo em vista o quadro de ameaças a que estão sujeitos cotidianamente”, completa.

A ação indigenista numa área com mais de 8,5 milhões de hectares exige, segundo Octavio, constante cooperação e articulação interinstitucional, além de disponibilidade de recursos humanos e financeiros. “A debilitação da Funai e das condições necessárias para que o órgão implemente a política de proteção e promoção dos direitos dos povos isolados e de recente contato prejudica muito o controle dessas ameaças e coloca a integridade física e territorial destes povos em risco.”

Com a chegada de Osmar Serraglio (PMDB-PR) para o comando do Ministério da Justiça, a pressão sobre a Funai e as terras indígenas atingiu um nível sem precedentes. Serraglio é uma das lideranças da Frente Parlamentar da Agricultura (FPA), grupo que tem posicionamento contra a fundação e que atuou para a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apura supostas irregularidades na autarquia vinculada ao Ministério da Justiça.

Mais do que uma liderança da bancada ruralista, Serraglio também é o relator da polêmica Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que praticamente sela o destino da Funai, ao retirar o processo de demarcação de terras indígenas do governo, para repassá-lo ao Congresso Nacional.

Historicamente, a Funai tem feito uma forte oposição à PEC 215, proposta que tramita há 17 anos na casa. O ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo tinha uma posição clara sobre a inconstitucionalidade do texto, por entender que o processo de demarcação é resultado de uma série de levantamentos de dados técnicos e antropológicos feitos pela Funai, para posterior aprovação pelo governo.

Serraglio, no entanto, sempre combateu essa visão. Em 2015, no papel de deputado, rebateu Cardozo, alegando que a Constituição prevê que é prerrogativa do Congresso definir limites dos bens da União e que, como as terras indígenas são bens públicos, caberia ao Congresso essa decisão. Procurado pela reportagem para comentar o assunto, o Ministério da Justiça não quis se manifestar.

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A SAGA NOS RIOS

Índios viajam dias e noites para buscar apoio e serviços de saúde nas cidades

Os sintomas que mantinham Uanikuru Matis prostrada em sua cama já não eram estranhos aos olhos de sua mãe. Uma tosse constante maltratava a pequena Uanikuru, de 16 anos, durante toda a noite. Há dias ela não queria comer mais nada e passou a reclamar de dificuldades para respirar. Perdia peso a olho nu. Tumewassa Matis via a tuberculose avançar sobre o corpo frágil da filha, pela quarta vez. A mãe entrou em desespero.

Tumewassa juntou algumas roupas, comida e água. Com a filha doente e um bebê de 2 anos no colo, o menino Benitoia Matis, a índia deixou sua aldeia nas margens do Alto Itaqui em uma pequena canoa. Foram três dias e noites de viagem rio abaixo com seus filhos, até acessar o Rio Javari e chegar a Atalaia do Norte, onde funciona a Casa de Apoio à Saúde do Índio (Casai).

Quando Uanikuru entrou no posto médico, dois meses atrás, seu estado era grave. “Ela chegou aqui realmente muito mal. Ainda está muito fraca, mas aos poucos tem melhorado. Terá de ficar uns quatro meses em tratamento, até poder voltar para sua casa”, afirma Bruno Rodrigues, de 27 anos, enfermeiro responsável pelos atendimentos na Casai de Atalaia.

Os índios matis deixaram de ser isolados no fim dos anos 1970, quando aconteceram os primeiros contatos. Na década seguinte, o povo falante da língua pano quase foi dizimado, mas conseguiu resistir e, lentamente, passou a ressurgir em aldeias espalhadas pelo curso sinuoso dos rios que afloram no Javari.

A tuberculose que acomete Uanikuru e faz a adolescente ter a aparência de uma menina de 10 anos tem sido presença comum no cotidiano dos matis, de acordo com Bruno Rodrigues, além de outras enfermidades como desnutrição, hepatite e doenças respiratórias. O avanço das moléstias não encontra muita resistência frente às estantes vazias da Casai, onde falta um pouco de tudo para os tratamentos.

“Atendemos cerca de 150 casos por mês. São situações que precisam de tratamento, as pessoas têm de permanecer algum tempo por aqui, mas não temos estrutura para isso. Faltam remédios, equipamentos médicos e instrumentos básicos”, conta o enfermeiro.

As famílias dos indígenas que chegam à Casa de Apoio precisam se dividir em cinco malocas. As casas sem ventilação ficam cheias. “O povo indígena está adoecendo mais. Há três anos, eram raros casos de indígenas que tinham de ficar na cidade para tratamento. Hoje isso é constante. Temos necessidade de uma presença maior dos governos estadual e federal, por conta do tamanho do Vale do Javari. A maioria das solicitações que fazemos aqui não é atendida, dizem que não há recursos”, relata Rodrigues.

O contato com não índios, gradativamente, consome a saúde, os hábitos e a cultura dos povos de recente contato. Casos de doenças sexualmente transmissíveis começam a aparecer na Casai. “Não tínhamos isso aqui. Hoje estamos com três casos de HIV em tratamento, além de problemas de sífilis. O alcoolismo é outra dificuldade, um problema generalizado”, diz o enfermeiro.

Nas margens do Javari, em Atalaia, dezenas de crianças indígenas tomam banho na água turva e suja desta parte do rio, por causa do lixo que é lançado a céu aberto pela cidade. Lá estão os filhos de Kunin Matis, que viajou seis dias de barco para fazer compras na cidade que margeia o Rio Javari. “Viemos comprar farinha e gasolina para o barco”, afirma o indígena. Na casa de apoio onde passarão alguns dias, crianças estão com disenteria e febre. “Vamos buscar remédio para levar para a aldeia.”

Nos extremos da Amazônia, a saga por atendimento médico não escolhe origem nem etnia. Nascido e crescido na beira do rio, o pescador Iramar da Silva Lima, de 46 anos, sempre se fiou no conhecimento das plantas medicinais que o pai lhe passou para enfrentar males e dores. Vivendo sozinho na beira do Javari, a mais de duas horas de barco da cidade mais próxima, ele nunca tinha passado grandes dificuldades, até o dia em que começou a sentir uma febre que não cessava. Vieram náuseas, diarreia e tontura. “Eu pensei assim: Meu Deus, vou morrer aqui sozinho”, afirma.

O pescador passou um tempo deitado no chão, para ver se melhorava, mas a situação se agravava. Lima se arrastou até a canoa que estava na beira do rio. “Abandonei tudo em casa, do jeito que estava. Lembro que deitei no barco, puxei um pano em cima de mim e deixei a canoa descer”, conta o pescador. Horas depois, um barco passou próximo da canoa e notou que havia alguém deitado. Lima foi socorrido às pressas e encaminhado para o hospital público de Atalaia do Norte. “Viver sozinho aqui não é fácil. Se eu pudesse, ia fazer outra coisa, mas a gente não acha emprego na cidade. Então, isso aqui é o que me resta”, diz.

As dificuldades de acesso a serviços de saúde também fazem parte do dia a dia dos peruanos que vivem na margem esquerda do Rio Javari. Carlos Nunes, pequeno agricultor que mora há 20 anos na Província de Mariscal Ramón Castilla, diz que não consegue ser atendido do lado brasileiro, em Atalaia do Norte, porque não tem documento do País.

“Nessa região de fronteira os povos vivem juntos, não tem muita separação. Está cheio de peruano que é dono de mercados e lojas do lado brasileiro, mas toda vez que preciso do hospital público de Atalaia, dizem que não posso ser atendido, porque não tenho registro brasileiro”, afirma.

O hospital municipal nega que haja discriminação entre os pacientes que procuram o posto médico e diz que atende a todos. Carlos Nunes afirma que o único jeito tem sido seguir de barco por algumas horas até a ilha peruana de Islândia, nas margens do Javarizinho, um braço Javari, afluente do Rio Solimões. “Lá nos atendem, sem discriminação.”

Os desentendimentos com os serviços de saúde pelo menos não entram no campinho de futebol que Nunes improvisou ao lado de sua casa, na beira do rio. Toda semana, um grupo de indígenas da etnia marubo deixa sua aldeia do lado brasileiro, entra em canoas e rema até a outra margem do Javari, para um futebol no terreno peruano. Raul Marubo, que veste a camisa 10 de Neymar, é o craque do time. “Ele não joga tão bem assim”, rebate Nunes.

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LIVROS CONTRA O CRIME

Na beira do rio, Machado de Assis e Júlio Verne viram ‘armas’ na floresta

É perto de meio-dia. A turma de 15 alunos já deixou a sala de aula e correu para casa. Em sua mesa, o professor José Cruz Queiroz do Nascimento permanece atrás de provas e exercícios. Na pequena escola da “Comunidade Contrabando”, na fronteira do Peru com o Brasil, Nascimento tenta fazer a diferença na vida de crianças que nascem nas vilas espalhadas ao longo do Rio Javari.

A sala de aula é uma grande casa de madeira com assoalho suspenso para os tempos de cheia. Apesar do calor forte e da umidade amazônica, o ar é fresco dentro da escola. Nas poucas cadeiras, os alunos da primeira e da quinta séries do ensino fundamental dividem a atenção do professor. Diariamente, Nascimento, de 43 anos, pega o barco em Atalaia do Norte e sobe o rio para chegar à escola.

Nas estantes de livros, o exemplar mais gasto é uma cartilha que leva o nome de Saberes e Fazeres do Campo. Mas também há espaço para Os trabalhadores do Mar, romance de Victor Hugo, para os gêmeos Esaú e Jacó, de Machado de Assis, e ainda para A volta ao mundo em 80 dias, de Júlio Verne.

“Sou professor há 14 anos. Nesse tempo, aprendi que a gente precisa ensinar de tudo para esses meninos, para serem pessoas melhores”, diz Nascimento. “As condições aqui são precárias mesmo, as crianças têm pouco acesso ao que acontece lá fora e acabam só se baseando no que veem ao redor delas. Os livros ajudam a educar e a abrir o mundo para elas.”

É o que espera José Vieira Barros, de 85 anos, que tem bisnetos na escola. Soldado da borracha, Barros nasceu no meio das seringueiras. Desde os 12 anos, conta, ajudava o pai a retirar o látex da casca das árvores para alimentar a indústria da borracha. “Trabalhei na seringa até os 60 anos”, conta, enquanto busca a faca da seringa guardada no armário de casa. “Criei minha família na seringa, mas estou brigando até hoje pra comprovar que fui soldado da borracha, pra receber o que tenho direito.”

José Vieira Barros, de 85 anos, tenta provar que passou a vida trabalhando como ‘soldado da borracha’, para receber indenização do governo

O Ministério da Previdência Social prevê o pagamento de uma indenização no valor de R$ 25 mil para os soldados da borracha, como são conhecidos os seringueiros que atuaram na extração de látex durante a 2.ª Guerra Mundial. Os dependentes dos seringueiros que já morreram também têm direito à indenização. Barros ainda não entrou para as estatísticas dos 11.900 beneficiários calculados pelo governo.

Pelas salas de aula que lutam para educar o Javari é possível encontrar ainda escolas trilíngues. Na Escola Estadual Indígena Professor Gildo Sampaio Megatanücü, na Comunidade Filadélfia, em Benjamin Constant, as aulas são dadas em português, espanhol e ticuna, para educação de índios que já vivem nas cidades. “Temos 1,2 mil alunos. A maioria é indígena”, conta a professora de Geografia, Cássia Mesquita. “Mas há também peruanos e brasileiros.”

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VALE DOS MEGAPROJETOS

Estradas, ferrovias, mineração e poços de petróleo e gás miram a terra indígena

s 1.200 quilômetros de extensão do Rio Javari que dividem o Brasil e o Peru, chegando até a Colômbia, ganharam notoriedade no mundo do narcotráfico ao serem convertidos em uma das principais rotas de escoamento de cocaína do País. O interesse comercial pela tríplice fronteira, no entanto, não está restrito às facções criminosas que comandam o escoamento das drogas, tampouco ao crime organizado que atua na extração de madeira e contrabando de espécies da região.

Há décadas, a terra indígena do Javari está no mapa de empreendimentos de infraestrutura que envolvem desde a construção de estradas, até a abertura de ferrovias, exploração mineral e abertura de campos de petróleo e gás.

No fim de 2014, a Petrobrás arrematou lotes de exploração em uma área ao norte do Acre, bem próxima da terra indígena. O contrato de concessão assinado pela petroleira prevê um prazo de oito anos na fase de exploração e 27 anos na etapa de produção. Seria a retomada das operações em uma região que já escreveu seus capítulos de violência. O receio dos povos indígenas é que a eventual exploração da área reviva conflitos ocorridos no passado. Em 1984, quando a estatal já explorava gás na região, um grupo de isolados da etnia corubo matou, com flechadas, dois funcionários de uma empresa contratada pela Petrobrás.

A reportagem questionou a estatal sobre a fase atual desse projeto e a previsão para iniciar a produção efetiva do lote. A Petrobrás declarou apenas que “o bloco exploratório AC-T-8”, na Bacia do Acre, adquirido durante a 12.ª Rodada de Licitações da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), “encontra-se com atividade suspensa por causa de decisão judicial”.

Extrativistas de açaí vivem em situação precária nas margens do Rio Quixito, nas proximidades de Atalaia do Norte (AM)

Do lado peruano, os projetos petroleiros estão avançados. Em 2013, a empresa canadense Pacific Rubiales Energy deu início ao levantamento sísmico do seu lado da fronteira, área que havia anos aguardava decisão sobre demarcação de terra pelo governo do Peru. A empresa obteve autorização para prospectar a área.

“Os interesses sobre as terras indígenas por parte de setores do agronegócio, da grilagem e especulação fundiária, da mineração, de empreendimentos de infraestrutura de modo geral, e também a ação proselitista missionária não são exclusividade do momento atual, mas é assustador o caráter totalmente despudorado que iniciativas desses setores têm assumido no presente, e a liberdade com que têm ocupado e comandado setores estratégicos do governo federal, especialmente afeitos aos povos indígenas’, afirma o coordenador adjunto do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Conrado Octavio.

A integração logística também passa pelas terras dos isolados. Dentro da lista de projetos da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), programa que reúne 12 países da América do Sul, está a construção de uma rodovia que ligaria Pucallpa, capital do Departamento de Ucayali, no Peru, à cidade de Cruzeiro do Sul, no Acre. O traçado cortaria o Parque Nacional da Serra do Divisor e afetaria os isolados Isconahua, que vivem do lado peruano. Mais recentemente, a construção de uma ferrovia também passou a fazer parte dos planos.

“Há um retrocesso generalizado”, diz Bruno Pereira, agente indigenista da Funai que atua na Frente de Proteção do Vale do Javari. “O que não se conseguiu fazer no governo militar, os chamados projetos de desenvolvimento para o País, estão avançando agora em lugares onde há populações tradicionais, com projetos de abertura de estradas, exploração de petróleo e gás, políticas de fomento para derrubar a floresta, em vez de mantê-la em pé”, afirma o indigenista. “É assim que tem caminhado o projeto de desenvolvimento nacional para a Amazônia. Depois se queixam quando pessoas de fora do País se preocupam com a Amazônia, fazem o discurso de que a Amazônia é nossa. Mas é desse jeito que a gente trata?”

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‘A GUERRA SÓ COMEÇOU’

Índios prometem manter as bases de fiscalização, com ou sem apoio do governo

Os povos do Vale do Javari não estão dispostos a ficar quietos, vendo a destruição dos programas que ajudam a proteger suas terras e costumes. Paulo Marubo, coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), diz que os índios têm sofrido com a pressão de madeireiros, empresas, caçadores e pescadores que avançam sobre seus territórios, mas não vão admitir o abandono de medidas de proteção que, mesmo precariamente, garantem sua sobrevivência.

“Nosso povo não vai ficar parado, olhando e morrendo. Vamos agir, não deixaremos essa situação acontecer. Estamos muito preocupados com tudo o que tem acontecido na região. Os invasores estão entrando nas áreas, e não há mais segurança para os isolados”, diz Paulo Marubo. “Somos isolados, mas não somos ignorantes. Sabemos dialogar e conhecemos nossos direitos. A guerra não acabou, a guerra só começou. Vamos partir para cima do governo.”

Indigenistas e lideranças locais temem que o avanço sobre a terra indígena faça a região reviver capítulos sangrentos de violência e mortandade, como os ocorridos durante o “primeiro ciclo da borracha”, entre 1870 e 1911, que levaram doenças, assassinatos e escravidão para as aldeias do extremo oeste da Amazônia. Mais tarde, em 1970, os povos tradicionais voltariam a sofrer com a forte exploração madeireira. Foram décadas e mais décadas de invasões, até que o Javari viesse a ter, após forte resistência, seu reconhecimento definitivo como terra indígena demarcada e protegida. Isso só aconteceria no dia 29 de maio de 1998, com publicação em diário oficial pelo Ministério da Justiça.

“O que assistimos hoje, infelizmente, é o esfacelamento da política de isolados. Podemos ter um novo momento de genocídio desses povos. Vemos equipes de caça, garimpeiros e madeireiros se aproximando da terra indígena. Os índios têm imunidade muito baixa. Qualquer vírus pode dizimar grupos inteiros”, diz Bruno Pereira, agente indigenista da Funai que atua na Frente de Proteção do Vale do Javari.

Em março, lideranças da região se reuniram na Assembleia Geral dos Povos Indígenas do Vale do Javari. Em carta redigida após o encontro, as organizações indígenas reafirmam que as bases de fiscalização estão sem recursos humanos e financeiros para cuidar da área. “Na subida para este encontro (no Rio Pardo), nos deparamos com apenas dois indígenas marubo na base de fiscalização da boca do Rio Curuçá. Ficamos desesperados ao nos deparar com essa situação, pois consideramos que a base tem uma função estratégica de fiscalização, uma vez que se localiza próximo da faixa de fronteira entre Brasil e Peru, onde as invasões são constantes e há também a atuação de traficantes”, afirmam as organizações no documento.

Invasões têm ocorrido principalmente na região do Rio Juruá, atingindo a área de ocupação dos índios isolados. “Não sabemos o que está acontecendo com esses povos, o que nos causa grande preocupação, pois eles estão correndo risco de serem acometidos por doenças”, diz a carta. “Os povos indígenas tyohom-dyapá, do Rio Jutaí, de recente contato, estão sofrendo todo tipo de descaso com a invasão dos fazendeiros e a exploração de regionais, que levam bebidas alcoólicas para trocar com carnes de caça.”

Hoje, há 107 registros da presença de índios isolados em toda a Amazônia Legal, área que abrange nove Estados: Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e parte dos Estados de Mato Grosso, Tocantins e Maranhão. Povos da etnia matís, marubo, canamari, culina e maioruna, também conhecidos como matsés, são de contato permanente. Já o povo corubo é considerado isolado, apesar de um pequeno grupo ter sido contatado em 1996 pela Funai. A maior presença de povos isolados do Brasil se dá no Vale do Javari, onde já foram registradas 16 referências desses grupos. A população total da terra oscila entre 3,8 mil e 5,5 mil pessoas, sem incluir as estimativas da população de índios isolados.

Paulo Marubo, coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Unijava), diz que índios estão ‘prontos para a guerra’ por seus direitos

Indigenistas afirmam que a pressão no entorno da terra indígena tem levado os isolados a saírem de suas terras, o que gera conflitos com não índios e, paralelamente, potencializa os confrontos entre as diferentes etnias que vivem na região. Em 2014, indígenas do povo matis e grupos isolados corubo entraram em conflito, resultando na morte de lideranças indígenas. O clima ainda é de tensão entre os dois povos, que trocam acusações de invasão de seus territórios.

Nos Estados da região amazônica estão concentrados 433,4 mil índios, o equivalente a 53% de toda a população indígena do País. Os povos isolados, grupos com ausência de relações permanentes ou com baixa frequência de interação, seja com não índios ou outros povos indígenas, estão hoje concentrados no Vale do Javari. Já os grupos de recente contato são aqueles que mantêm relações permanentes, independentemente do tempo de contato, mas que preservam sua autonomia. Dentro do Vale do Javari, essa população é estimada em cerca de 5 mil índios. Não há detalhes sobre a população de índios isolados.

Estimativas históricas dão conta de que, antes da chegada do homem branco, havia mais de 1 mil povos no território brasileiro, somando entre 2 milhões e 4 milhões de pessoas. O censo demográfico feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010 apontou a existência de 897 mil indígenas no País. Foram identificadas 305 etnias – a maior é a ticuna, com 6,8% da população. O levantamento mostra que 517 mil indígenas, o equivalente a 58% do total, vivem em terras demarcadas. São 274 línguas faladas pelos povos indígenas e 17,5% desses povos não falam a língua portuguesa.

“Que sociedade é essa que esquece e relega à morte os seus povos originários?”, questiona Bruno Pereira. “Esperamos que o Estado brasileiro consiga dar uma resposta à altura. O cenário é de retrocesso. Há uma desmobilização inteira na Funai e do direito desses povos, que foi conquistado na Constituição, na Carta de 1988.”

Foto: Werther Santana, Estadão

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