Você acreditou que o Brasil está em crise por culpa dos gastos do Governo? Parabéns, você foi enganado

A tese vulgar comumente repassada sobre a crise econômica brasileira diz que ela foi causada pelo excesso de gastos do governo federal com custeio, servidores e programas sociais. Contudo, um exame honesto dos fatos mostra não só como isto é insustentável, mas como a realidade é bem mais complexa. O erro é proposital: faz parte de uma trama que quer implementar um programa ideológico e corporativo contra os direitos sociais e que jamais receberia apoio popular.

Por Rodrigo Souza, no Voyager

A escolha verdadeiramente livre é aquela na qual eu não simplesmente escolho entre duas ou mais opções no interior de um conjunto prévio de coordenadas, mas escolho mudar esse próprio conjunto de coordenadas. (Slavoj Zizek, em “O Amor Impiedoso (sobre a crença)”)

Antes de apresentar um diagnóstico consistente da crise econômica que abalou o Brasil sem cair numa abordagem ideológica, é necessário ajustar nossas lentes e situar o nosso campo de visão. Para isso, é imprescindível irmos além da concepção vulgar que se tem da economia e falarmos um pouco sobre o Sistema Mundial.

O Sistema Mundial Moderno e por que Estados não são ilhas, mas sim parte de uma rede global em condição interdependente

Tendo sido gestada nas cidades-estado italianas nos séculos XIV e XV, a “economia-mundo” emergiu com a aliança ibero-genovesa no século XVI e, por meio das hegemonias holandesas e inglesas no século XIX, se estendeu aos quatro cantos do mundo, surgindo assim o Sistema Mundial Moderno ou, simplesmente, a economia capitalista globalizada como conhecemos hoje [1].

Neste sistema, apesar das cadeias produtivas e a circulação de mercadorias ultrapassarem limites geográficos, o valor gerado com as atividades econômicas é distribuído de forma extremamente desigual, devido à Divisão Internacional do Trabalho. A forma como essas cadeias produtivas se distribuem geograficamente também explica a concentração da riqueza, já que os Estados cujas fronteiras abrangem a maior parte delas (assim como a rede financeira) usufruem dos maiores ganhos econômicos. Vários Estados formam uma estrutura maior, o “sistema-interestados”, na qual as relações de poder atuam também na capacidade de socializar externalidades negativas das atividades e capitalizar os ganhos [2].

Assim, as zonas geográficas que ficam com as cadeias produtivas que proporcionam maior valor agregado e menos externalidades negativas se constituem o “centro” do Sistema; já as zonas em que isso ocorre inversamente constituem suas “periferias”. Há também aquelas zonas que apresentam os dois extremos, constituindo as “semiperiferias”.

Apesar da maior produção de valor das economias estar baseada nas cadeias produtivas mais complexas e delas estarem concentradas nas zonas geográficas centrais, caso dos países desenvolvidos, existe uma mobilidade no sistema, mesmo que parcial. Em dados momentos uma atividade que era central passa a ser mais periférica, em uma escala fluida, e outras periféricas podem ganhar mais peso econômico ao longo dos ciclos do Sistema. Na semiperiferia se encontra o Brasil com seus ciclos econômicos [3].

Esta foi uma breve e simplificada introdução dos princípios básicos da Análise do Sistema Mundial. É necessário sempre considerá-la caso a intenção seja de fato compreender a economia de qualquer país ou zona geográfica, o que não ocorre no discurso infantil e reducionista que marcam os debates sobre “sucesso” e “fracasso” dos países, tão comuns na internet e até mesmo na grande mídia. Estamos acostumados a encarar a economia mundial como Estados autodeterminados e independentes, livres de influências ou pressões externas, senhores de si e os únicos responsáveis pelos acertos ou erros de suas “políticas econômicas”, escolhidas numa distribuição de cartas ideológicas pela sua classe política, como imagina o senso comum. É contraproducente, mistificador e até mesmo anti-científico acreditar que os países estão numa competição, cuja glória ou queda se deve às suas próprias decisões, o que explicaria a riqueza dos países centrais, considerados os vencedores nessa concepção de mundo que mais parece um darwinismo social adaptado para a geopolítica.

Não, os Estados não são como girinos num lago em que os mais esforçados viram sapos e os mais indolentes são engolidos pelos seus predadores. Não, nenhum Estado é uma esfera atômica como dos modelos antigos. Na verdade eles são elementos funcionais da verdadeira unidade, o Sistema Mundial. Cada fenômeno de seus processos internos deve ser analisado à luz da geopolítica, da geoeconomia, da geocultura, e em seus períodos correspondentes. É necessária a percepção de como estão os movimentos e processos nesta unidade, neste “todo”. Desta forma compreendemos a importância do conceito das zonas geográficas, que podem estar nos Estados, em parte dos Estados e mesmo cruzando fronteiras [3].

Crise de 2008: o momento que se acende o pavio da bomba

Uma das mais importantes saídas para salvar a economia do colapso após a Crise de 2008, por parte dos países mais ricos, foi uma medida dos governos e dos bancos centrais em sintonia, chamada “flexibilização quantitativa” [4].

Não cabe aqui detalhar tudo o que está envolvido, mas, basicamente, essa medida incluiu assumir contratos de dívidas com juros do setor privado, para as taxas de juros das dívidas abaixarem e os bancos poderem novamente colocar dinheiro para circular na economia, assegurando o consumo e os investimentos.

Com mais dinheiro circulando na economia mundial, entrava mais dinheiro em commodities por serem mais “seguras”, também em economias como a do Brasil, valorizando a moeda e, com essa maior circulação, maior oferta de crédito (distorcida devido à desigualdade de dotações), incentivando a tomada de compromissos financeiros por parte de famílias e empresas. Mas na época isto cumpria a função de não se deixar cair em recessão [5].

Nas eleições de 2010, como de praxe, os gastos públicos aumentaram em todas as esferas (mas o superávit primário, economia do governo para pagamento da dívida, foi de 2,78% do PIB). Todavia a taxa de investimento em 2010 foi a segunda maior da década, de 18,4%; o investimento público em relação ao PIB foi recorde, de 2,9% (3,3% incluindo as estatais; em 2003 era de 1,5%), com a formação bruta de capital fixo em 21,8% do PIB (indicativo da expansão de bens de capital nas empresas). Não se pode dizer então que havia uma “gastança” [6].

Porém, no período, estourou a crise grega [7], provocando pânico no mercado: as compras de títulos públicos dispararam, motivadas pelo medo do efeito dominó (os títulos públicos são os ativos de renda fixa que o Tesouro Nacional emite para garantir sua dívida). Com isso, as autoridades com sua política de juros altos, esperavam um efeito colateral “positivo”, que pudesse atrair capital para o Tesouro, porém tal expectativa foi frustrada neste ano.

A moeda muito forte, mesmo sendo ruim para os exportadores, era conveniente, porque ajudava a segurar a inflação e ainda agrava boa parte da sociedade com poder de consumo, como a classe média, por facilitar as viagens para o exterior e a aquisição de produtos importados. Quando vinha qualquer choque de desvalorização – com qualquer problema que interrompia os fluxos de capital –, lá ia o Banco Central gastar mais para valorizar o Real. Esse quadro foi piorando para as empresas que possuíam dívidas em dólar, as quais apenas aumentavam, enquanto o Banco Central valorizava a moeda para evitar quebra e instabilidade. Em 2011 o governo quis “puxar o freio” das medidas e fez um ajuste fiscal, elevando a meta de superávit primário para 3,1% (dentre outras implicações, que serão mencionadas adiante, levou-se em 2012 ao maior movimento paredista dos servidores públicos federais no período democrático [8]); entretanto tal medida foi um golpe nas empresas que contraíram compromissos contando com o ritmo vigente até então.

Retrai o consumo do governo; enquanto de 2004 a 2010 aumentou em 5,8%. Em 2011 foi para 0,4%. Dilma faz um profundo corte nos investimentos públicos, que caíram 12% (somente o das empresas estatais caiu 8,6%). O Banco central empreende um longo ciclo de altas de juros, que chegam a 13,5% em agosto de 2011. Endurece também no crédito ao consumidor, aumentando seus custos. Todas essas medidas acabaram comprometendo o crescimento econômico, o qual apresentava uma taxa de 11,6% em 2010, caindo para 5,6% em 2011. Como resultado, o consumo das famílias desacelerou de quase 7% em 2010 para pouco mais de 4% em 2011 e de 3% em 2012. Isto representou um baque para os projetos das empresas. O investimento privado em bens de capital desacelerou de cerca de 30,5% em 2010 para 6% em 2011 (!!) e refluiu em 8% negativos em 2012 (!!!) [9].

Ajuste Fiscal: o sopro do caos

Ocorre então uma queda muito forte no retorno sobre ativos das empresas, a formação bruta de capital fixo cai. Paradoxalmente, elevam-se as despesas financeiras do governo: o Banco Central, para enxugar um pouco o “excesso” de divisas estrangeiras, acumulou mais reservas internacionais comprando dólares. Manter essas reservas têm um custo, principalmente a diferença da taxa de juros dos títulos públicos emitidos pelo Banco para retirar a moeda de circulação (juros Selic, a média dos juros das instituições financeiras) menos a taxa de juros das reservas que em geral se remuneram os títulos do governo dos EUA. Ou seja, a diferença dos nossos juros com os juros do FED, banco central dos EUA. À época esses custos giravam em torno dos 60 bilhões de reais ao ano. Isso tem forte impacto fiscal nas contas públicas. [10]

Os juros chegaram a um patamar de 10,16% em meados de 2010 e foram até a 12,40% em 2011. Neste ano o crescimento do consumo do governo foi 93% menor do que a média entre 2004 e 2010. Por um lado a dificuldade de atração de capitais externos; por outro, capital interno que poderia ir para a indústria, foi para os títulos do Tesouro, e, com o ajuste fiscal cortando investimentos públicos , se agravou o desestímulo industrial.

Como a taxa de juros nos países mais ricos estavam muito baixas, as empresas tomavam empréstimos em moeda estrangeira, sobretudo dólar, para compensar também os custos com os projetos comprometidos pela queda na demanda advinda do ajuste fiscal. Quem no exterior investia em instrumentos mais especulativos que “fritaram” na crise, buscava algo mais “sólido”, emprestava principalmente para as mais robustas empresas, que sempre lucravam e tinham risco menor, incluindo as localizadas no Brasil. E a política de juros altos não tinham efeito nos principais fatores que pressionavam a inflação, como o preço dos alimentos, e depois os preços indexados [11].

Com isso, o que era uma política governamental para aumentar o crédito no país, tanto para famílias e como para empresas, mesmo com o ajuste fiscal, tornou o cenário interno descontrolado, dado o cenário externo que se traçou. O endividamento subiu absurdamente. O câmbio muito forte estrangulava empresas exportadoras, ficando relativamente aliviadas apenas as de matérias-primas, que tinham mercado mais garantido.

A combinação de Juros altos internamente e aversão ao risco externamente, acabou desencadeando a desvalorização do real (pelos padrões daqueles anos; só de agosto a outubro se desvalorizou em 19% em relação ao dólar) porque nestes momentos ocorrem fuga de divisas em direção ao tesouro dos EUA; ao mesmo tempo também aumentaram as despesas financeiras das empresas e, com isso, uma forte piora nos balanços das mesmas [12].

Os bens e direitos que as empresas possuíam se desvalorizavam, a rentabilidade (percentual de retorno do capital investido) caía, e a busca de melhoria das contas públicas era frustrada com isso. Uma coisa puxava a outra, tornou-se um círculo vicioso. As empresas buscaram aumentar sua rentabilidade – pela necessidade de cobrir seus fluxos de caixa – por meio de mais endividamento, o que apenas agravou sua saúde financeira, dificultando ainda mais sua capacidade para pagar suas dívidas.

Mas… (aguardem ainda mais fortes emoções).

O governo apostou na iniciativa privada e perdeu

Cada vez mais as empresas precisavam de mais lucros para poder arcar com suas dívidas, porém a situação de suas contas ficavam cada vez pior, porque: dos fins de 2012 para 2013, a relação dos valores de importações com os de exportações do Brasil, caíram muito, devido a fatores da conjuntura internacional, como a exportação chinesa. Até o setor de exportação muito básico teve problemas, e as receitas do país foram enfrentando mais dificuldades. Tombava assim a confiança de que as empresas teriam um mercado seguro e mais lucrativo (por isso não adiantava as desonerações). Queda do consumo das famílias, queda do investimento privado, balança comercial negativa e políticas austeras do governo, uma hora as receitas tinham mesmo que despencar (em 2014 a arrecadação federal teve a primeira queda desde 2009) [13].

O que potencializou os efeitos da queda nos termos de troca nem tanto foi a participação da exportação das commodities no PIB, mas a permanência do Brasil na semiperiferia do sistema-mundo, apesar dos seus ganhos econômicos e políticos que vinha obtendo internacionalmente nos últimos anos. Desde a abertura econômica desencadeou-se um processo em que nosso parque produtivo obtinha menos internalização de valor por escala. Caímos 15 posições, de 1994 a 2002, no ranking de complexidade econômica do MIT. Entre 2002 e 2012, caímos mais 13 posições [14].

Deteriorou-se conjuntamente as capacidades produtivas especializadas com relativamente menos custos e riscos com saltos tecnológicos para se agregar valor, bem como o conjunto disponível de capacidades e a estrutura das organizações nacionais para aplicar conhecimentos na produção de bens relativamente de maior valor agregado [15].

Um exemplo bem concreto é que depois da Lei Kandir, de 1996, que eliminou tributos de exportação de produtos básicos, a proporção de soja em grão exportada ganhou muito mais volume em relação à soja beneficiada do que como era antes. Em um estudo publicado na revista do Ministério da Agricultura, Danilo Aguiar e Bárbara Passos mostram que “a capacidade de processamento cresceu menos do que a produção de soja e que o Brasil sofreu perdas de mais de US$ 50 bilhões de 1997 a 2013. Além disso, o país passa a viver num cenário muito mais arriscado, pois concentra suas vendas num produto de grande risco de preço e em um único mercado comprador, a China” [16].

Neste meio tempo, obter empréstimos mais baratos ficava mais difícil porque os investidores conseguiam outras fontes que possibilitavam maiores lucros a curto prazo, diminuindo a oferta de empréstimo e dificultando o rolar da dívida das empresas brasileiras; logo, os encargos encareceram. E elas tinham muitos custos para arcar com investimentos, compras de materiais, etc. Os balanços das empresas deterioravam-se.

No final de 2015, a dívida do setor privado chegou a quase 95% do PIB. O crescimento da dívida privada se deu principalmente pelas empresas, contraída durante o período de boom pré-2008. Depois deste período, os passivos das empresas foram encarecendo, seus ativos se desvalorizado e elas contraíam cada vez mais dívidas para quitar outras dívidas, fora que grande parte delas obtinha boa parte da rentabilidade proveniente de serviços financeiros (consequência da queda de consumo). Isso porque, em junho de 2011, a taxa Selic já havia aumentado cinco vezes consecutivas no ano, subindo de 10,75% para 12,50% [17]

Desde o estouro da Crise Neoliberal, o chamado “valor presente líquido” (VPL) – a soma dos saldos de retorno dos investimentos das empresas -, e a “taxa interna de retorno” – ou as taxas de juros em uma situação em que o VPL esteja equilibrado- , dos setores empresariais de maior peso na economia nacional diminuíram. As empresas buscaram captar financiamentos para diminuir custos de capital e amortizar custos financeiros prolongando vencimentos de passivos, representando muito pouco em reais investimentos, ampliando assim sua vulnerabilidade externa [18].

Foi daí que o governo, temendo demissões, entendeu que lhe cabia tentar aliviar a barra para os empresários, fazendo as desonerações fiscais – para aliviar custos – e concedendo empréstimos via BNDES (com os quais gastava cobrindo a diferença dos juros deles com o da SELIC) – esperando que com essas medidas as empresas voltariam a investir. Mas o cenário dos já falados “termos de troca” se piorava, o da questão dos empréstimos também… As empresas não investiam mais e usavam os empréstimos baratos do BNDES para cobrir suas dívidas em dólar [19].

Essa diferença entre juros e as desonerações não funcionaram – não havia realmente ganho de lucratividade e de valor de mercado nos projetos financiados pelo BNDES, que se gabava de baixa inadimplência (claro, se cobria projetos que de outra forma podiam ser captados no mercado que geram crédito em moeda estrangeira, sobretudo commodities de baixo valor adicionado e não projetos estratégicos que em tese teriam restrições de crédito – por gerarem crédito em moeda nacional, por exemplo). Pois o que tinha de ser feito nas empresas relacionado a isto já se saturara nos primeiros anos do governo Lula, com crédito fácil e importação de bens de capital barateados pelo câmbio. Era inócuo.

As empresas só se aproveitaram das medidas do governo visando o reaquecimento da economia. As desonerações e os empréstimos facilitados, em vez de criar empregos, acabaram sendo utilizados pelas empresas para se endividarem ainda mais de forma a multiplicar artificialmente suas rentabilidades – algo que o presente texto sente a necessidade crucial de sempre retomar. E, desde 2008, a proporção dos fundos do BNDES financiados com a dívida pública foi aumentando, atingindo 9% em 2011 e 8% em 2012; com o que se apontou a respeito da queda no valor dos ativos das empresas em valores de mercado, implicando no aumento da dívida líquida brasileira [20].

Tudo isso ocasionou o rombo nas contas públicas, enquanto as receitas caíam. Como o governo não admitia essa piora, para arcar com compromissos – crendo que mais adiante teria o retorno para cobrir – fez as tais “pedaladas” [21].

Onde estava o Rombo – ou a Tromba do Elefante procurada no lugar errado

Recapitulando: houve uma Mega Crise Internacional; o governo tomou medidas que amorteceram o impacto e fez o país resistir; mas passada as ondas, como “marolas”, veio a ressaca e as medidas tomadas pelos países ricos para enfrentarem a situação mudaram o jogo. Somaram-se com as medidas do governo para levar ao superendividamento das famílias e empresas, no caso destas, em dólar, pois houve muito dinheiro do estrangeiro circulando.

O déficit do governo então foi causado não principalmente por despesas com custeio e folha de pessoal, mas por:

1. Queda de arrecadação devido a redução de atividade.

A arrecadação caiu 1,8% em 2014 e 5,6% em 2015, nos últimos swaps cambiais e recompra de títulos públicos pelo Banco Central para buscar manter o câmbio valorizado (o BACEN opera em mercado aberto, para influenciar a taxa de juros, com recompra de títulos públicos para diminuir a liquidez no mercado financeiro ou vendendo títulos para aumentá-la, conforme o caso).

Em dois meses, 12 bilhões de perdas (o pior comparativo desde 2010), porque, desde 2008, como mencionado, o peso financeiro de passivos das empresas de maior porte no valor adicionado e/ou impulsionadoras de setores no mercado nacional aumentou em relação aos seus ativos (queda na produção industrial de 10,3%, e queda na venda de bens de 9,8% – só de dezembro a maio). A partir de 2013 o Banco Central concentrou-se na proteção financeira para as empresas endividadas em dólares via “hedge” nas operações de swaps, posto que depreciação do real encarecia estas dívidas; em cerca de um ano já havia ofertado em hedge cambial algo em torno de 25% das reservas brasileiras. Em 2015 isso se acirrou muito mais fortemente [22]

2.  Renúncias fiscais com as desonerações e cobertura de diferencial de juros dos financiamentos públicos (também por causa da perda nas empresas desde 2008) [23].

Operações via BNDES, no montante de R$500 bilhões, oneraram-se em SELIC para receber em Taxas de Juros de Longo Prazo, para cobrir custos de capital de empresas. O custo para equilibrar foi de cerca de R$30 bilhões anuais, incrementando em mais de 8,5% do PIB a dívida pública do país [24].

3. A política de juros altos.

Os altos juros onerando a rolagem da dívida (consumindo sempre mais de 40% do orçamento) e o custo para sustentar as reservas internacionais, operações de swap e recompra de títulos públicos pelo Bacen, foram aplicados objetivando manter o câmbio valorizado. Tais problemas contribuíram para degradar o perfil da dívida pública brasileira, cujo maior problema não é o montante, mas o fato dele conter grande proporção de títulos de vencimento no curto prazo; por outro lado, o sinal positivo é a drástica queda de títulos em dólar, que representavam metade da dívida no começo dos anos 2000) [25].

De 2002 a 2014, os gastos com custeio subiram 0,1% do PIB! 0,2% em saúde, 0,4% em educação. Nas demais pastas houve queda de 0,5% em gastos com custeio. De 2002 a 2014 a despesa com pessoal da União, em percentagem do PIB, sem computar a capitalização da Petrobrás – o que faria a proporção diminuir ainda mais – CAIU 0,6%. Foi nos entes subnacionais que os gastos com pessoal subiram significativamente. Podemos ver que o número de servidores ativos na esfera federal ficou estagnado, apesar do aumento da demanda por atendimento e prestação de serviços. A nível municipal, aumentou-se vertiginosamente [26].

Fonte: Nexo Jornal

Com a combinação de: ações do Banco Central subsequentes, enxugando o dinheiro que entrava, formando reservas, comprando mais dólares, e o correspondente impacto fiscal; as outras medidas do governo, com desonerações fiscais e grandes empréstimos subsidiados, enquanto as empresas ficavam cada vez mais estranguladas de dívidas – o resultado foi que, com o tempo, os bancos encareceram o crédito com medo.

Tudo isso se somou e contribuiu para várias forças políticas e sociais levarem a um quadro tácito de instabilidade política. Com o cenário político chegando a um cúmulo de tensão, o governo foi derrubado nos primeiros meses de 2016.

“Agora vai” era a tônica do dito “mercado”, da grande imprensa e de muitos agentes think tanks de direita. As expectativas turbinaram em maio, com todo o aparato promocional fazendo os índices de confiança do consumidor, do empresariado, do mercado, dispararem curva acima durante meses [27].

Epílogo: a trama – como somos golpeados

No fim do mesmo ano, um profissional comum exercitando seu ofício ficou intrigado porque tudo quanto era “indicador de confiança” bombava, mas os indicadores de atividades reais despencavam ao mesmo tempo. O economista descobriu: não tem crédito para alimentar a atividade da economia. Empresas devendo, famílias devendo, espirais de dívidas aumentando. As manchetes: “Crise de crédito retirou um trilhão da economia, o nível hoje é um quarto do que deveria ser, equivalente ao nível de mais de quatro anos atrás” [28].

A falta de um ambiente confiável, já que, devido à crise, não há garantia de que as pessoas poderão pagar as suas contas, provoca juros altos e contratos com exigências onerosas. A procura por parte de consumidores com dinheiro para pagar cai, as dívidas das empresas se amontoam, os bancos ficam com medo, as dívidas das pessoas não diminuem, as receitas dos governos caem. Por isso, mesmo com todos estes meses de forte arrocho só de novembro pra outubro, a dívida pública federal aumentou quase 2%.

As justificativas da política de contingenciamento implementada desde 2015 eram de que a culpa de tudo era do funcionalismo do executivo federal, dos benefícios assistenciais, de número de ministérios, do “pupulismo”.

Mas com a equipe econômica chamada de “dream team”, a dívida pública continua subindo, o déficit aumentando, a atividade econômica caindo. A desculpa reverberada era de que o arrocho ainda estava pouco e tinha que garantir no longo prazo para os investidores ficarem confiantes, injetarem dinheiro nas empresas e abrirem fábricas.

Mas ao mesmo tempo o nível da atividade industrial entrava em queda livre, o volume de produção despencava; receita do varejo se afogava; setor de serviços caiu acima do esperado, e meses seguidos. A queda de investimentos na economia e do consumo das famílias fazia o PIB cair ainda mais [29].

A previsão em maio de 2016 para o crescimento do PIB de 2017 era de 1,8%; o tal “mercado” “racional” dizia 2,1%. Hoje está em 0,40%, e numa perspectiva otimista [30].

Na divulgação do resultado da pesquisa do especialista que constou a crise de crédito, a economista Monica de Bolle, das que mais se destacou no debate público atacando o problema dos déficits primários como estopim da Crise, confessou:

“O diagnóstico sobre as causas da recessão estava errado: o Brasil sofre com uma crise de crédito. Todos estão muito endividados: famílias, empresas, municípios, Estados e, inclusive, a União.”

A reportagem pontua: Ela lembra que o tempo de digestão de altas concentrações de dívidas pode ser longo e penoso. O que acelera o alívio é uma eventual intervenção dos governos. Guardando-se as devidas proporções, Monica lembra que os Estados Unidos viveram um “credit crunch” com o estouro da bolha imobiliária, em 2008. A diferença é que lá os bancos foram arrastados, o que não ocorreu aqui, pelo menos até agora. Para sair dela, o governo americano gastou US$ 850 bilhões para socorrer bancos e empresas, mais US$ 4 trilhões com o “quantitative easing”, programa de aquisição de títulos soberanos lastreados em hipotecas, e derrubou o juro a 0,25% – até a semana passada. A economia americana agora entra nos eixos – oito anos e US$ 5 trilhões depois.

Monica pelo menos era elegante e ponderada nos debates, disposta a fazer concessões. Mas temos o direito de colocar: este erro grotesco por parte dos lobistas da equipe econômica “dream team” no diagnóstico falacioso e míope que fizeram da crise, citando especialmente Mansueto de Almeida, Marcos Lisboa e o ainda mais cínico Samuel Pessoa, não pagarão nada? Não arcarão com nenhum pato?

Se desvela a trama: estes fazem parte do plano arquitetado para impor um programa ideológico de vulnerabilização das pessoas, que jamais receberia respaldo democrático. Então a democracia foi considerada obsoleta e um empecilho.

Este programa apregoa que a população brasileira está acomodada com a noção de direitos sociais, querendo mais do que sua capacidade vale; esta noção deve ser desmontada, para que vulnerabilizados, atomizados, fragilizados, os cidadãos tenham que se dispor ao desespero de aceitar qualquer coisa e intensificar e estender seu trabalho o quanto os donos do capital puderem extorquir.

Se alguém não está disposto a ser boi de piranha, ajamos. Não deixemos dormir estes agentes tenebrosos que odeiam as classes subalternas que os sustentam, que atacam os nossos direitos e que comprometem profundamente o futuro do país.

NOTAS

[1]

• WALLERSTEIN, Emmanuel – The Modern World-System (PDF)
• BRAUDEL, Fernand – Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV – XVIII

O conceito de “economia-mundo” foi cunhado pelo historiador Fernand Braudel, designando uma unidade orgânica que integra em si suas ligações econômicas e sociais, com laços de interdependência relativamente mais fortes do que as áreas externas a ela. É mais extensamente trabalhado na obra “Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV – XVIII”.

[2]

• BAIR, Jeniffer – Commodity Chains in and of the World-System
• Journal of World Systems Research – GLOBAL COMMODITY CHAINS & WORLD INCOME INEQUALITIES: THE MISSING LINK OF INEQUALITY AND THE UPGRADING PARADOX
• JSTOR – Interstate System and Capitalist World-Economy: One Logic or Two?

[3]

• University of California – Contemporary Semiperipheral Development: the Regimes and the Movements
• ARRIGHI, Giovanni – SEMI PERIPHERAL DEVELOPMENT: The Politics of Southern Europe in the Twentieth Century
• LIMA, Pedro Garrido C  – POSICIONAMENTO NO SISTEMA MUNDIAL E SEMIPERIFERIA
• RIBEIRO, Valéria Lopes – A Economia Política dos Sistemas-Mundo e a visão do Sistema Interestatal Capitalista: uma análise comparativa (PDF)

[4]

• Columbia University – Monetary Policy Targets After the Crisis (PDF)

[5]

• BBC Brasil – Entenda a trajetória de valorização do real
• IPEA – Câmbio – Como segurar o dólar? – As consequências do dólar desvalorizado
• SCIELO – A Desigualdade Pode Afetar a Eficiência do Sistema Financeiro? Um Modelo de Equilíbrio em Dois Períodos com Fricções na Intermediação Financeira.

[6]

• Estadão –Taxa de investimento de 2010 foi 2ª maior da década
• IPEA – Investimentos públicos representam 2,5% do PIB
• Portal Brasil – Investimento do setor público passou de 2,7% do PIB para 4,8% do PIB de 2005 a 2010

[7] Que não se deve, de acordo com análises simplórias e desinformadas, meramente a gastos do governo com custeio à base dos empréstimos. No estouro da crise, os bancos gregos tinham liquidez apenas para poucos dias.

Incrível como o pessoal não se põe a perguntar coisas óbvias. Era muitíssimo fácil pra tecnocracia da União Europeia ter flagrado que em 2000 a Grécia maquiara as contas públicas pra entrar no Euro… Como os membros do Eurogrupo, do Banco Central Europeu, não notaram nada? Como depois as agências de classificação de risco nunca falaram nada sobre as contratações gregas? Como alguém faz empréstimos assim para projetos sem rentabilidade?

Todo o sistema financeiro mundial funciona na confiança de que as instituições de avaliação de crédito e de capacidade de pagamento… funcionem! Agora, resta saber como um país de economia fragilizada é aceito numa união monetária, recebendo altos ratings e avaliações e tem sua dívida soberana classificada como risk-weight zero e alguém no universo vai tentar se convencer que não houve nada demais? Nenhum esquema? Não havia ali nenhuma pirâmide de build-up do risco via alavancagem e compensação de receitas? Que técnicos mais conceituados falharam assim?

Preferiram deixar rolar, porque era conivente para a política de comércio exterior alemã, para os bancos espanhóis driblarem o acordo de Basileia II e depois III (que fiaram instrumentos chamados “buffers pró-cíclicos”) cujas bases empíricas repousavam em estudos de caso de problemáticas do sistema financeiro espanhol), e para os bancos desaguarem os títulos podres e os ativos tóxicos.

Vejamos que dentre os empréstimos que mais cresceram para a Grécia, destacam-se os dos bancos espanhóis. Como entra tanto dinheiro para projetos com tão pouca base de rentabilidade? Sendo que o Comitê de Supervisão Bancária de Basileia em 2004 enfatizava sobretudo a necessidade de divulgação de dados e transparência operacional, valendo-se dos instrumentos de comunicação com o mercado onde está atuando. Impossível, a não ser que vemos aí um esquema corrupto. Antes de 2004 os bancos já operavam “credit-default swaps”. Eles driblavam as regulamentações de Basileia, desaguando na falsa liquidez dos ativos tóxicos e títulos podres. Com a eclosão da crise, vindo o acordo Basileia III em 2010 tratando das seguradoras controladas, carries trades que tinham implodido completamente em 2009 com as fugas de capitais, usaram de manobras completamente ilegais em todas as legislações pertinentes para que a Grécia recebesse estes empréstimos como condição para ter melhor margem diante das outras dívidas que o país já tinha, num ciclo vicioso. Por quê? Lembremos a crise que explodiu bem em 2010 também em Luxemburgo. O FMI impôs a Grécia criar o fundo EFSF, recebendo papéis de securities, os quais não passavam de títulos podres, sem valor algum, mas tendo de ser reembolsados pelo governo.

Não é a toa que o país só foi se descapitalizando mais desde 2010, com a economia contraindo-se ainda mais por falta de giro de capital. Depois foi imposta a política de arrocho da Tróika, e, ao contrário do que se dizia, as contas públicas se deterioraram ainda mais pela recessão e desemprego que só se agravaram, e o país perdeu a capacidade total de pagamento.

[8]

• EBC – Governo Dilma foi desafiado por uma das maiores greves do funcionalismo
• UOL – Servidores federais de 18 categorias decidem encerrar greve
• G1 – Servidores públicos federais fazem greves e protestos em todo o país
• ___ –  Governo anuncia corte do ponto de 11,4 mil servidores em greve

[9]

• OIKOS – A desaceleração rudimentar da economia brasileira desde 2011

[10]

• Banco Central – Relatório de Gestão das Reservas Internacionais (PDF)

[11]

• Exame – Empresas brasileiras continuam tendo acesso a empréstimos no exterior
• _______ – As 20 empresas mais endividadas em dólar – e como isso pode arruinar seus lucros
• Administradores.com – Empréstimos estrangeiros para PMEs são operações de alto risco, diz especialista
• Bahia Notícias – AS 10 MAIS ENDIVIDADAS DO IBOVESPA (PDF)
• BBC Brasil – Entenda os fatores que levaram à alta de 5,91% da inflação em 2010
• BAND Notícias – Alimentos e serviços puxam alta da inflação

[12]

• Viaje na Viagem – Seu rico dinheirinho: quanto o real desvalorizou frente cada moeda
• O Globo – Real é a moeda que mais se desvaloriza frente ao dólar em agosto no mundo

[13]

• Estadão – A evolução dos termos de troca se deteriora

[14]

• OEC – Complexidade Econômica Rankings (2012)

[15]

• MIT – The Network Structure of Economic Output* (PDF)
*O trabalho mais comentado a respeito.

[16]

• REVISTA DE POLÍTICA AGRÍCOLA – MUDANÇAS NA PAUTA DE EXPORTAÇÕES E A PRIMARIZAÇÃO DO COMPLEXO SOJA
• Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – Revista de Política Agrícola

[17]

• MINDS – FRAGILIDADE FINANCEIRA, INSTABILIDADE E A CRISE
BRASILEIRA: UMA ABORDAGEM KEYNES-MINSKY-GODLEY (PDF)

[18]

• New Economic Perspectives – Minsky Meets Brazil Part II
• IMF – Corporate Financing Trends and Balance Sheet Risks in Latin America: Taking Stock of “The Bon(d)anza” (PDF)

[19]

• Harvard – What Do State-Owned Development Banks Do? Evidence from BNDES, 2002–09 (PDF)
• IPEA – http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/2922/1/TD_1856.pdf

[20]

• Valor – O aviso foi dado: pedalar faz mal

[21]

• BBC Brasil – Está na hora de rever relação do governo com montadoras?
• Exame – 20 empresas brasileiras com dívida externa bilionária

[22]

• FOLHA – Dilma deu R$ 458 bilhões em desonerações

[23]

• Informador de Opinião – Os Gastos da Lavagem Cerebral e o Embuste sobre o Custeio

[24]

• Tesouro Nacional – Relatório Anual da Dívida Pública Federal 2014: Plano Anual de Financiamento 2015

[25]

• ÍNDICE FIRJAN DE GESTÃO FISCAL 2015 – RECORTE MUNICIPAL ABRANGÊNCIA NACIONAL (PDF)

[26]

• SCIELO – POLÍTICA FISCAL EM PERSPECTIVA: O CICLO DE 16 ANOS (1999-2014)

[27]

• Resenha Eletrônica – Sem endosso da realidade, economia se descola da expectativa

[28]

• Exame – Crise de crédito tirou R$ 1 trilhão da economia

[29]

• G1 – Atividade industrial atinge o nível mais fraco em 6 anos e meio, diz PMI
• O Globo – Setor de serviços cai acima do esperado e tem pior resultado desde 2012
• EBC – IBGE: queda dos investimentos continua a puxar PIB para baixo

[30]

• A Tribuna – Mercado eleva projeções para o PIB brasileiro
• EM – Alta do PIB de 2017 projetada pela pesquisa Focus cai de 0,41% para 0,40%

 

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