Proposta demagógica: Na ONU, Brasil promete reduzir população prisional em 10% até 2019

Na Conectas

Em sabatina da ONU, a ministra de Direitos Humanos Luislinda Valois anunciou compromisso do governo brasileiro com a redução de 10% da população carcerária até 2019. Segundo dados de 2014 do Ministério da Justiça, 622 mil pessoas estão atrás das grades. A fala de Valois aconteceu no terceiro ciclo da RPU (Revisão Periódica Universal) do país no Conselho de Direitos Humanos, em Genebra, na Suíça. A RPU é o principal mecanismo internacional de avaliação da situação de direitos humanos nos Estados-membros da ONU e acontece a cada quatro anos e meio.

Ao todo, 109 países se inscreveram para fazer comentários ao governo. A situação dos presídios foi um dos destaques da sessão. Pelo menos 17 recomendações sobre as condições do sistema prisional e acesso à Justiça foram feitas ao Brasil por países como Estados Unidos, Espanha, Itália, Tailândia, Japão, África do Sul, Suécia, Reino Unido e Dinamarca.

A Alemanha, por exemplo, recomendou que o governo amplie o programa de audiências de custódia através da aprovação do projeto de lei 554/11 e demandou que juízes e promotores que atuam nessas audiências passem por treinamento específico sobre o Protocolo de Istambul, que trata da prevenção e do combate à tortura.

O anúncio do Brasil de redução no número de presos foi visto com ceticismo por parte das organizações da sociedade civil. “Essa promessa não dialoga com o tamanho dos desafios do sistema prisional. O Brasil prende cerca de 40 mil pessoas por ano, ou seja, quando a ‘meta’ anunciada for cumprida, o país já terá prendido outras 120 mil”, afirma Camila Asano, coordenadora do programa de Política Externa da Conectas.

“Da maneira como foi apresentado, o compromisso é demagógico. Não há nada que indique que a política atual esteja mudando. Ao contrário: o Plano Nacional de Segurança apresentado pela ministra Valois como um ‘sucesso’ apenas reforça a militarização que está na base do encarceramento massivo de jovens pobres e negros das periferias”, completa. “Esse debate não pode começar sem a revisão da atual Lei de Drogas, um dos motores do encarceramento.”

A promessa de redução feita por Valois aconteceu em um momento de respostas da delegação brasileira, composta por representantes do Ministério dos Direitos Humanos, do Itamaraty, do Ministério da Educação e outros órgãos do governo federal. Não houve participação de representantes do Ministério da Justiça, pasta responsável pelas políticas indígenas, sistema prisional e segurança pública. A promessa já havia sido mencionada em reunião realizada pela missão diplomática brasileira com entidades da sociedade civil que acompanham o processo em Genebra, entre elas a Conectas.

Ainda na área de segurança pública, a violência policial ganhou destaque. Os Estados Unidos, por exemplo, pediram investigação dos casos de execuções extrajudiciais. A Eslováquia recomendou que a polícia brasileira adote um código de conduta sobre uso da força em protestos.

Ajustes econômicos

Grande parte das intervenções feitas pelas autoridades brasileiras durante a sabatina foi centrada na defesa dos ajustes econômicos e das reformas em discussão no Congresso.

Em seu discurso inicial, Valois afirmou que “o momento impõe sacrifícios no curto prazo”. “O Brasil precisa de grandes reformas vitais para restaurar a credibilidade”, afirmou a ministra. “Aprovamos uma emenda que visa a equilibrar as contas preservando programas sociais”, completou, fazendo referência à Emenda Constitucional 95, que congela os gastos primários federais, inclusive em saúde e educação, por vinte anos.   

Em dezembro de 2016, antes de sua aprovação pelo Congresso, a medida foi duramente criticada pelo relator especial da ONU para extrema pobreza, Philip Alston, para quem o congelamento de gastos nessas áreas afeta principalmente os mais pobres e é “inteiramente incompatível” com as obrigações de direitos humanos do Brasil.

Para Asano, é positivo que ao menos sete países tenham recomendado a ratificação do Protocolo Facultativo à Convenção de Direitos Econômicos Sociais e Culturais, pelo qual qualquer pessoa no Brasil pode denunciar retrocessos em direitos sociais diretamente à ONU.

Povos indígenas

Outros temas que mereceram diversas recomendações por parte dos Estados-membros da ONU foram trabalho escravo e povos indígenas. O governo brasileiro se esforçou para condenar a violência contra essas populações, dada a repercussão internacional do ataque contra os índios Gamela ocorrido no Maranhão no dia 30/4.

“O governo repudia nos termos mais veementes a violência contra os povos indígenas”, afirmou a ministra Valois. “Estamos comprometidos com a realização de consultas de boa-fé com representantes dos povos indígenas para a implementação de projetos que possam afetá-los. O projeto de São Luís, no rio Tapajós, é um caso em questão.”

A avaliação não é compartilhada por organizações da sociedade civil que trabalham com o tema. Pelo menos nove dos 53 relatórios enviados pela sociedade civil para contribuir com a revisão tratam da situação dos povos indígenas, do meio ambiente e da violência no campo.

Em março, trinta entidades comunicaram os especialistas da ONU sobre pelo menos 13 medidas encampadas pelo governo federal que violam compromissos internacionais assumidos pelo país nessa área – entre elas a Proposta de Emenda Constitucional 215, que transfere a responsabilidade pela demarcação de terras ao Congresso. Ao menos 34 recomendações foram feitas nesse âmbito por países como Alemanha, França, Austrália, Áustria e Rússia.

Clique aqui para ler a íntegra das recomendações feitas pelos países inscritos na revisão do Brasil que já foram disponibilizadas no site da ONU.

A revisão

A Revisão Periódica Universal é aplicada a todos os países membros da ONU alternadamente a cada quatro anos e meio. Durante a sabatina, o país revisado recebe recomendações e presta contas do que tem feito para implementar compromissos assumidos em ciclos anteriores e dar resposta a novas ameaças e violações surgidas no período.

O país responde, ainda, ao relatório elaborado pelo Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos e aos informes produzidos pela sociedade civil. Neste ano, 53 relatórios foram enviados à ONU por entidades brasileiras e internacionais para a sabatina do Brasil – uma participação recorde.

O governo brasileiro tem até setembro para definir as recomendações que têm o seu apoio e que devem ser implementadas até o próximo ciclo da revisão. Para Camila Asano, “é fundamental que a sociedade civil participe do processo de acolhimento das recomendações, assim como outros órgãos do próprio Estado, como os conselhos nacionais temáticos e o Legislativo”.

“O principal valor da Revisão Periódica Universal é fazer com que o país assuma compromissos políticos internacionais, cuja implementação será acompanhada e avaliada. Em um momento de claras ameaças de retrocesso em praticamente todas as frentes, é extremamente simbólico perceber que a comunidade internacional está atenta à situação do Brasil e que o governo terá de dar respostas concretas às recomendações que foram feitas, sobretudo nas áreas de sistema prisional, segurança pública, proteção dos povos indígenas, trabalho escravo, direitos sociais como educação e saúde”, completa.

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