“Nossa missão é conservar essas bacias sagradas”, diz Domingos Peas, do povo Achuar do Equador

Depoimento a Fábio Zuker, na 

Tarapoto (Peru) –   “Daí nossa missão em conservar essas bacias sagradas, com nossas culturas, nossos ritos, nossos idiomas. Com nossas formas de administração da selva”. A declaração é de Domingos Peas, liderança indígena Achuar da Amazônia equatoriana, em depoimento exclusivo ao antropólogo e jornalista Fábio Zuker, que viajou a Tarapoto para cobrir VIII Fórum Social Panamazônico (Fospa), que aconteceu entre os dias 28 de abril e 1º de maio.

Zuker fez uma série de reportagens para a agência Amazônia Real sobre o Fospa. Serão publicadas entrevistas com personagens que resistem, de baixo, à destruição de seus territórios e modos de vida na Floresta Amazônica.  

Depoimento de Domingos Peas

Hoje em dia estou trabalhando para a Confederación de Nacionalidades Indígenas de la Amazonia Equatoriana (CONFENIAE), uma organização regional que abarca vinte nacionalidades e povos indígenas da Amazônia equatoriana, e que cobre toda a região da bacia amazônica no Equador.

Como estamos vendo ao longo do Fórum Social Panamazônico, todos os países da bacia amazônica vivem problemas similares. Mas, por sorte, 25% das reservas de floresta do mundo estão sob posse de povos indígenas dessa região. Desde sempre, nós indígenas resistimos contra as petroleiras, contra as mineradoras, contra os madeireiros, e sempre os povos unidos rechaçam as propostas que lhes são impostas, pelo governo da vez.

Mas agora nasce uma nova ideia de resistência. Trata-se de um projeto binacional. Nós equatorianos entendemos que é necessária a criação de um projeto: As Bacias do Rio Napu e do Rio Marañón. Por que se colocou esse nome? Pois todas as bacias hidrográficas do Equador e do Peru, todos os rios, nascem das cordilheiras do Equador, e seguem pela Amazônia peruana. Por tudo isso trata-se de um projeto a ser lançado a nível binacional, e ser fortalecido neste encontro tão grande, pois os noves países da bacia amazônica somos irmãos, de luta e de vida. [O tom quase profético da fala, a indicação de uma mensagem a ser escutada com atenção por aqueles que não cuidam da floresta, vinha acompanhado de um olhar penetrante e determinado. Esse olhar durante toda a entrevista se dirigiu diretamente ao fundo dos meus olhos, sem se esquivar por nem um momento sequer.]

Vocês devem saber que a selva da qual nós cuidamos não foi para finalidades monetárias, mas porque temos uma conexão com nossa madre tierra. Durante toda nossa vida nós cuidamos dela. Todo mundo sabe que o Equador, e na parte onde os rios nascem, é uma das zonas mais importantes de biodiversidade do mundo. É o único que temos nessa vida. Daí nossa missão em conservar essas bacias sagradas, onde está a biodiversidade da selva, e dentro delas estamos os povos indígenas existentes até agora.

Com nossas culturas, nossos ritos, nossos idiomas. Com nossas formas de administração da selva.

Hoje em dia existem 42 concessões para petroleiras explorarem a Amazônia Equatoriana. No sul da Amazônia Equatoriana, de onde eu venho, 22 locais estão sendo concessionados para serem explorados por petrolíferas e mineradoras. O que significa, apenas nessa parte, mais de um milhão de hectares. O tamanho do projeto de preservação do qual estamos falando é de vinte milhões de hectares.

Todos nós conhecemos as mudanças climáticas. Todos nós sabemos que os diferentes problemas que afligem toda a Amazônia não são produzidos por nós, mas sim por empresas multinacionais. Não os estamos criando nós, mas eles, os países industrializados, que poluem, não reduzem suas emissões de poluição, seguem contaminando, e ainda por cima vem destruir o nosso território. Por isso essa posição de conservar, pois essas serras tem uma função essencial no acúmulo das águas que servem todo o continente. É necessário, senão queremos ter uma destruição irreversível, manter, cuidar desta selva.

Daí este projeto, que está sendo discutido precisamente aqui. Claro, para muita gente isso é uma utopia: “É impossível!”, dizem. Mas nada é impossível. Tudo é possível quando as pessoas o querem. Esse não é um projeto de um ou dois anos, mas um projeto de cem anos, para as novas gerações. Temos que capacitar, mudar a ideologia, inclusive dos políticos, dos empresários, dos jovens, das mulheres, das crianças, dos adultos…

Então, esse projeto, para mim, é a única possibilidade que resta em nossas mãos. Temos escutado aqui no Fórum que todos têm os mesmos problemas, por isso temos que nos unir, trabalhar com uma só força, em um só caminho, que serviria muito para humanidade.

Eu conheço a floresta desde que sou criança. Sou da fronteira entre o Peru e o Equador, tenho alguns familiares no Peru, outros no Equador.

Vocês sabem que antes as fronteiras não existiam para os indígenas. São os interesses da colonização que legitimaram que cada Estado criasse as suas fronteiras, para desenvolverem os seus projetos de exploração de interesses alheios.

Pelo que eu sei, na nossa selva, da Amazônia do sul do Equador, ainda estamos intactos. Ainda não entraram as mineradoras, nem os madeireiros. Mas sim, é verdade que agora existem comunidades indígenas cortadas por estradas, ao redor das quais começam cortes de árvores para o comércio. É assim que começam esses projetos, que são de fora. Entretanto, no norte da Amazônia equatoriana, e estamos falando da fronteira entre Colômbia e Equador, se está vivendo um problema muito sério, que são as doenças alheias, desconhecidas. A poluição criou muitos problemas quanto a produção de alimentos, e principalmente doenças. Muitos jovens vão às cidades com cânceres, que até pouco nós não conhecíamos.

Nesta parte norte da Amazônia, temos 40 anos de exploração de mineradoras. Sei também que as organizações, respondendo a tudo o que vem com a colonização estabelecida pelo governo, criaram projetos alternativos, de educação e saúde. Mas que até agora nada foi visto. Diante de toda essa realidade, e apesar dela, se organizaram iniciativas por parte dos povos indígenas, e isso aglutinou a CONFENIAE, que é uma organização grande em toda a Amazônia. Assim estamos trabalhando: protestamos, defendemos, fizemos levantes.

Esse ano são dez anos da presidência de Rafael Correia, que sai agora em maio. Durante o seu governo houve grande divisão dos indígenas e infiltração nas organizações.

Divisão nas organizações, especialmente na direção: na mesma organização, dois presidentes. E isso tem estado debilitando a força organizativa indígena. Mas hoje em dia estamos justamente trabalhando para integrar uma unidade total. Porque a esperança está em nós. Nenhum presidente da república vai trazer uma esperança para os indígenas. Por isso nós temos que fazê-lo. Nossa forma de vida, nosso plano de vida. Isso sim sabemos, e temos que aplicar.

Por isso falamos da unidade com outros países. Nós indígenas nunca tivemos fronteiras. Por isso temos conversado muito aqui sobre como rompê-las. Integrar-nos. Fazer uma aliança estratégica, com outros setores sociais. Não pensar apenas nos indígenas, mas pensar na vida real das pessoas que vivem neste planeta.

O projeto também consiste em deixar de lado tudo o que se refere às mineradoras, pois sabemos que por melhor que seja a tecnologia, sempre haverá poluição. Por isso temos que analisar, comparar, tecnicamente, cientificamente, economicamente. Analisar as opções: que desenvolvimento deu o petróleo? E se preservarmos essa floresta, que desenvolvimento teremos? Temos que comparar. Não falar assim por falar, mas falar tecnicamente, com fundamentos, com argumentos, e forçar isso aos Estados e a nível internacional.

Temos que trabalhar com todos, pois temos que pensar como mudar a nossa forma de pensar.

Tem um mito Achuar, do veado e da tartaruga. Acontece que antes, a tartaruga era uma pessoa. E também o veado era uma pessoa. O veado era, e até hoje é, veloz. E sempre convocava a tartaruga para uma competição de corrida, já que sabia que ia ganhar. E a tartaruga, por saber que o veado era muito rápido, sempre recusava a competição. Um dia disse a tartaruga: “vamos então fazer essa competição”. Decidiu-se o dia. Pacto feito. Mas a tartaruga fez um plano. Como havia uma série de montanhas a subir, falou com outras tartarugas, e as colocou no topo de cada um dos montes. No dia marcado começa a competição: quem chegar primeiro ao topo, grita.

Saem correndo, mas como já havia sido planejado, estava a outra tartaruga, ali na frente, em cima do morro. E enquanto o veado corria, alguns momentos depois, a tartaruga gritava: “Veado, aqui estou!”. E assim por diante, até que o veado correu até o máximo que pôde, e de tanto correr, arrebentou a fenda que tem entre as unhas, e ficou no chão, desmaiado. No final, ganhou a tartaruga.

Não só a força física permite ganhar. No final, o pensamento é o que vale, para alcançar a meta. Como pensar [termina com simpatia, sorriso e entusiasmo mais do que confiantes].

Domingos Peas, liderança indígena Achuar da Amazônia equatoriana. (Foto:Fábio Zuker/Amazônia Real)

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Fábio Zuker.

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