Desabafos Indigenistas: Sobre as mãos e o sentimento do mundo

O Indigenista

Lembrei-me hoje do massacre promovido pela Polícia Militar do Paraná ao MST, em Quedas do Iguaçu, em abril de 2016. Decorriam poucos dias do início do dessa tristeza que assola o país. Na ocasião, almoçando com um colega no mercado municipal de Manaus, comentei que aquelas seriam apenas as primeiras vítimas do estado de exceção que se instalaria no Brasil. Considerando-me exagerada e sensacionalista, ele debochou e sentenciou: isso nada tem a ver com a crise política da República.

Passado pouco mais de um ano, nos vemos novamente de luto pelos dois recentes massacres às populações do campo. Colniza, no Mato Grosso e Viana, no Maranhão, foram palco de brutais ataques contra trabalhadores rurais sem terra e contra indígenas, respectivamente. Não por acaso, os massacres – os três eu diria – ocorreram em estados dominados por elites latifundiárias. O latifúndio, com toda a bestialidade que lhe é peculiar, esbanja intimidade com e no parlamento. Enredado pelos poderes constituídos, e munido da covardia típica dos caudilhos, ataca primeiro os mais vulneráveis, seguro da impunidade e do compadrio.

Ainda não me convenci de que esses fatos não guardam relação com o ferino avanço da bancada ruralista rumo a mais espaços no executivo, no legislativo e no judiciário. Estuprada, a República observa seus algozes no poder.

Não bastassem os grotescos atos de violências físicas, os protagonistas do extermínio da democraia – esses mesmos que bailam em sombrias alcovas com seus questionáveis títulos de propriedade – querem agora destruir as instituições estatais responsáveis por demarcar terras indígenas, quilombolas e por promover a reforma agrária.

Na lista de indiciados da CPI da FUNAI e do INCRA estão inúmeros servidores públicos, cujo dever institucional é zelar pelos direitos de minorias. Insaciáveis, os parlamentares ruralistas ainda se insurgiram contra a ciência antropológica – vejam vocês a que se arvoram esses senhores – e pretendem, ainda, denunciar procuradores da república que tem como dever constitucional intervir em todos os processos judiciais na defesa de direitos e interesses indígenas.

Pudera. Os direitos das minorias lhes ferem a alma. A noção de propriedade, e em especial a propriedade rural em países ex-colônias de exploração, está intimamente ligada ao intrasubjetivo do indivíduo moderno, graças à operação – iniciada com John Locke – de tornar domínio sobre as coisas um instituto jurídico inseparável do domínio de si e da personalidade (dominio rerum e dominio sui). Dessa forma, a propriedade das coisas tornou-se uma espécie de manifestação externa daquela propriedade intrasubjetiva que cada indivíduo tem de si mesmo e que se relaciona com a valorização pessoal.

A investida dos ruralistas sobre as populações do campo e sobre as instituições que os apoiam provém, portanto, de um ódio alimentado pela crença de que a luta dessas minorias é um ataque reto e pessoal à subjetividade de cada um desses latifundiários que, vazios de valores, preenchem suas identidades tão somente com o valor monetário da terra, dia-a-dia esterilizada por banhos de agrotóxicos.

A violência há tantos anos infligida aos indígenas não é apenas a óbvia violência física, mas também a violência simbólica, que se inicia na letra da lei e alcança as interpretações jurisprudenciais. Se a convicção dos indígenas – e da Constituição – é de que a terra sempre foi deles, não há como afastar a violência simbólica de submete-los a um procedimento longo e complexo para autorizar o seu usufruto sobre algo que, de fato, já é deles. Entendem? O procedimento demarcatório, embora necessário no “diálogo” entre sociedades, em si, já representa algo estranho aos indígenas, mesmo quando resulta na demarcação da terra.

Por outro lado, quando seu direito sobre a terra é negado pelo judiciário, como ocorreu recentemente com as terras indígenas Guyraroka, Porquinhos e Limão Verde, a violência ganha facetas ainda mais cruéis. O entrave está justamente no fato – que provém do inegociável ponto de vista do Estado – de que o ordenamento jurídico repousa sobre a noção de propriedade característica da modernidade, absolutamente alheia à cosmologia ameríndia.

A CPI, que agora se revolta e se mostra chocada com as retomadas dos indígenas sobre as terras originárias, encontra respaldo justamente na ciência jurídica que, conservadora, ao menor sinal de ameaça à sua ordem, reage ferozmente para suprimir aquilo que ultrapassou seus limites e passou a ser considerado exercício da violência ilegal – violência essa avaliada apenas sob o ponto de vista ocidental, proprietário, não indígena.

O que alguns operadores do direito, em especial os magistrados, não percebem, é que as manifestações realizadas pelos indígenas, ocupando os territórios de onde um dia foram retirados, são muito mais do que a expressão de sua soberania popular em reação à demora do Estado na solução de conflitos. As retomadas são, antes, manifestações que pretendem exercer a força contra a violência simbólica cometida pelo próprio direito quando, já na letra da lei, os exclui e quando de sua aplicação impõe a eles procedimentos alheios aos seus usos, costumes e tradições – tão propagados pela frágil formalidade da lei morta.

Os algozes da República seguem no poder, agindo na ilegalidade e na inconstitucionalidade, respaldados por uma parcela do judiciário nesse promíscuo manto tecido ao longo do peculiar processo de formação do Estado brasileiro.

Como pensar em reação, se uma CPI inconstitucional, por absoluta falta de delimitação do fato, atuando com a chancela do STF – é preciso que se diga – liderada pelo que há de mais retrógrado no país, busca condenar não apenas os militantes do terceiro setor, mas também cientistas e o que resta de proteção de minorias no interior da máquina estatal? Como reagir, se o ministro da justiça sequer reconhece a identidade indígena daqueles que sofreram grotescas e brutais violências físicas?

Tal qual Hoederer, de Sartre, os ruralistas “tem as mãos sujas até os cotovelos, mergulharam-nas na merda e no sangue”. Aos que pensam como eu, porém, lembremos Drummond, que disse certa feita, ter duas mãos e o sentimento do mundo. Resta-nos o sentimento do mundo, pois as mãos as tivemos decepadas no exato momento em que o indígena Gamela foi brutalmente violentado no Maranhão.

Hoje, diante do desmonte da Funai, das tentativas de criminalização de indígenas e de servidores públicos, diante das anulações pelo judiciário de terras indígenas já declaradas, nos resta apenas o sentimento do mundo. Mais do que atar, nos deceparam as mãos. Como agir diante de tamanhas atrocidades e desmandos? Como reagir às decisões do STF, o guardião da constituição que tal qual Saturno devora seus filhos? Todos que nos importamos com o Outro, com a diferença, com o coexistir, com as minorias, tivemos decepadas as mãos. Estamos todos imóveis diante de um estado de exceção que nunca imaginaríamos viver após tantos avanços conquistados ao longo dos quase trinta anos de Constituição.

Eu sei, Thiago de Mello, que embora faça escuro, precisamos cantar. E mais, precisamos sonhar, pois o sonho ninguém censura. Sonhemos quintanamente pois, que estes que estão aí atravancando nosso caminho, eles passarão e nós, ainda que sem mãos, mas com asas, passarinho.

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