Setores políticos ‘progressistas’ e a compreensão enviesada e utilitarista da periferia. Entrevista especial com Henrique Costa

Por Patricia Fachin, no IHU

 Quando se trata de compreender o modo de vida nas periferias ou falar em nome dos moradores dessas regiões, “alguns setores da esquerda têm um olhar enviesado e até, em certo ponto, utilitarista, como é o caso do próprio PT”. Outros, a exemplo do PSOL, “aparentemente não têm interesse em saber da periferia, ou o que a periferia acha de determinadas pautas, porque eles estão focados em outra classe social, que não está presente na periferia”, diz Henrique Costa à IHU On-Line.

Segundo ele, a massiva votação da periferia paulista em João Doria, na última eleição municipal, despertou a esquerda para o fenômeno da “periferia”, mas as tentativas de compreender como pensam, vivem e se organizam os moradores dos bairros precarizados, alfineta, vieram “com um tanto de atraso”, diz, ao comentar a recente pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo.

Na avaliação de Costa, o “movimento” e as “conclusões” decorrentes da pesquisa são “preocupantes” na medida em que se sugere que a esquerda dialogue ou aceite o discurso do mérito e do empreendedorismo. “Aí está o risco de a esquerda deixar de fazer sentido, ou seja, ela vai modulando seus discursos até perder a sua essência, como tem sido feito há alguns anos. Me parece que o que está se propondo agora é um aprofundamento disso, e aí o discurso deixa de fazer sentido”, pontua.

Em contrapartida aos movimentos e partidos de esquerda existentes, Henrique Costa aposta em outras vias: “podemos olhar para os secundaristas, para o que aconteceu em Junho de 2013, para o MPL”, porque “esses foram movimentos que conseguiram disputar a hegemonia da sociedade para a esquerda em torno de pautas que são caras à própria esquerda, como o serviço público de qualidade, o transporte público gratuito que possibilite que as pessoas se locomovam pela cidade, uma educação melhor etc. Todos esses elementos são pautas que estiveram nas ruas nos últimos anos e nenhum deles foi trazido pelos partidos de esquerda, nenhum foi trazido pela esquerda institucionalizada”, lembra.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone, o pesquisador compara alguns pontos da pesquisa da Fundação Perseu Abramo com suas próprias incursões nas periferias paulistas e comenta os últimos acontecimentos da conjuntura nacional, como a greve geral, os desdobramentos da Lava Jato e as expectativas de parte da esquerda brasileira com o retorno do ex-presidente Lula à presidência em 2018.

Henrique Costa é mestre em Ciência Política e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP. Atualmente cursa doutorado no Programa de Ciências Sociais na Unicamp. Ele estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU nesta quarta-feira, 17-5-2017, participando do ciclo “A reinvenção da política no Brasil contemporâneo”, com a palestra “A reinvenção da política e da esquerda. Um olhar a partir das periferias”.
Confira a entrevista.

IHU On-Line – A pesquisa da Fundação Perseu Abramo com moradores da periferia tem gerado muitas polêmicas tanto à esquerda quanto à direita, as quais tentam fazer leituras da pesquisa. Como você interpreta de modo geral os resultados da pesquisa? Eles correspondem ou são similares aos resultados da sua pesquisa na periferia?

Henrique Costa – A pesquisa que a Fundação fez é muito séria e bem-feita, mas talvez tenha sido realizada um pouco tarde demais. Penso que as conclusões a que eles chegaram são as mesmas de muitas pesquisas que estão sendo feitas na academia — não só minha, mas mais de 15 pesquisas sobre o tema — e que trabalham a periferia sob diversos aspectos, desde jovens ligados ao crime, jovens em situação de cárcere. Com isso, me parece que esta pesquisa da Fundação Perseu Abramo tirou conclusões que são, ao meu ver, de modo geral, acertadas, com as quais eu concordo, mas com um tanto de atraso, pois esse tipo de coisa já está sendo especulado há muito tempo. É uma pena que os partidos e as fundações, que têm algum vínculo partidário, não tenham se atentado para isso antes.

IHU On-Line – Esse atraso se deve a quê? Você diria que a esquerda tinha outro entendimento acerca da periferia?

Henrique Costa – Alguns setores da esquerda têm um olhar da periferia enviesado e até, em certo ponto, utilitarista, como é o caso do próprio PT: se pensarmos 20, 30 anos atrás, o PT tinha um trabalho de base, o qual envolvia uma troca com a própria base. Isso deixou de acontecer. O que vejo é que nesse recorte da esquerda que é majoritário — o petismo — existe uma relação muito viciada com a periferia: tem desde o sujeito que é do movimento social ou sindicalizado, mas que já foi burocratizado e que tem pouca disposição em refazer essas relações, justamente por conta dessa burocratização, e ao mesmo tempo existem alguns outros setores que veem a periferia de uma maneira muito equivocada, isto é, muitos lugares comuns são reafirmados o tempo todo, como se eles pudessem falar em nome da periferia, sendo que esse contato não existe mais; isso é uma coisa decepcionante.
Alguns outros agrupamentos de esquerda, como o PSOL, por exemplo, aparentemente não têm interesse em saber da periferia, ou o que a periferia acha de determinadas pautas, porque eles estão focados em outra classe social, que não está presente na periferia.

IHU On-Line – Quando esse contato do petismo com a periferia deixou de existir?

Henrique Costa – Afirmar quando isso aconteceu é um pouco polêmico. Lincoln Secco, por exemplo, diz que isso deixou de existir nos anos 1990, quando os núcleos de base começaram a ser desarticulados em nome de uma burocratização. Coincidência ou não, isso aconteceu, justamente, com a ascensão do campo majoritário e de figuras como José Dirceu, que centralizaram e burocratizaram extremamente o partido. Isso teve um ganho para o partido, que se organizou para ganhar eleições — e ganhou —, mas o ponto negativo foi esse distanciamento das periferias, o qual acabou transformando a periferia numa “base social” num sentido pejorativo, isto é, aquelas pessoas que vemos de fora, levamos a política até elas, falamos sobre elas, mas não estamos ali para ouvi-las, articular juntos e fazer algo coletivo. Após a eleição de 1989 o PT tomou essa decisão — pelo menos os setores majoritários do PT — de se transformar em uma máquina eleitoral, em um partido com vistas a ganhar eleições; não tem nenhum julgamento moral nisso, é só uma constatação.

IHU On-Line – Então diria que há uma tentativa do PT de olhar novamente para as periferias? Por que há essa retomada agora?

Henrique Costa – Sim, e essa retomada é feita até por uma questão de sobrevivência. A pesquisa da Perseu Abramo, antes de trazer essas revelações, já é, em si, um sintoma dessa crise de identidade do próprio partido, que deixou de fazer essa política e descobriu tarde as consequências disso. Assim, no momento em que praticamente toda a periferia resolve votar no João Doria, é porque tem alguma coisa errada. Infelizmente, essas coisas erradas já estavam sendo apontadas há muito tempo. Então, a iniciativa de fazer essa pesquisa já é, em si, um efeito dessa descoordenação do partido.

Agora eles estão fazendo esse movimento que, pelo que tenho visto e pelas próprias conclusões que foram tiradas da pesquisa, é um pouco preocupante. É quase como se a situação estivesse se invertendo: porque agora a periferia é majoritariamente evangélica, porque tem valores conservadores e porque gosta de empreendedorismo e tem isso como objetivo, a esquerda terá que dialogar com isso, no sentido de “vamos dizer o que as pessoas querem ouvir”. Não sei se essa é a melhor saída.

IHU On-Line – Um dos pontos da pesquisa, o qual gerou muita polêmica, diz respeito aos valores liberais dos moradores da periferia, como o mérito e o individualismo, embora também haja uma ajuda mútua entre os vizinhos. Numa das entrevistas que nos concedeu, você afirmou que o discurso do mérito foi inclusive incentivado pelo lulismo. Você evidencia esse discurso na periferia? Ele sempre existiu ou é fruto do lulismo?

Henrique Costa – Esse discurso não surgiu do nada, ele vem sendo construído há muitos anos e, em certa medida, o Lula é resultado dele. Uma das coisas que a pesquisa aponta é que as figuras que os pesquisados indicam com admiração são o Lula, o João Doria e o Silvio Santos, que são figuras que na visão dessas pessoas são empreendedores, pessoas que saíram de baixo, trabalharam persistentemente e conseguiram subir na vida. Logo, quando vemos figuras como o Lula, o João Doria e o Silvio Santos, que, aparentemente, são tão díspares, dentro da mesma chave de interpretação, se acendeu a luz amarela para o PT. Mas muitas pesquisas já apontavam isso, inclusive a minha.

O Lula ainda é muito admirado: mesmo com todas as denúncias e com todas as suspeitas que o cercam, as pessoas entendem que o Lula é um sujeito que subiu e venceu na vida pelo trabalho. Essas ideias já estavam nas periferias, estavam se desenvolvendo e agora parece que chegaram a um ponto nevrálgico, onde não existe um discurso contrário. Agora, não concordo com a afirmação de que a periferia é liberal, porque dizer que as pessoas são liberais implicaria num sistema de crenças que não está arranjado nesse sentido.

No entanto, as pessoas entendem que o trabalho, a obstinação e o individualismo, o “cada um por si”, é cada vez mais necessário na medida em que o Estado está cada vez mais ausente. Então, as pessoas precisam se voltar cada vez mais para si mesmas, porque as instituições ou mesmo os partidos estão deixando de existir nesses espaços. Nesse sentido, as pessoas estão entendendo, mesmo antes de as reformas acontecerem, o que está por vir. Portanto, viver cada um por si é uma decisão estratégica e um tanto natural; é uma estratégia de sobrevivência mesmo.

IHU On-Line – Como a esquerda deve lidar com valores como o mérito e o individualismo? Alguns teóricos internacionais não veem problema no fato de a esquerda valorizar o individualismo, embora majoritariamente a esquerda sempre tenha sustentado o discurso oposto, da coletividade. Esses valores devem ser vistos como opostos aos da coletividade ou não?

Henrique Costa – Jessé de Souza e alguns intelectuais já defendiam isso há algum tempo; o Jessé fala dos batalhadores como empreendedores e de como não se deve criminalizar essa postura deles. Acho que não temos de criminalizá-la, pois vivemos nesse mundo, ele é capitalista e as pessoas precisam sobreviver, mas a esquerda precisaria dar alguma alternativa a essa visão, e a esquerda deixou de dar alternativas. Se a esquerda — e esse é o grande calcanhar de Aquiles — passa a fazer o mesmo discurso que outros partidos fazem, muito mais convencionais, para que ela serve, para que ela existe? É só para disputar eleições? É só para disputar o poder? O Partido Socialista francês fez exatamente isso e vimos no que deu: o partido está em frangalhos.

A recente eleição da França tem elementos que podem ser comparados e observados para entendermos o caso brasileiro. Veja o discurso da Marine Le Pen: ela falava de coisas que eram interessantes para a classe trabalhadora francesa; por exemplo, quando os donos de empresas diziam que as fábricas iriam ser fechadas, ela dizia que iria nacionalizar as empresas e com isso dizia que a fábrica não fecharia, ficaria na França. Esse elemento do discurso de defesa da casse trabalhadora tradicional é muito significativo e era um elemento de esquerda. O problema é que a esquerda deixou de fazer esse discurso e a direita se apropriou dele de maneira oportunista e eleitoreira. Esse é um discurso que se alguém deixa de fazer, outro alguém vai lá e toma; não existe vácuo. Esse discurso é feito para pessoas como o personagem do filme “Eu, Daniel Blake”, ou seja, não são necessariamente pessoas racistas, xenófobas, mas pessoas que estão aprisionadas em um sistema kafkiano, onde não conseguem trabalhar, não conseguem acessar o seguro-desemprego, não conseguem nada. Pessoas que vivem em situações como essas, que a partir do desespero tomam decisões drásticas como a que foi tomada na França, por quem votou em Le Pen, ou mesmo em quem votou em Trump.

Dizer que a esquerda hoje tem que fazer esse discurso, é um pouco idealista, e ao mesmo tempo a esquerda está olhando para outro lado. Me parece que a pesquisa da Fundação Perseu Abramo sugere isto: aderir a um discurso do mérito, aceitar que as pessoas gostam do empreendedorismo, que elas são evangélicas e que a esquerda tem que dialogar com essas pessoas nesses termos. Mas aí está o risco de a esquerda deixar de fazer sentido, ou seja, ela vai modulando seus discursos até perder a sua essência, como tem sido feito há alguns anos. Me parece que o que está se propondo agora é um aprofundamento disso, e aí o discurso deixa de fazer sentido.

IHU On-Line – Mas, de outro lado, o discurso da esquerda está desacreditado. Como seria possível a esquerda retomar seu papel junto à sociedade civil?

Henrique Costa – O problema é que a esquerda desmobilizou suas pautas ao mesmo tempo em que se desmoralizou em algum sentido. Quando se dilui no meio da geleia geral dos partidos, é preciso enfrentar as consequências disso. Como o PT vai propor algum tipo de transformação social de qualquer natureza? Como o PT fará isso hoje em dia com os nomes que tem? Por mais que o PT tenha conseguido sair um pouco do foco e da linha de fogo da Lava Jato, parece evidente que o partido não tem mais o que dizer, e levou a esquerda com ele. Se observarmos as eleições do ano passado, o próprio PSOL teve menos votos do que na eleição anterior. Então, a esquerda está correndo atrás do próprio rastro.

Estou tentando evitar ser muito catastrofista e pessimista, mas, pessoalmente, não vejo saídas dentro dessas organizações que estão postas aí, por mais que o PT tenha toda a história que tem, tenha o apoio dos movimentos sociais etc. Mesmo com a história do depoimento do Lula, muitos movimentos estão articulados em torno disso. É evidente que o partido não deixou de existir, não morreu e não acho que vai morrer, mas a questão é: o PT vai continuar existindo para quê?

Agora, algumas coisas estão acontecendo fora deste mundo: podemos olhar para os secundaristas, para o que aconteceu em Junho de 2013, para o MPL. Esses foram movimentos que conseguiram disputar a hegemonia da sociedade para a esquerda em torno de pautas que são caras à própria esquerda, como o serviço público de qualidade, o transporte público gratuito que possibilite que as pessoas se locomovam pela cidade, uma educação melhor etc. Todos esses elementos são pautas que estiveram nas ruas nos últimos anos e nenhum deles foi trazido pelos partidos de esquerda, nenhum foi trazido pela esquerda institucionalizada. A esquerda partidária poderia ter, inclusive, se agregado a essas lutas, mas preferiu não o fazer. Pelo contrário, viu nas manifestações um concorrente, o que é típico de burocracias partidárias.

IHU On-Line – Um dos pontos da sua pesquisa é como o empreendedorismo é visto pelos moradores da periferia. O que tem constatado?

Henrique Costa – O empreendedorismo está em uma chave muito parecida com o que estudei sobre o Prouni, por exemplo. Uma tese que trabalho na minha pesquisa é a chamada “fuga para frente”, ou seja, você está em uma determinada situação e tenta melhorá-la, mas para isso você faz uma faculdade, consegue o diploma, mas precisa de outro certificado, de outro, e assim sucessivamente. Com isso você vai fugindo da atual situação para um lugar que não sabe exatamente qual é, ou seja, é uma luta sem foco pela sobrevivência, porque as pessoas não têm mais condições de estabelecer projetos de longo prazo. Minha tese é de que isso é recorrente de uma reestruturação produtiva do momento do capitalismo, onde o trabalho é flexível, onde todas as relações acabam sendo flexibilizadas, e isso impede que as pessoas tenham projetos de longo prazo: elas não conseguem pensar além do próximo emprego, do próximo curso ou do próximo certificado. Especialmente os mais jovens já estão vivendo nesse espírito.

Os pais desses jovens, apesar de terem tido um emprego precarizado, em alguma medida tinham condições de estabelecer um projeto minimamente estável, e conseguiam ter alguma dimensão de onde estariam em alguns anos, mesmo que fosse exatamente no mesmo lugar. Hoje em dia isso não ocorre mais. Os mais jovens já nasceram e estão vivendo nesse mundo precarizado, e a cabeça deles já funciona com esses parâmetros, com essa necessidade de estabelecer metas de curto prazo. E o empreendedorismo, no fim das contas, é isto: o sujeito não quer ter patrão, não quer ter chefe, quer poder trabalhar de casa, quer flexibilidade e tudo mais. Esse é um discurso fácil de ser comprado, basta analisar qualquer motorista do Uber ou motoboy que trabalha com aplicativo. Esses motoristas têm essa ideia de que, ao não terem chefe, estão fazendo algo positivo para suas vidas, mesmo que estejam trabalhando o dobro e ganhando menos, porque essa ideia já foi introjetada.

Além disso, as pessoas estão sufocadas com o trabalho, estão trabalhando cada vez mais, em condições cada vez piores e associam essa precarização a ter um emprego com um patrão que “manda trabalhar feito um louco”, que não deixa ir ao banheiro etc. Por conta disso, pensam que é melhor trabalhar como motorista do Uber. Não dá para dizer que a situação anterior era positiva, mas não dá para dizer que a situação atual é melhor: ela é ruim do mesmo jeito, é precarização do mesmo jeito, as pessoas estão se “esfolando” cada vez mais, tendo ou não patrão. Algumas pessoas sabem dialogar com esse espírito do tempo, outras, não. João Doria soube, e outros personagens da cena política não estão sabendo.

IHU On-Line – Essa compreensão do empreendedorismo tem causado algum impacto nas reivindicações da Reforma Trabalhista e da Reforma da Previdência? Diante da postura de aderirem ao empreendedorismo, essas pessoas manifestam alguma preocupação com essas pautas?

Henrique Costa – No caso da Reforma da Previdência, há um repúdio muito grande e isso é natural, porque se trata de uma reforma absurda. Porém, é difícil ver jovens precarizados numa manifestação contra a Reforma da Previdência. Eu fui à última greve geral, de 28-04-2017, em São Paulo, e observei que o perfil dos manifestantes era de classe média, que tem um perfil de ir à rua, além dos militantes, obviamente. O que vi em Junho de 2013 era algo diferente, como pessoas de outras classes sociais, como o jovem trabalhador precarizado nas ruas. Para esses jovens, a situação de precarização é tão ruim que é difícil para eles imaginar que a situação vai ficar ainda pior.

Tem sido muito difícil para a esquerda organizada e para os sindicatos mobilizar esses jovens para irem às ruas. Na verdade isso acontece porque partidos e sindicatos estão preocupados somente com a eleição do ano que vem. É muito curioso como algumas figuras públicas, como o Lula, por exemplo, se manifestam muito pouco sobre a reforma. A impressão que dá é que ele está esperando a reforma passar para voltar no próximo ano, quando a reforma tiver sido feita, e para colocar, inclusive, o ajuste fiscal na conta do Temer. Mas o fato é que quem ganhar a eleição no ano que vem vai continuar o ajuste fiscal de qualquer forma. Eu ouvi relatos de que a própria greve geral foi jogada bastante para frente, justamente porque não se tinha tanto interesse assim em mobilizar as pessoas em torno dessa pauta.

IHU On-Line – O que você entende por “racionalidade gerencial” das políticas e como isso aconteceu durante o lulismo?

Henrique Costa – O lulismo surfou nessa onda. Essa ideia de racionalidade gerencial, conceito que a Maria Celia Paoli desenvolveu, diz respeito ao fato de como não se faz propriamente políticas, mas se gerencia as populações. Existem duas maneiras de gerir as populações: primeiro, através das políticas públicas — e durante o lulismo isso foi feito de maneira competente porque havia dinheiro das commodities; a segunda forma é a policial, ou seja, populações são geridas pela força policial, como foi feito no Rio de Janeiro com as Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs.

Essa racionalidade gerencial não foi inventada pelo PT; já existe desde os anos 80, seguindo orientações de documentos da ONU e do Banco Mundial. Além disso, antes de o PT chegar ao governo federal, a própria Marta Suplicy já desenvolvia política pública em São Paulo, em bairros específicos. Esse tipo de política pública lida com uma população por um tempo determinado, ou seja, um sujeito entra num programa de política pública, participa dele durante quatro anos e depois sai. Agora, se ele sai para se tornar empreendedor ou para voltar para a mesma situação que estava antes, não é avaliado.

Quando o PT chegou ao poder no governo federal, existia o Programa Fome Zero, o qual foi substituído pelo Programa Bolsa Família. O Programa Fome Zero era muito mais abrangente e tocava em aspectos do desenvolvimento social, mas nenhum programa do lulismo tocou nessa questão. O Programa Bolsa Família permitiu a renda condicionada, mas isso o Banco Mundial preconiza desde sempre. O PT surfou nessa onda e teve a sorte e a competência de fazer o país crescer nesses anos para poder desenvolver essas políticas. Agora, o problema é que depois de ter feito esse movimento por mais de 13 anos, como deixar de fazer isso e passar a fazer outra coisa? Me parece que uma alternativa a esse modelo é improvável e, inclusive, existe um consenso dentro do PT de que se eles voltarem para o governo, eles irão adotar exatamente essa mesma política, inclusive voltarão a fazer um governo de coalizão. Não tenho dúvida de que, se o Lula ganhar a eleição, no dia seguinte ele estará fazendo alianças com o PMDB, o PP, a Odebrecht e o Bradesco, porque o partido acredita nessa fórmula.

IHU On-Line – Mas mesmo assim boa parte da esquerda considera Lula como a única alternativa à esquerda para a eleição de 2018. Como vê essa possibilidade e o que seria uma alternativa à esquerda à candidatura do ex-presidente?

Henrique Costa – Essa candidatura do Lula é a velha ideia de tratar algo como dado, ou seja, a questão já está dada e se você discorda dela, azar o seu. O PT nunca promoveu um debate na esquerda sobre isso. Sempre tem alguém que solta um fogo de artifício, falando de uma possível candidatura do Ciro Gomes ou do Haddad, mas isso não é sério. O fato é que o PT não tem nomes alternativos ao Lula porque o próprio Lula nunca deixou existirem outros nomes, com exceção da Dilma. Isso porque ele pessoalmente fez dela candidata sem necessariamente ter o aval do partido, porque nunca teve e nunca precisou ter.

Claro que ter uma candidatura que será conduzida dessa forma, com a faca no pescoço, para quem não é necessariamente partidário do PT, é muito ruim e mostra qual é o caminho que a esquerda brasileira tomou. O Lula é visto como uma espécie de figura messiânica, que coloca uma candidatura à revelia de qualquer outro ator social e ninguém questiona isso, porque o Lula é uma “grande figura”.

Se observarmos as intenções de voto que as pesquisas indicam em relação a uma possível candidatura do Lula, me parece que as pessoas estão fazendo um cálculo muito materialista de que durante os governos do Lula elas tiveram uma situação econômica mais confortável do que agora. Assim, se ele voltasse à presidência, a situação econômica voltaria a ser como era antes, o que é mentira, porque a situação econômica do Brasil e a situação em que o país está situado no mercado mundial é muito diferente do que era antes.

Então, não ter nenhuma alternativa ao Lula é uma falta de perspectiva da esquerda. Ciro Gomes não é uma alternativa. Não sei quem acha que Ciro Gomes é de esquerda, mas de todo modo, essa possibilidade seria tão ruim quanto a de uma candidatura do Lula.

IHU On-Line – Que avaliação faz do episódio do depoimento do ex-presidente na Lava Jato e quais são as implicações políticas disso?

Henrique Costa – Considerando toda a mobilização feita em torno do depoimento, me parece claro que os movimentos sociais estão nessa canoa e não vão sair dela. É claro que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST tem suas tensões e ambiguidades, e o [João Pedro] Stédile, por mais que seja uma figura de relevo dentro do movimento, não é unanimidade; nesse sentido, a figura do Lula consegue agregar as pessoas no movimento. A ideia de que o movimento social não tenha outra perspectiva além dessa, vem do fato de que o MST e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST, durante os governos do PT, viraram gestores de políticas públicas e deixaram de ser movimentos sociais em boa medida. Embora ainda tenha uma certa base que quer outro projeto, esse lado tem diminuído, dado esse papel assumido pelos movimentos, de se tornarem gestores das políticas públicas, gestores de assentamento.

Os governos Dilma e Lula tinham projetos sociais que eram desenvolvidos através do MST, e eles desenvolviam essas políticas. Nesse sentido, me parece que manter essa parceria com o governo federal e com o PT no poder é essencial para a sobrevivência desses movimentos. Então, eles não vão deixar de apoiar o Lula. Também me parece claro que o MST, em especial, tem muito claro que a sua sobrevivência depende, em grande medida, da existência de um governo do PT. Não existindo um governo do PT, eles acreditam que podem deixar de existir. É um raciocínio que não é de todo ilógico.

Lula tem sido cercado de uma grande espetacularização que visa especialmente não entrar nos temas que são essenciais para a questão da investigação. Tanto o modo como o petismo está tratando a questão da Lava Jato, como a postura dos investigadores e do poder da lei, estão sendo cercados de uma espetacularização que tem em vista 2018. Isso acaba tirando a seriedade da questão na medida em que — ao que parece — a questão em jogo deixa de ser se Lula cometeu um crime ou não, se fez lobby com as empreiteiras ou não fez; tudo parte dessa grande espetacularização que virou a política brasileira.

IHU On-Line – Muitos percebem equívocos na Lava Jato, alegam que ela extrapola o princípio de presunção de inocência ao manter algumas pessoas presas, embora o juiz Sérgio Moro contra-argumente que as prisões são necessárias para não atrapalharem a investigação. Como você está analisando o desenvolvimento da Operação de modo geral, visto a concessão de liberdade para Dirceu e Eike Batista recentemente e a possibilidade de uma delação de Palocci?

Henrique Costa – Um dos argumentos mais fortes que o PT tinha, perdeu força: o de que a Lava Jato era destinada a destruir o partido. Na medida em que políticos de todos os partidos estão envolvidos, fica difícil contra-argumentar que o projeto da Lava Jato tem essa finalidade. Pode-se dizer que a Lava Jato ajudou a derrubar Dilma. Não dá para negar que Dilma foi afetada por esse fato, apesar de que não dá para dizer que ela caiu somente por conta disso. Para mim, ela caiu por causa da crise econômica.

De fato, a Lava Jato tem suas ambiguidades, mas na verdade essa conversa é um tanto burocrática e não é feita em outros âmbitos. Por exemplo, discute-se agora a presunção de inocência, se prisão é provisória, e se diz que a pessoa não pode ser presa porque não foi julgada etc. Entretanto, os dados mostram que, dos aproximadamente 500 mil presos no Brasil, pelo menos uns 200 mil desses são presos provisórios e ninguém está preocupado com eles. Então, me parece que tem um certo oportunismo nessa discussão, porque se é para liberar um, então tem que liberar todos os outros que estão ocupando a cadeia ilegalmente.

As pessoas tendem a se sensibilizar com isso. Por mais que o PT queira se fazer de vítima, a população tende a vê-lo como mais um elemento da política viciada brasileira, ou seja, o PT perdeu a sua autoridade moral para se colocar à parte da corrupção, do setor podre da política. As pessoas veem o PT como parte dessa política e o PT de fato fez parte dessa política; essa é a questão, e isso não é uma coisa que o partido possa negar. O PT geriu esse sistema por 13 anos e foi parte do arranjo institucional que deu na Operação Lava Jato. Por todas as questões que possam ser postas à Lava Jato, não se pode negar que várias das coisas que a Operação aponta, de fato, acontecem: ninguém nega, por exemplo, que fez caixa 2.

Veja o caso do Lula: o caso do Lula está sendo atropelado? Foi provado algo contra o Lula? Ele merece ser preso? Não se provou, mas não dá para negar que o Lula fez lobby com as empreiteiras, ou seja, ele tinha uma relação muito questionável com esses setores e isso está provado e não dá para negar. Ele mesmo admite isso por outras vias. Ele recebeu favores e tenta dar uma legitimidade republicana a isso, o que é completamente absurdo. Então, por mais que o Lula não possa ser incriminado efetivamente, está claro que tanto o Lula quanto o PT estão envolvidos. Se o [Antonio] Palocci estiver disposto a fazer a delação, ela será significativa porque ele poderá entregar um esquema.

Inclusive, essa possibilidade de manter o Lula como o único candidato da esquerda é parte do diagnóstico de que o Lula é o único candidato capaz de sobreviver ao massacre da política, tanto que alguns candidatos do PT, do PMDB e do PSDB não têm como se manter na disputa. As pessoas podem achar que ele é eventualmente corrupto, se isso for provado, mas ele é o cara que conseguiu resolver a vida de muito gente, fez política pública. Ou seja, as pessoas votam no Lula apesar da corrupção. Mas ninguém mais além do Lula tem esse capital político e nesse sentido me parece óbvio que as pessoas olhem para o Lula com tanta euforia.

Mas o debate que a esquerda não faz é o da corrupção, justamente porque esse é visto como um debate da direita. Quando tentamos fazer esse debate na esquerda, somos chamados de udenistas. A corrupção está entranhada no Estado e o capitalismo depende disso, porque o desenvolvimento do capitalismo no país depende dessa corrupção. Se esse debate não for feito, fica difícil fazer julgamentos além dele.

IHU On-Line – Que temas são urgentes e deveriam estar presentes na reinvenção da política ou da esquerda, considerando a situação das periferias brasileiras?

Henrique Costa – Não adianta nem iniciar a discussão desse assunto se não se olhar para a periferia e não se entender quais são as condições de reprodução da periferia, quais as condições de trabalho. As pessoas não estão indo para as igrejas evangélicas por causa dos dogmas, mas porque elas estão cada vez mais encalacradas em suas vidas materiais. Nesse sentido, elas procuram nessas igrejas um refúgio e um senso de comunidade, de ajuda e de solidariedade que deixou de existir em outros espaços. A esquerda tem que ter noção dessa dimensão.

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