Triste fim da imprensa? O embate entre Lula e Moro “em revista”

O modelo de negócio no qual estão assentadas Istoé e Veja agoniza em virtude das receitas que minguam. Temos contraditoriamente, por um lado, uma queda vertiginosa das tiragens de jornais e revistas e, por outro, um aumento exponencial de conteúdos jornalísticos nas plataformas digitais. Donde podemos concluir que a crise é desse modelo de negócio que estruturou a imprensa monopolista e não do jornalismo. Faz-se urgente o exercício do jornalismo para além das fronteiras de um negócio que, para manter-se a todo o custo, atenta contra os princípios da própria imprensa.

Por Rosane Borges, no blog da Boitempo

Que crise? Que jornalismo?

A partir da reelaboração de um verso de autoria de seu conterrâneo, o poeta peruano César Vallejo, Mario Vargas Llosa passou boa parte de sua vida preso a ideia de que “ler um bom jornal é a melhor maneira de começar o dia”. Essa prática costumeira do Prêmio Nobel de Literatura foi abalada recentemente quando esteve por quase uma semana em Salzburgo, Áustria, aonde a imprensa hispano falante não chega.

O laureado escritor tentou entender exatamente o que havia acontecido na Síria de Bashar al-Assad, em virtude da divulgação, pela imprensa, do uso de armas químicas contra cidadãos inofensivos. Segundo ele, consultou jornais em inglês, italiano e francês sem conseguir obter informações claras e abalizadas. Diante a incapacidade de os jornais noticiarem com precisão e sem prismas ideológicos, desabafa Vargas Llosa:

“Ler vários jornais é a única maneira de saber o quão pouco sérias às vezes são as informações, condicionadas como estão pela ideologia, os medos e preconceitos dos proprietários dos veículos, dos jornalistas e correspondentes. Todo mundo reconhece a importância central que a imprensa tem em uma sociedade democrática, mas provavelmente poucas pessoas alertam que a objetividade informativa existe apenas em raras ocasiões e que, na maior parte das vezes, a informação tem lastro no subjetivismo, pois as convicções políticas, religiosas, culturais, étnicas etc., dos informadores frequentemente deformam sutilmente os fatos que descrevem até mergulhar o leitor em uma grande confusão, ao extremo de às vezes parecer que os noticiários e jornais passaram a ser, também, romances e contos, expressões de ficção.”

“Nada é tão ruim que não pode piorar”, diríamos para Vargas Llosa caso a imprensa brasileira fosse posta em perspectiva. As recentes capas de Veja e Istoé, destinadas a uma cruzada messiânica que em nada se aparenta com o jornalismo, aprofundam o drama relatado pelo escritor peruano. Na semana do 7 de maio, as edições das revistas foram vertebradas pelo depoimento do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva ao juiz Sergio Moro, ocorrido no dia 10, na “República de Curitiba”, há que se frisar.

Mais anti-jornalismo impossível. Com capas muito semelhantes, como dá para notar (aliás, técnica de padronização que vem de longa data), os dois semanários lançam mão de recursos semióticos iconográficos, de matrizes arquetípicas assentadas em um imaginário que se quer catalisador de processos de identificação cultural, portadores de visões de mundo universalizantes (o herói e o anti-herói). Na capa da Istoé, os dois antagonistas são caracterizados de boxeadores (Moro, de bermuda amarela e azul [cores que não só compõem a bandeira nacional, mas também as do PSDB] e Lula de vermelho [as cores do PT, do comunismo, do anti-patriotismo].

Na capa da Veja os adversários personificam a luta livre mexicana, onde tradicionalmente os lutadores se apresentam mascarados com vestes de super-heróis (animais, deuses astecas e heróis antigos). Novamente aqui as cores que preenchem as máscaras não se alteram na palheta de possibilidades.

Mas como assim, produção? Juiz e acusado concebidos como antagonistas, adversários? Pode isso, Arnaldo? O manual básico do juridiquês não nos ensinou, aos pobres mortais, que juízes não jogam, não lutam, não combatem, mas arbitram? Não cabe ao Ministério Público acusar e à defesa refutar as acusações? Repito: mais anti-jornalismo impossível.

Sabe-se que essa troca de estações que Veja e Istoé promovem se alimenta de algo que já virou tradição no nosso país polarizado, conflagrado entre forças progressistas e reacionárias: o judiciário vem sendo convocado por parte dessas forças para assumir um papel que não lhe cabe. Não é de hoje que Sergio Moro é aclamado herói e desenhado como mito. Ao atribuir a Moro o papel de combatente, de antagonista, a imprensa ocupa o vácuo deixado por ele e se auto delega o papel de juiz. As capas das duas revistas desta semana (14.05) parecem disso dar testemunho.

Mito, imaginário, crenças: caminhão tanque nas labaredas que incendeiam o país

A propósito, para destruir o mito Lula, que condensa traços do sebastianismo, há que se construir outro mito com envergadura. Num país em que as discussões e soluções políticas percorrem o leito do maniqueísmo, o confronto entre Lula e Moro é o confronto entre bem X mal, coxinhas X petralhas/mortadelas, vitimistas X self-made man, velho X novo, atraso nordestino do “Bolsa Família (como se o programa se destinasse apenas a esta região) X avanço empreendedorista sulista, moralidade X imoralidade.

Algumas tintas já foram gastas para tipificar o herói que Moro encarna. Há quem diga que ele não se vincula ao herói clássico, investido de caráter épico ou clássico. Para a tradição literária, o herói épico atua numa posição intermediária entre os deuses e os homens, em geral filho de um deus e uma mortal – Hércules, Perseu), e carrega atributos supervalorizados: fé, coragem, determinação, renúncia (martírio), paciência etc. Dotado de ideias nobres, é capaz de transpor problemas de dimensões épicas. Tampouco, insistem outros, o juiz de Curitiba pode ser associado ao herói trágico, aquele que experimenta uma situação de infortúnio por um erro de julgamento. Vivendo entre o crime e o castigo, avalia o seu declínio com dignidade e se emancipa com ele.

Moro estaria mais próximo do super-herói amoral das HQs e adaptações cinematográficas porque posicionado acima do Bem e do Mal em nome da Justiça e da Verdade. Como nas histórias fantasiosas, ao Super-Herói é até permitido destruir o mundo, desde que derrote vilões que são uma ameaça ao bem-estar e ao equilíbrio coletivo (paralelos não cansam de ser feitos: segundo o cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, William Nozaki, “a Operação Lava Jato até aqui gerou prejuízos econômicos três vezes superiores àquilo que ela avalia ter sido desviado com corrupção. Entre 2015 e 2016 a Operação foi a responsável pela perda direta e indireta de cerca de 3,5 milhões de postos de trabalho. Sem falar nos prejuízos geopolíticos com a destruição da cadeia produtiva do petróleo, naval e nuclear”).

Jornalismo: forma de conhecimento imprescindível

Ao tonificar essa ideia da luta entre bem e mal, que deita raízes em estruturas mitológicas, as revistas Istoé e Veja fazem tudo, menos jornalismo. Todos sabemos que não é de agora que a imprensa brasileira arreda de sua função primordial; quase sempre tendenciosa, protagonizou ao longo de sua história episódios lamentáveis em que tomou partido, orientou, recortou, selecionou, excluiu e, dessa forma, construiu consenso. Um consenso enviesado por decisões editoriais que escondem decisões outras.

Ainda assim, os desvios do presente não deixam de chamar atenção porque em algumas situações, como nos casos em tela, eles permitem ver um jornalismo cada vez mais desobrigado em se fingir de jornalismo; cada vez mais liberado a pactuar com opiniões gestadas pelos milhões de “eus” anônimos nas redes sociais que consideram suas crenças autossuficientes para gerar uma visão de mundo.

Já escrevi aqui no Blog da Boitempo que é “de trivial evidência que a antes chamada ‘grande imprensa’ perdeu, faz tempo, o status de esfera mediadora central, papel desempenhado sem grandes sobressaltos ao longo do século XX. […] Somos testemunhas de que o sistema midiático passou por substantiva mudança de paradigma: da lógica da radiodifusão e de distribuição, que predominou durante todo o século passado, migramos para uma fase em que o controle sobre a produção e a distribuição já não dependem dos grandes conglomerados, permitindo o engajamento efetivo das audiências. Os paradigmas da conexão e da circulação, forjados pelo novo estágio do capitalismo, ganharam aderência irreversível”.

Este modelo de negócio no qual estão assentadas Istoé e Veja agoniza em virtude das receitas que minguam (seja da publicidade, seja de circulação). Temos contraditoriamente, por um lado, uma queda vertiginosa das tiragens de jornais e revistas e, por outro, um aumento exponencial de conteúdos jornalísticos nas plataformas digitais. Donde podemos concluir que a crise é desse modelo de negócio que estruturou a imprensa monopolista e não do jornalismo. Faz-se urgente o exercício do jornalismo para além das fronteiras de um negócio que, para manter-se a todo o custo, atenta contra os princípios da própria imprensa.

Como se vê, é preciso que as instituições ocupem seu lugar e função (refiro-me fundamentalmente ao jornalismo e ao judiciário) sob pena de a famosa frase de Tim Maia, quase um aforismo, se converter em profecia: “Este país não pode dar certo. Aqui prostituta se apaixona, cafetão tem ciúme, traficante se vicia e pobre é de direita”. Peço permissão para acrescentar: não pode dar certo porque juiz é adversário/antagonista/combatente no jogo contra a corrupção e a imprensa, logo ela, é quem arbitra, nos dando o veredito final de um jogo de interesses subterrâneos e insondáveis, do qual ela, sim, faz parte.

Rosane Borges é pós-doutoranda em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP, professora do Celacc-USP (Centro de Estudos Latino-Americanos em Comunicação e Cultura), professora da Faculdade Paulus de Comunicação e Tecnologia e da Universidade São Judas Tadeu. Autora de diversos livros, entre eles Esboços de um tempo presente (2016), Mídia e racismo (2012) e Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro. Rosane Borges também assina um artigo sobre “Feminismos negros e marxismo” no dossiê “Marxismo e a questão racial” coordenado por Silvio Luiz de Almeida no número 27 da revista da Boitempo, a Margem Esquerda. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente.

Comments (1)

  1. nenhuma novidade, o que o lavajato custou ao brasil.

    foi planejado desde fora para isso, destruir um país/continente/potencia em crescimento.
    em quanto a v.llosa, já que sabe inglês, pode ler a pepe escobar, latinoamericano, brasileiro, um jornalista desses que o brasil deveria se orgulhar, especialista em oriente médio, que nao escreve em português nem em espanhol. muitos blogs e portais do mundo publicam seus artigos.
    mas se só quer espanhol, que procure a versao idem da rede voltaire.
    só que vai se encontrar com a dura realidade, e nao as mentiras que deve ler a diário.

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