Cladem e Cladem Brasil denunciam à OEA indicação de Flavia Piovesan para a Comissão Internacional de Direitos Humanos

Tania Pacheco

O Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM) e CLADEM Brasil encaminharam documento ao Secretário Geral da OEA, Luis Lenonardo Almagro Lemes, denunciando a indicação de Flávia Piovesan à Comissão Internacional de Direitos Humanos, feita pelo governo brasileiro.

As duas entidades afirmam que “Apesar da trajetória acadêmica na área dos direitos humanos, a candidata embarcou no projeto de governo instalado com a subversão da ordem constitucional – e isso não pode ser minimizado, não pode estar separado de sua trajetória de estudiosa dos direitos humanos. Não podemos ter uma visão de mundo na sociedade civil e outra quando se está no governo, sob pena de não sabermos quem, ao final, ocupará eventual vaga na CIDH”. E acrescentam: “Por isso, a erudição em direitos humanos não é o único parâmetro para qualquer candidatura, não é suficiente ter um rol de textos publicados e conferências proferidas. Requer-se, para tanto, atenção à prática cotidiana para a democracia como condição para os direitos humanos, prática que se traduz em ações a partir do cargo e posição que se ocupa.”

A carta denuncia a contradição de a candidatura brasileira ser apresentada no “pior momento da vida democrática no país”, marcado pelo “desmonte da estrutura da política de direitos humanos em uma velocidade surpreendente, com a presença da candidata Flávia Piovesan no quadro governamental. O momento não é adequado para a participação brasileira, e o engajamento da candidata na atual política governamental compromete sua nomeação.”

CLADEM e CLADEM Brasil alertam ainda que, se aceita, a indicação do governo Temer pode contribuir para “reforçar uma forma de praticar direitos humanos para o Sistema Interamericano: apartada totalmente da vida dos países que as candidaturas representam ou sem valorar o cargo do qual estes ou estas profissionais participavam semanas antes de dispor seus nomes para a candidatura à CIDH”. E conclui:

“Por tudo quanto expusemos, notadamente pelo desmonte institucional pelo qual o país se encontra e pelas violações de direitos humanos, ambos perpetrados pelo atual governo, entendemos que a candidatura brasileira tem consequências políticas, servindo como uma falsa propaganda para a comunidade internacional.”

A CIDH é composta por sete peritos. Três deles serão eleitos durante a 47ª Reunião da Assembleia-Geral da OEA, que será realizada na Cidade do México, entre 19 e 21 de junho próximos.

Abaixo, a íntegra da carta, enviada com cópias para o Presidente e o para Vice-presidente do Conselho Permanente da OEA, Neil Parson, de Trinidad Tobago, e Pedro Verges, da República Dominicana, respectivamente, e para o brasileiro Paulo Abrão, Secretário Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

***

Referência: Candidatura brasileira à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) – para além de uma trajetória acadêmica.

Com os protestos de nossa mais alta elevada estima e consideração:

O Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM) e CLADEM Brasil dirigem-se a V.Exas. para apresentar sua posição em relação à candidatura da brasileira Flávia Piovesan à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para o período 2018-2021.1 Este posicionamento público decorre da tensão instalada no campo dos direitos humanos, situação que não pode estar descolada da figura da candidata brasileira, que esteve à frente da política de direitos humanos no Brasil nos últimos meses de fragilidade democrática – cargo que é inclusive apresentado como forte atributo para ocupar a vaga na Comissão Interamericana.

Apesar da trajetória acadêmica na área dos direitos humanos, a candidata embarcou no projeto de governo instalado com a subversão da ordem constitucional – e isso não pode ser minimizado, não pode estar separado de sua trajetória de estudiosa dos direitos humanos. Não podemos ter uma visão de mundo na sociedade civil e outra quando se está no governo, sob pena de não sabermos quem, ao final, ocupará eventual vaga na CIDH. Por isso, a erudição em direitos humanos não é o único parâmetro para qualquer candidatura, não é suficiente ter um rol de textos publicados e conferências proferidas. Requer-se, para tanto, atenção à prática cotidiana para a democracia como condição para os direitos humanos, prática que se traduz em ações a partir do cargo e posição que se ocupa.

Quando o CLADEM se posicionou contra o processo que retirou uma presidente eleita da Presidência da República,2 era certo que iríamos continuar nosso combate às políticas que desmontavam os avanços em direitos humanos, e que seríamos céticas diante de um governo ilegítimo.3 Nossas afirmações foram seguidas de uma gestão misógina, que desmontou as secretarias de direitos das mulheres e de igualdade racial, nomeou mulheres apenas quando a opinião pública reverberou, constituiu os ministérios só com homens brancos, com um presidente que, em seu discurso, no dia das mulheres, em tom elogioso, “usou a palavra para dizer que o papel das mulheres na economia é serem astutas seguidoras do orçamento doméstico, capazes de notar as flutuações de preços (…), além de responsáveis pelos afazeres domésticos.”4

O novo governo, em rápida velocidade, buscou dar um caráter mais generalista às ações de direitos humanos a ponto de atingir a estrutura institucional. A primeira medida jurídica adotada foi retirar a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH) e colocá-la no Ministério da Justiça, voltando 20 anos em termos de status de ministério que já havia conquistado desde 1996. Após protestos, a pasta dos direitos humanos volta a ter um ministério específico – Ministério dos Direitos Humanos, e o atual cargo de Piovesan será extinto e se tornará Secretaria da Cidadania na nova estrutura. A extinção de cargos está condicionada à conclusão da tramitação do processo legislativo, por isso ainda falamos em Secretaria de Direitos Humanos.5

O que a nomeação de um nome de prestígio esconde é muito mais do que revela: é o uso do prestígio pessoal para que a trajetória de abusos permaneça invisível, ou seria uma moeda de troca para aplacar as críticas ensurdecedoras que vieram com o início do governo interino? A situação é delicada quanto à atual candidatura e ao momento brasileiro, e por isso gerou tanta insegurança e surpresa o pleito de junho próximo. Em um mês, foi anunciada a indicação do Ministro da Justiça para um cargo na Corte Constitucional brasileira e, na sequência, da Secretária de Direitos Humanos para a CIDH, ambos são professores juristas no governo Executivo.

A contradição na candidatura brasileira está no fato de esse ser o pior momento da vida democrática no país, contradição de se indicar uma candidatura feminina para representar a elevação do país no ranking do empoderamento de mulheres e paridade de gênero na CIDH pelo mesmo grupo que apeou do poder a única presidente mulher que o país já elegeu até 2018; pelo mesmo governo que determinou o fim da estrutura de secretarias e políticas públicas para mulheres e apoiou ataques à igualdade de gênero. A contradição está no desmonte da estrutura da política de direitos humanos em uma velocidade surpreendente, com a presença da candidata Flávia Piovesan no quadro governamental. O momento não é adequado para a participação brasileira, e o engajamento da candidata na atual política governamental compromete sua nomeação.

A Secretaria de Direitos Humanos assistiu as seguintes graves situações: congelamento dos gastos públicos por 20 anos (PEC 241/2016, conhecida como PEC do Fim do Mundo),6 desmonte na Comissão de Anistia,7 reações desastrosas do governo diante do maior massacre nas penitenciárias brasileiras desde Carandiru (1992),8 posição governamental de eventual superioridade do direito do não nascido sobre o direito das mulheres,9 proposta de reforma trabalhista10 e reforma previdenciária (PEC 287/2016).11

A eleição para CIDH em junho com o Brasil pode reforçar uma forma de praticar direitos humanos para o Sistema Interamericano: apartada totalmente da vida dos países que as candidaturas representam ou sem valorar o cargo do qual estes ou estas profissionais participavam semanas antes de dispor seus nomes para a candidatura à CIDH. A questão é ponto de partida antes de se chegar aos casos de violações de direitos humanos versus os Estados, casos a serem analisados pela Comissão. A Comissão Interamericana de Direitos não é apenas um sítio de interpretar o direito, é um lugar de leitura das políticas públicas nacionais de direitos humanos. Um lugar em que o candidato ou candidata que está no monitoramento e construção dessa política no sistema interamericano esteja comprometido/a com a realização de direitos e, assim, sua efetividade quanto à política regional.

Por tudo quanto expusemos, notadamente pelo desmonte institucional pelo qual o país se encontra e pelas violações de direitos humanos, ambos perpetrados pelo atual governo, entendemos que a candidatura brasileira tem consequências políticas, servindo como uma falsa propaganda para a comunidade internacional. Principalmente ao se considerar o evidente conflito de interesse no processo nacional de nomeação da especialista brasileira, que é habitualmente liderado pela própria Secretaria de Direitos Humanos, ao indicar a própria ocupante do cargo responsável por acompanhar as denúncias de violações de direitos humanos contra o Brasil. A Secretaria também poderia colaborar na indicação de nomes para a candidatura brasileira ao invés de sugerir a titular da pasta.

Por tudo quanto consideramos em relação ao currículo da candidata e sua atuação, reconhecida como estudiosa dos direitos humanos e com convicções teóricas, a experiência (anti)democrática recente no país apresentou uma relação de profunda alienação entre a sociedade civil e a secretaria de direitos humanos, ocupada pela candidata.

Finalmente, o CLADEM com base na sua história com o litígio estratégico no sistema internacional de proteção dos direitos humanos, especialmente no Caso Maria da Penha, tão caro para a história das políticas de prevenção e enfrentamento da violência contra as mulheres no Brasil e uso da Convenção de Belém do Pará na região, recorre ao compromisso de todas as autoridades com o fortalecimento da CIDH para considerar a recente prática de baixa democracia e o trabalho desempenhado na função de Secretária de Direitos Humanos como elementos que impactam negativamente na candidatura do Brasil neste período.

Perú y Brasil, 09 de mayo de 2017.

Elba Beatriz Núñez – Coordinación Regional CLADEM

Soraia de Rosa Mendes, Rubia Abs Cruz e Priscila Akemi Beltrame – Equipo de Coordinación Nacional,  CLADEM Brasil

  1. Nota do Itamaraty. D disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/component/tags/tag/861- cidh-comissao-interamericana-de-direitos-humanos>. Acesso em 20.04.2017.
  2. Nota do CLADEM sobre indicação de Flávia Piovesan ao cargo de Secretária dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://agenciapatriciagalvao.org.br/wp-content/uploads/2016/05/Carta-Aberta-%C3%A0-Fl%C3%A1via-Piovesan.pdf>. Acesso em 03.05.2017.
  3. Nota do CLADEM sobre Democracia no Brasil. Disponível em: <https://www.cladem.org/images/pdfs/actividades/brasil/Pronunciamiento-de-CLADEM- RECHAZO-por- 1 intento-de-quiebre-institucional-en-Brasil.pdf>. Acesso em 05.05.2017.
  4. Vide matéria no jornal El País, http://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/08/politica/1489008097_657541.html
  5. Medida Provisória 768, 02 de fevereiro de 2017. Disponível em: <http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/127931> . Acesso em 06.05.2017.
  6. Ver http://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/10/politica/1476125574_221053.html
  7. Ver http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2016/09/temer-nomeia-apoiador-da-ditadura- como-membro-da-comissao-de-anistia-6184.html;
  8. http://www.ebc.com.br/especiais/entenda-crise-no-sistema-prisional-brasileiro
  9. Ver http://www1.folha.uol.com.br/colunas/claudiacollucci/2017/04/1872896-vida-do-nascituro- deve-prevalecer-sobre-desejo-da-gestante-diz-temer.shtml
  10. Ver http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,ministerio-publico-do-trabalho-diz-que- reforma-trabalhista-e-inconstitucional,70001640253
  11. Nota Técnica do Ministério Público: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/temas-de-atuacao/previdencia- e-assistencia-social/saiba-mais/nota-tecnica-1-2017-pfdc-mpf

Protesto contra Flávia Piovesan, secretária de Direitos Humanos do governo Temer, durante o I Congresso Internacional de Direito Público, em Coimbra. Outubro de 2016. Foto: Extra.

 

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

dez − dez =