Crise na Venezuela: Dos 500 índios Warao refugiados metade vive embaixo de viadutos em Manaus

Crianças tem doenças como escabiose, pneumonia e desnutrição. Governo estadual quer transferir os imigrantes para zona leste da cidade

Elaíze Farias – Amazônia Real

Dos cerca de 500 índios Warao que migraram nos últimos cinco meses da Venezuela para Manaus, metade mora em barracas de lona em ruas e embaixo dos viadutos que ficam no entorno do Terminal Rodoviária, na zona centro-sul da capital amazonense. A falta de acolhimento humanitário, como prevê a nova Lei da Migração, criou um drama sem precedentes na cidade cuja economia vem das ricas indústrias da Zona Franca. Quem passa de ônibus ou de carro pelas vias a imagem que se vê é similar das favelas que surgiram quando Calaís, na França, abrigou refugiados sírios.

Nas barracas de lonas azul ou preta espalhadas embaixo do viaduto Governador Plínio Ramos Coelho vivem cerca de 250 indígenas da Venezuela. Destes, 113 são crianças. Muitas delas apresentam sinais de doenças de pele, como escabiose, desnutrição e sintomas de problemas respiratórios.

A alimentação dos refugiados, na maioria das vezes, vem de doadores anônimos e igrejas, que levam produtos como frango, macarrão, arroz, pão, biscoitos, refrigerante, fraldas descartáveis e material de higiene pessoal. Muitas mulheres pedem dinheiro nos semáforos da cidade, sempre acompanhadas das crianças, mas elas interpretam essa prática como uma atividade laboral. É com a doação que recebem que as famílias compram comida e mantimentos. Eles dizem, contudo, que a ajuda nas ruas têm diminuído.

As autoridades não conseguem dar uma resposta humanitária aos migrantes que chegam todos os dias na cidade. O Ministério Público Federal (MPF) enviou este mês uma recomendação aos governos federal, estadual e ao município pedindo auxílio social, humanitário e de saúde aos migrantes Warao. Na ocasião duas crianças morreram: uma por catapora e a outra por pneumonia. Um homem morreu por infarto.

Outra preocupação das instituições é com o anúncio do 1o. Plano de Contingência que o governo do presidente Michel Temer (PMDB) organiza na fronteira do Brasil com a Venezuela, que pode causar restrições a vinda de refugiados índios e não índios para Manaus. Autoridades como o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto (PSDB), defendem a instalação de “um campo de refugiados e uma barreira” na fronteira para impedir a chegada de mais índios Warao na capital amazonense.

A família do professor Aníbal José Cardona, 29 anos, é uma das que vivem debaixo do viaduto Governador Plínio Governador Plínio Coelho, do Complexo Viário de Flores, zona Centro-Sul de Manaus. Ele disse à Amazônia Real que chegou a Manaus no dia 15 de abril, junto com a mulher, Rosaura Maya, 25, e dos dois filhos, Anison, de 3 anos, e Disaure, de 1 ano e sete meses. A viagem começou da comunidade Mariusa, no estado de Delta Amacuro, na região do delta do rio Orinoco, no litoral caribenho, até a cidade de Santa Elena do Uairén, na Venezuela; são mais de 1.700 quilômetros de distância.

A família entrou no território brasileiro pelas serras de Pacaraima para driblar as deportações da Polícia Federal. Depois seguiu mais 220 quilômetros até Boa Vista pagando por pessoa (R$ 60 a viagem de carro), onde morou num galpão.

“Nessa época, a Polícia Federal não estava deixando a gente entrar de maneira legal. Antes, havia permissão. Depois, parou. Falaram que já tinha muito Warao em Boa Vista. Então, entramos por uma outra área, a área verde, caminhando até 30 quilômetros. Éramos 20 famílias. Sofremos muito subindo e descendo a serra. Não foi fácil. Nossa perna ficava muito cansada”, contou Cardona.

No período em que ficou em Boa Vista, ele disse que conseguiu vender artesanato, o que não é mais possível por falta de matéria-prima. Decidiu migrar para Manaus para tentar outra fonte de renda ou alternativa de apoio para suas necessidades. A família não tem certeza se quer fixar residência permanente no Brasil, mas diz que “ainda não é o momento para voltar à Venezuela”.

“A situação lá só tem piorado. Tem muita violência, matança. Passamos muita fome. Somos um povo pesqueiro, não temos mais peixe. E não tem sido fácil encontrar trabalho. Aqui no Brasil eu gostaria de trabalhar. Na minha comunidade, eu era professor de escola para criança. Era do governo. Agora não posso mais. O governo não tem recurso. Nosso trabalho não tem valor. E não sabemos quanto tempo vai durar essa crise”, disse Aníbal Cardona, que diz que é formado por uma universidade indígena localizada no estado de Delta Amacuro.

Apesar da expectativa de continuar morando no Brasil, ele sente necessidade de retornar ao seu país para ajudar a família que ficou. No período em que esteve em Boa Vista, conseguiu ir uma vez a Venezuela e ajudar a família com o dinheiro da venda de artesanato. Em Manaus, ele não sabe quando conseguirá viajar novamente.

“Eu penso em ficar aqui [Manaus], mas tenho que levar alguma coisa para minha família. Levar roupa. Na Venezuela, é quase impossível comprar roupa. Não sei quando vou conseguir”, diz ele, que considera o povo brasileiro “solidário e carinhoso”, apesar dos episódios de preconceito que alguns grupos vivem frequentemente, além de assaltos de não-índios de alimentos e até de fraldas.

Recentemente, os Warao foram abordados por policiais militares após uma denúncia de que eles teriam reagido à atitude de uma mulher na Rodoviária que teria tomado de uma criança um filhote de cachorro. A mulher alegou que a criança estava maltratando o animal. À reportagem, Aníbal negou a versão da mulher.

“Ela viu uma criança nossa brincando com o cachorro, se enamorou do animal e fez uma denúncia falsa. A criança chorou, querendo recuperar o cachorro. A mulher chamou a polícia e falou que a criança estava maltratando o cachorro, o que não era verdade. Chegou patrulha da política e nos ameaçou”, diz Aníbal Cardona.

O caso acabou tento grande repercussão nas redes sociais. O indígena disse que a mulher, que ele não soube identificar, ficou com o cachorrinho.

 

Morrendo por falta de comida

Evélio Mariano, 40 anos, chegou a Manaus no último dia 13 de maio, acompanhado da mulher Cacilda Malta, 36, e outros familiares. Ele estava em Boa Vista desde dezembro e também decidiu seguir viagem até a capital amazonense.

“Em Boa Vista não temos trabalho. Eu tenho documentos do Brasil, de imigrante, tenho protocolo, cartão de SUS, Carteira de Trabalho. Tenho experiência de motorista de lancha. Tenho meu currículo. Gostaria de trabalhar”, disse Evélio.

Nascido em Delta Amacuro, ele conta que não quer voltar para Venezuela. “Na Venezuela não tem nada. Está morrendo muita gente. Morrendo por falta de alimento, falta de medicina. O governo está matando muitas pessoas na rua. E os índios sofrem mais. Se eu conseguir trabalho, não volto mais. Já passei muita necessidade”, conta Evélio, que deseja conseguir recursos financeiros para ajudar a família que ficou na Venezuela.

Devido à dificuldade de trabalho, ele e a mulher planejam conseguir meios para comprar material de artesanato para vender. “Não quero ficar pedindo na rua”, disse.

Insegurança preocupa Cáritas

Representante da Cáritas Arquidiocesana no acompanhamento aos Warao em Manaus, o padre Joaquim Hudson Ribeiro mostra-se preocupado com a opção do poder público em transferir apenas os indígenas que estão no Terminal Rodoviário de Manaus para o abrigo na zona leste da capital amazonense.

“As condições das casas no centro da cidade são péssimas. E eles não têm mais condições de pagar o aluguel. As doações nas ruas têm diminuído. Parte da população vizinha também começa a se incomodar e ali é uma área considerada ‘vermelha’, perigosa. Se a situação dos que estão no Centro também não for resolvida, vai ter problema. E a Cáritas não tem condições de assumir os aluguéis dos demais meses”, conta.

Padre Joaquim Hudson disse que o primeiro contato que teve com os índios Warao aconteceu no dia 2 de abril, quando um grupo esteve na missa na Capital Metropolitana de Manaus. O grupo procurou a Igreja Católica voluntariamente.

“Eles nos procuraram logo depois que houve o anúncio do governo de fazer o transporte deles de volta para Venezuela, de ônibus. Disseram que não queriam ir. Pediram ajuda, comida e alojamento. Então, a gente começou a acompanhar, a olhar a situação de saúde, eles vivendo em uma situação muito insalubre. Conseguimos levar uma equipe de médicos e enfermeiros porque estávamos vendo a morosidade da Semsa (Secretaria Municipal de Saúde)”, relata. A Semsa, até então, vinha realizando apenas atendimentos esporádicos.

No mesmo período, a Cáritas também precisou bancar um aluguel de outro prédio no valor de R$ 2.500 para abrigar as famílias que perderam seus pertences após um incêndio no local onde viviam.

Após conversa com a Semsa, a sede da Cáritas recebeu no último dia 16 de abril uma equipe de médicos e enfermeiros para os Warao, em uma primeira ação efetiva de atendimento à saúde por parte da prefeitura. Um segundo atendimento aconteceu no Terminal Rodoviário, dois dias depois.

A mesma avaliação sobre a destinação dos Warao ao abrigo tem o procurador da República Fernando Merloto Soave, do MPF do Amazonas. Ele afirma que é preciso contemplar todos os grupos e sugeriu que se construa “soluções sustentáveis” a longo prazo para que os próprios indígenas consigam “caminhar com suas próprias pernas”.

“A ideia é que o abrigo sirva também como ponto de referência, mas que aos poucos vá se conquistando a autonomia deles. Muitos falam que gostariam de um espaço onde possam plantar, por exemplo”, disse.

A Arquidiocese de Manaus tem um histórico de auxílio a imigrantes através da Pastoral do Migrante. A atuação se intensificou com a chegada em massa de mais de 10 mil haitianos na capital, a partir de 2011. Em Manaus, segundo o padre Valdeci Molinari, que esteve à frente no apoio aos haitianos, a Igreja Católica acaba assumindo a tarefa porque o poder público se omite.

“Isso aconteceu com os haitianos, quando pedimos ajuda do governo e nunca conseguimos. Não podíamos cruzar os braços. Buscamos fazer o que foi possível [com os haitianos]. A ajuda foi fruto da solidariedade da sociedade, de igrejas evangélicas e católica, de empresas”, afirma.

O padre conta que a situação dos indígenas venezuelanos tem outra característica e precisa ser tratada de forma específica. Ele enfatiza, porém, que a Pastoral do Migrante não tem condições de receber mais imigrantes devido à lotação do seus dois abrigos. Um localizado no bairro Zumbi, na zona leste, e outro no bairro Santo Antônio, na zona centro-oeste.

“Eles [Warao] chegaram e ficaram acampados. Chamou atenção, ficou notório, mas o poder público estava muito devagar. Os índios têm uma característica diferente e precisam de uma forma diferente de trabalhar com eles. Tem a questão cultural. Continuamos batendo na tecla de que é o poder público que tem que prover. Tivemos uma postura de receber imigrantes, mas não podemos manter o trabalho por causa da omissão do Estado”, afirmou.

A origem e a migração dos Warao

Os Warao formam a segunda maior população indígena da Venezuela, com 49 mil pessoas distribuídas em comunidades da região caribenha do delta do rio Orinoco, no litoral do país. Há também populações que vivem em cidades do estado de Delta Amacuro, cuja capital é Tucupita. Também há registro de Warao em comunidades da Guiana e Suriname, indicando um deslocamento pelo mar em períodos pré-coloniais, por serem secularmente hábeis canoeiros.

Os dados fazem parte do parecer técnico do Ministério Público Federal de Roraima produzido após uma reunião ocorrida na Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, em 14 de dezembro de 2016, com o objetivo de tratar da situação migratória de índios venezuelanos no Brasil.

Os estudos apontam que os Warao sofreram vários impactos em seu território. Um dos registros mais graves aconteceu na década de 1960, quando o rio Manamo, afluente do rio Orinoco, foi barrado para atividades de agropecuária. Os Warao não foram ouvidos nem consultados. O território também passou a ser ocupado por não-indígenas. Todas as atividades de subsistência dos Warao foram afetadas. Impactados, muitos grupos se dispersaram ou foram removidos, passando a viver em áreas urbanas.

Em 1976, uma enchente no rio Manamo, provavelmente causado pela barragem, matou entre mil e três mil Warao. Foi neste momento que eles iniciaram o processo de migração temporária ou permanente, inserindo-se no mercado terciário como mão de obra de baixa qualificação ou como pedintes.

O ato de pedir, contudo, segundo o parecer, opera com um significado próprio, pois para os indígenas isso também é considerado um “trabalho”.

“Quando ocorre a necessidade de se ‘tornarem pedintes’, eles passam a viver temporariamente (porque também retornam periodicamente aos seus locais de origem) em situação de rua e, consequentemente, os problemas próprios deste contexto, sobretudo quando em centros maiores. Apesar de riscos da vida urbana, eles têm conseguido se garantir economicamente e se manter enquanto grupo, realizando as expedições sempre de modo coletivo e com características próprias”, diz trecho do parecer.

Segundo o documento, os Warao afirmaram que não dispõem do uso exclusivo de seu território histórico e do qual necessitam, pois ele está partilhado com os que eles chamam de Hotarao (habitantes das terras altas: crioulos e estrangeiros). Também não há registro de titulação de um território continuo dos Warao.

A entrada dos Warao no Brasil começou em 2014, no contexto da crise que atingiu a Venezuela. O motivo foi a fome, a falta de recursos e o corte de benefícios sociais promovido pelo governo de Nicolás Maduro. Sua principal fonte de renda, o pescado, também entrou em crise com a baixa procura.

Conforme o parecer, os indígenas chegam ao Brasil em grupos familiares e muitos deles já se conheciam nas regiões de origem; outros passaram a se conhecer no trajeto. O processo de mobilidade dos Warao consiste na vinda de uma parte da família e outra que aguarda na Venezuela. Ocasionalmente, caso decidam, o que ficou decide se juntar aos que vieram antes.

Nesta segunda-feira (29), o Ministério Público Federal do Amazonas divulgou um parecer antropológico sobre os Warao, sua etnografia, migração e presença em Manaus. Leia o parecer do MPF do Amazonas.

Viaduto governador Plínio Coelho serve de moradia para refugiados (Foto:Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Veja o vídeo com fotografias dos migrantes:

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