Necropolítica na metrópole: extermínio de corpos, especulação de territórios

Ao mobilizar centenas de policiais e manifestar expressiva violência naquele território da Luz, a atual política da administração municipal de São Paulo tem por objetivo não apenas o controle, mas visa limpar pessoas e abrir caminho aos interesses corporativos e financeiros. É a “Cidade linda” operando na lógica da limpeza social e racial do território e abrindo-o para interesses mercadológicos. São as dominações racista e classista em funcionamento interseccionado.

A ação da gestão do Prefeito João Dória na região da Luz, Campos Elíseos, em São Paulo foi das piores e mais truculentas da história recente. Um efetivo de centenas de policiais desferiram bombas e balas espalhando medo e violência em uma suposta ação contra traficantes. Além disso, imóveis foram lacrados sem que as pessoas pudessem retirar seu pertences e a demolição desastrosa e mal planejada de um edifício culminou na queda de paredes com pessoas no interior do imóvel. O que explica tamanha truculência? Diversos e complexos são os fatores para uma ação daquela magnitude. Mas quais seriam pontos centrais da ideologia que sustentam uma ação tão violenta?

Vivemos em uma sociedade marcada pela lógica neoliberal, racista e patriarcal. São opressões estruturais e estruturantes da constituição de uma sociedade que surge, para o mundo ocidental, com a exploração colonialista e ainda marca, em todos os seus processos, relações e instituições sociais as características da violência, usurpação, repressão e extermínio daquele período. Essas opressões, por sua vez, não ocorrem no plano abstrato, mas circunscrevem os corpos subalternizados.

O processo colonial e as relações de poder têm, como um de seus matizes, o questionamento de identidades. Nesse processo de hierarquização e constituição de estruturas de poder, o colonialismo tem interseccionado, e como imprescindível em si, a racialização de características físicas e aspectos culturais dos povos explorados. Ou seja, os discursos e esteriótipos construídos sobre o corpo e as culturas foram cruciais para o êxito e aceitação do processo colonial. Segundo a antropóloga Avtar Brah, a racialização do poder opera em e através dos corpos. Ou seja, esse discurso e essa representação são indissociáveis do poder político e econômico que constituem. Sem a racialização, o processo colonial e a hierarquização política e econômica teriam, sem dúvidas, maiores dificuldades de serem apreendidas e instituídas. Isso significa que não há hierarquia de opressões. Elas agem interseccionadas e de modo indissociado para a manutenção da estrutura de dominação.

O sociólogo francês Pierre Bourdieu também afirmou a importância da não abstração das opressões ao afirmar que o biológico colocado como diferença pretende construir um atestado de superioridade quando, na verdade, também é fruto de uma construção social. Para ele, é no corpo que se inscrevem as disputas de poder, ou seja, é o corpo que dá materialidade à dominação. O antropólogo e estudioso Levi-Strauss, anos antes, já apresentava questões que apontavam para estas conclusões ao afirmar que a natureza humana é social.

Em Foucault, o corpo é caminho e é por ele que são sentidas as ações das técnicas de poder. Corpo é, portanto, espaço de disputa de disciplinamento e controle. Os aparatos de controle e repressão têm o objetivo de tornar dóceis e moldar os corpos, e eles podem se realizar através de diversas esferas: educação, saúde, sistema carcerário, polícia, etc. É pela disciplina e repressão que as regras sociais são expostas e o corpo sujeitado é obrigado a cumpri-las.

Já o sociólogo camaronês Achille Mbembe formulará o conceito de necropolítica. Ou seja, o poder de ditar quem deve viver e quem deve morrer. É um poder de determinação sobre a vida e a morte ao desprover o status político dos sujeitos. A diminuição ao biológico desumaniza e abre espaço para todo tipo de arbitrariedade e inumanidade. No entanto, para o sociólogo há racionalidade na aparente irracionalidade desse extermínio. Utilizam-se técnicas e desenvolvem-se aparatos meticulosamente planejados para a execução dessa política de desaparecimento e de morte. Ou seja, não há, nessa lógica sistêmica, a intencionalidade de controle de determinados corpos de determinados grupos sociais. O processo de exploração e do ciclo em que se estabelecem as relações neoliberais opera pelo extermínio dos grupos que não têm lugar algum no sistema, uma política que parte da exclusão para o extermínio.

O excessivo uso de força e de agentes repressivos está articulado e indissociado dos interesses do capital especulativo. Mesmo em contextos de ampla exploração, conforme aponta Foucault, a lógica do controle e da exclusão são os lugares negados, os “lugares-não-lugares”, dessas populações vulneráveis na lógica interseccionada do sistema de dominação. Como consequência da lógica da exploração do trabalho, o corpo-máquina, ao desprover-se dessa característica que representa sua única função no interior do sistema capitalista, torna-se desnecessário de controle e tem sequestrada sua atuação política, sendo, com isso, passível de desumanização e aniquilamento.

Ao mobilizar centenas de policiais e manifestar expressiva violência naquele território da Luz, a atual política da administração municipal de São Paulo tem por objetivo não apenas o controle, mas visa limpar pessoas e abrir caminho aos interesses corporativos e financeiros. É a “Cidade linda” operando na lógica da limpeza social e racial do território e abrindo-o para interesses mercadológicos. São as dominações racista e classista em funcionamento interseccionado.

Não à toa, houve a rápida afirmação de que A Cracolândia acabou”. No entanto, a “Cracolândia” não é apenas um conjunto de quarteirões e muito menos uma abstração. A “Cracolândia” são pessoas. Corpos e sujeitos em alta vulnerabilidade, desprovidos de direitos políticos e sociais, desprovidos de cidadania. É essa lógica desumanizadora – e isto fica evidente, inclusive, ao chamar aquelas pessoas de “zumbis” – que dá aporte à ideia de nosso “gestor”, de que bombas, balas e truculência podem dar conta de uma questão muito mais complexa e que teria que envolver respostas também mais complexas.

Mais de 70% dos participantes do “fluxo” são negros e a cada dia a presença feminina tem crescido. Ao contrário do senso comum, não foi o uso abusivo de determinadas substâncias que levou aquelas pessoas à situação de vulnerabilidade. Muito pelo contrário. É o contexto de falta de direitos e de vulnerabilidades psicossociais que se coloca como terreno fértil para o uso abusivo de certas substâncias, sejam elas lícitas ou ilícitas.

O ocorrido na região da Luz foi uma tentativa desastrosa de mostrar poder e controle utilizando-se da violência e do medo, desestruturando o trabalho de anos feito por diversos profissionais na região, e que, ao invés de resolver algo, espalhou pela cidade aquelas vulnerabilidades. Segundo o Conselho Nacional de Direitos Humanos e o Conselho Municipal de Políticas sobre Álcool e Drogas, são 23 novos pequenos fluxos após a ação.

A intencionalidade da ação fica exposta com a insinuação, por parte da atual gestão, de que aquela região não produz, sendo que há amplo comércio em funcionamento e que mobiliza milhares de empregos, rendas e cifras à cidade. Além disso, a narrativa da “guerra às drogas” – já que não se “guerreia” contra substâncias – não passa de um pretexto para uma ação e ideologia articuladas com o intuito de militarizar e especular territórios, exterminando subjetividades e vidas. É uma guerra que ocorre cotidianamente de modo silencioso em diversos territórios negros e periféricos e atua apenas na ponta da economia das drogas. O mercado de drogas mantido na ilegalidade não nos permite visualizar todas as suas ramificações e extensões, além de colocar em risco, inclusive, instituições, já que se move e se mantém corrompendo estruturas.

Há uma série de questões articuladas. O que não se pode é manter o silêncio diante de ações que, longe de terem como objetivo a recuperação, principalmente de cidadania, têm como pano de fundo o medo, a reprodução da violência e o extermínio para dar vazão a interesses especulativos. Não podemos permitir que vivos sejam tratados como lixo. Pessoas não são descartáveis. E a cidade não está à venda.

Juliana Borges é pesquisadora em Antropologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde cursa Sociologia e Política. Foi Secretária Adjunta de Políticas para as Mulheres da Prefeitura de São Paulo (2013). Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente, às quintas-feiras.

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