“É um atentado contra o direito de existência de um povo”, afirma liderança Gamela

Do Justificando

“Cada vez mais eu vou compreendendo o que é o caminho feito por muitos povos, muitos indígenas. Tiveram seus ancestrais arrancados no meio de seu povo, da sua terra. Entrou numa fase de desmaio étnico que demorou muito tempo. Finalmente, a gente está acordando” – afirmou ao Justificando o indígena Inaldo Kum’tum Akroá Gamella, 43, uma das lideranças do povo Akroá Gamella, duramente atacado no final de abril por fazendeiros e jagunços na área de retomada do território tradicional nas proximidades do Povoado dos Baias, no município de Viana, no Maranhão.

Em entrevista exclusiva, a liderança conta sobre o dia do ataque, a luta do povo Akroá Gamella e as constantes ameaças feitas contra sua vida. Inaldo fala também sobre a disputa da terra entre os povos originários e quem se vale de grilagem de terra, o respeito aos mais velhos da comunidade e a atuação dos governos estadual e federal na questão. Confira:

Justificando: Inaldo, conte-nos um pouco sobre a situação da terra reivindicada pelos Gamela.

Inaldo Kum’tum: Os primeiros registros do povo Akroá Gamella datam do século XVII, tendo sido sempre registrado como um povo guerreiro resistente ao processo de colonização. Sua terra tradicional localizada no município de Viana/MA advém de uma carta de sesmaria. Em 1969, a escritura da terra, registrada no cartório do município, foi fraudada permitindo a inclusão de particulares como proprietários. A partir desse ato, foi iniciado um processo de grilagem e loteamento pondo fim ao uso comum da terra. Para se ter uma ideia, há áreas com mais de um registro cartorial, demonstrando claramente um processo fraudulento na aquisição das terras, que contou com a formação de um consórcio entre políticos, juízes, donos de cartório, polícia, prática recorrente no Maranhão naquelas décadas, de tal modo que muitos indígenas foram forçados a abandonar o seu território, ficando um grupo espremido entre cercas de arame e as estradas até os dias atuais.

A gente hoje tem clareza que houve um longo período de silenciamento étnico e os anciãos explicam por conta da violência: o medo de morrer fez silenciar a identidade. Entretanto, todos sabem que Taquaritua [onde fica o povo Akroá Gamella] é território indígena.

Just: Como você chegou no povo Gamela? Você é nascido na comunidade?

IK: Venho de uma família Akroá de um território próximo ao de Taquaritua onde moro hoje. Minha avó nasceu na aldeia Capivari, mas foi criada por uma família branca na cidade – minha mãe nasceu fora da aldeia e eu também. Na década de 90, fui para a Faculdade de Ciências Sociais da UFMA [Universidade Federal do Maranhão] onde tive acesso ao livro Terra de Índio, da professora Maristela de Paula Andrade. Nesse livro encontrei referência ao povo Gamella e, desde então, comecei uma busca que finalmente teve êxito em 2012, quando nos encontramos dentro dessa luta por território. Ainda fiquei um tempo indo e vindo e aos poucos fui fazendo minha mudança para o território. Fiz o caminho da volta, reencontrando com as minhas origens étnicas.

Just: E qual a luta do povo Gamela e como ela é feita?

IK: Há anos nossa comunidade decidiu fazer o processo gradual de retomada da área tradicional do nosso território. A partir da década de 90, fizemos retomadas de pequenas áreas, que os mais velhos chamam de “botar um rumo dentro do arame”.  O povo foi obrigado a fazer isso, uma vez que os fazendeiros cercaram quase tudo, deixando-nos sem condições dignas de sobrevivência: sem lugar para fazer as roças, caçar e pescar…

A luta que fazemos hoje é para que o Estado brasileiro faça a demarcação do nosso território, um direito garantido na Constituição Federal. Entendemos que sem território não há possibilidade de reprodução física, cultural, religiosa de um povo. Território e Identidade estão profundamente ligados.

Just: E o que ocorreu naquele fatídico 30 de abril [dia do ataque de fazendeiros a indígenas que resultou em dezenas de feridos]?

IK: Estávamos retomando mais uma parte da nossa terra tradicional, quando por volta das 17:00 horas fomos atacados por um grupo de 250 pessoas, grande maioria composta por fazendeiros e jagunços. Naquela tarde havia acontecido uma reunião no povoado Santeiro, convocada por fazendeiros, advogados, pelo deputado federal Aloisio Mendes (PTN-MA) e por lideranças da igreja Assembleia de Deus. Essa reunião foi convocada por meio de rádios locais, carro de som e em redes sociais para pessoas dos municípios de Viana, Matinha, Penalva, Pedro do Rosário e outros  da região.

As pessoas chegaram portando arma de fogo e decidimos desocupar a área que estava sendo retomada, de modo que no momento do ataque éramos em torno 30 pessoas que já estávamos recuando para a mata, quando fomos atacados brutalmente. Vários indígenas foram agredidos e agredidas a pauladas, pedradas, facão e cinco foram baleadas e destes, dois receberam cortes de facão e tiveram suas mãos decepadas. No total fomos 22 pessoas feridas. Os dois mais gravemente feridos foram resgatados por populares e levados aos hospitais.

Just: E a Polícia?

IK: A Polícia Militar foi à área retomada antes do ataque e permaneceu nas proximidades. Depois a gente soube pelos meios de comunicação que eles não tinham como impedir o ataque pois estavam em apenas uma viatura diante de uma multidão enfurecida.

Just: Como foi a atuação dos governos do Estado e Federal?

IK: Na hora, não houve apoio do governo do Estado, pois a Polícia não interviu ou prestou socorro. Já o governo federal, que tem um Ministro da Justiça ruralista [Osmar Serraglio fez mais de 500 encontros com ruralistas e nenhum com indígenas], soltou nota dizendo que estava enviando uma força tarefa da Polícia Federal para averiguar o conflito com “supostos índios”. Depois, voltou atrás.

Lutamos para que o governo federal cumpra a determinação constitucional e demarque o nosso território, efetive políticas públicas, entre elas a saúde e educação. A escola do fundamental (6º ao 9º ano) fica em um povoado que está sob o controle dos fazendeiros. Sobretudo depois do dia 30 de abril, as crianças estão com muito medo de irem pra lá por estarem traumatizados com tanta violência e discriminação. De igual modo é urgente o atendimento de saúde pelo Distrito Especial de Saúde Indígena – Dsei/MA, uma vez que o atendimento ambulatorial é feito fora do território e nós não nos sentimos seguros para buscar o atendimento. Até o momento nem a Secretaria Estadual de Educação e nem o Dsei/Ma se fizeram presente no território prestar o serviço.

Just: Conte-nos mais sobre essas ameaças dirigidas ao povo indígena da região.

IK: Apesar do discurso de que o ataque dos fazendeiros e políticos foi provocado pelos indígenas, isso não é verdade. Tem sido recorrente as ameaças às lideranças.

Desde 2014, tem circulado informações de que fazendeiros estariam pagando pistoleiros para matar lideranças do povo. Em 2015, as ameaças foram se intensificando e alguns nomes de indígenas foram recorrentemente citados nessas informações. No final desse ano, o fazendeiro da região conhecido como Castelo disse diante de representantes de órgãos públicos e entidades da sociedade civil que poderia “resolver o problema de modo mais rápido”, pois teria homens armados a sua disposição “para realizar o serviço”. Em 2016, o mesmo fazendeiro relatou uma reunião com outros que teria ocorrido na cidade de Viana para por fim no que eles chamam de “invasão de terra”. A solução apresentada seria matar os “cabeças”.

Além dessas ameaças, desde 2015, em várias ocasiões foram feitos disparos de arma de fogo contra os indígenas, como por exemplo, no dia 02/12/15 quando por volta das 22 horas, foram feitos disparos de pistola 380, de um veículo que saía da área invadida pela juíza Maria Eunice do Nascimento Serra. No dia seguinte nós recolhemos cápsulas deflagradas e as entregamos ao delegado de Polícia Civil de Viana.

Just: Por que você acha que essas pessoas querem matá-los?

IK: Há um ódio contra os povos indígenas por assumir a sua identidade. No fundo, é um atentado contra o Direito à Existência de um Povo.

Aldeli de Jesus Ribeiro, indígena Gamela que teve as mãos quase arrancadas a golpes de facão. Foto: CIMI

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