Brasil: onde a democracia falha, a corrupção vence

Ao procurarmos as causas da nossa crise de representatividade e da corrupção, percebemos que elas se encontram no nosso modo extremamente classista de fazer política

Este texto foi escrito após uma triste constatação: falhamos. Depois de 29 anos da promulgação daquela que seria chamada de constituição cidadã, nossa democracia se esfacela. Não temos instituições, mas feudos políticos em busca de prestígio e poder. Nosso presidente não foi eleito pelo voto popular e, no momento em que escrevo essas linhas, é mantido no cargo pelo poder militar. A imprensa fica horrorizada com a possibilidade de eleições diretas. O povo os assusta. O congresso já pensa no sucessor presidencial que, obviamente, será escolhido por eles para defender seus interesses. O judiciário usa suas prerrogativas para atacar adversários políticos e rasga de forma sucessiva a constituição. Vivemos um Estado de exceção que, ao contrário do que pensava Carl Schmitt, não é um mecanismo de defesa da democracia, mas sinal inequívoco da falência do Direito como mediador dos conflitos.

Como chegamos nesse ponto é difícil dizer. Os ânimos estão aflorados e, por isso, o debate público permanece interdito. Trocamos a reflexão pela indignação. Portanto, caso tentássemos explicar os motivos do nosso fracasso, o máximo que iríamos conseguir seriam alguns xingamentos. Todos conhecem os erros, o problema é que cada um aponta para uma direção e ninguém se entende. Por tal razão, não pretendemos entrar nessa discussão de surdo e mudo.

Olhando para a história parece claro que crises políticas periódicas são comuns. Modelos que funcionam numa época, se esgotam, e suas contradições ficam aparentes justamente nos momentos de decadência. Parece que estamos num desses períodos de virada. Para onde vamos é algo difícil de prever. Nosso sistema político se esgotou e não será capaz de se recuperar sozinho.

É preciso pensar em novas possibilidades, buscar alternativas. Mas como? Em 1988 escrevemos nossa melhor constituição e quase três décadas depois descobrimos que mudamos muito pouco. Essa percepção é desanimadora. Mas a crítica é um exercício constante. É preciso continuar.

Partindo dessa dura constatação, esse texto pretende resgatar as origens do conceito de democracia e refletir sobre o seu funcionamento. Falhamos. O que temos são os escombros de um projeto de nação. Não podemos reconstruir nosso edifício democrático sem novos pilares que o sustentem. Recomecemos então do zero.

Democratização inacabada

Em 1974, o General Ernesto Geisel assumiu o poder com a promessa de promover uma abertura política “lenta, segura e gradual”. O que significava isso na prática? Basicamente que a transição do regime de exceção para o Estado constitucional seria tutelada e controlada pelos militares.

O general presidente fazia parte de uma ala mais moderada e era pressionado à direita, pela linha dura que desejavam prolongar o período militar; e à esquerda, fortalecida pelo crescente interesse da sociedade civil na política e na volta da normalidade institucional.

Já em seu primeiro ano de governo houve uma diminuição das restrições às propagandas eleitorais. Mas o passo mais importante foi dado em 1978 com a revogação do AI5. No ano seguinte foi aprovada a Lei de Anistia. Todos os crimes políticos seriam perdoados, inclusive os de tortura. Com o tempo, essa lei se tornou um grande obstáculo na investigação dos abusos cometidos pelos militares. Mais do que reconciliar as partes, tal legislação ajudou a apagar a memória do período e até hoje permanece um obstáculo ao aprofundamento da democracia brasileira.

Diante desses conflitos, a ala liberal dos militares assumiu o controle da abertura política. Essa característica sui generis impossibilitou alguns avanços. A oposição, que estava preocupada em tirar o poder dos militares, acreditava que a democracia com o tempo iria se livrar das heranças da ditadura. Não aconteceu. A democratização não chegou a muitas áreas. Podemos dizer, mais de quatro décadas depois da posse de Geisel, que nossa abertura foi lenta, gradual e incompleta.

A República Nova foi um misto de democracia, autoritarismo e oligarquia. Tais contradições foram administradas por um tempo razoável, mas elas impediram avanços em várias áreas. Pior, as tensões permaneceram latentes e nesse exato momento estão cobrando o preço. Entender esses limites é fundamental para reconstruirmos nosso sistema político.

Limites Democráticos Do Poder Judiciário

Para a imensa maioria dos analistas, que interpretam a deposição da presidenta Dilma Rousseff como um golpe, e possuem uma visão crítica a respeito da condução da Lava-Jato, o poder judiciário é visto como o maior responsável pelo caos político atual. Até 2010, contudo, não era assim. As preocupações eram centradas no Exército que, diga-se, está tendo uma atuação exemplar até o momento. Quais são as falhas jurídicas que permitiram a ruptura da ordem constitucional? Abaixo, serão apresentadas algumas, sem, claro, a pretensão de esgotá-las.

Em qualquer ordem democrática, a base do direito administrativo deve ser o direito constitucional. Não foi o que aconteceu no nosso caso. Como disse o jurista Gilberto Bercovic: “o direito constitucional passa, o direito administrativo fica”. A organização da administração pública brasileira permaneceu quase que inalterada.

O sistema tributário nacional data da Emenda Constitucional nº 18, de 1965. Tal modelo é extremamente regressivo ao tributar o consumo em detrimento da renda. Facilitando a concentração de renda nas mãos das classes privilegiadas.

A estrutura administrativa do Estado brasileiro foi conformada em 1967 (decreto-lei n:200/1967). Tal modelo, pensado por Roberto Campos e Otávio Bulhões, foi inspirado na ortodoxia liberal e entendia que as empresas estatais deveriam ter um funcionamento idêntico ao do setor privado. O decreto estabelecia que as empresas deveriam ter autonomia administrativa. Elas não estavam subordinadas aos ministérios, que só poderiam efetuar o controle dos resultados. Esta concepção havia sido defendida, inclusive, pelo Marechal Castelo Branco, que afirmou em sua Mensagem ao Congresso Nacional, de 1965, que desejava, com a reforma administrativa, “obter que o setor público possa operar com a eficiência da iniciativa privada” (BERCOVIC).

Assim, como lembra o jurista Gilberto Bercovic, as estatais passaram a ter autonomia do governo e a depender do mercado para se autofinanciarem. Houve uma “privatização” da administração pública. Sem controle interno, o decreto favoreceu os órgãos de administração indireta, esvaziando o poder político e o controle democrático.

Com o tempo as empresas estatais viraram “feudos políticos” de certas lideranças que as usavam para angariar prestígio e comprar apoio político. O caso mais famoso foi o do Eduardo Cunha em Furnas. Essa legislação que pouco foi alterada está na raiz de boa parte dos atuais casos de corrupção.

Mas o direito administrativo não é o único problema do Poder Judiciário. Se considerarmos a oposição clássica entre democracia e oligarquia, podemos afirmar que este poder nunca conheceu nada que se assemelha à vontade popular. A Constituição de 1988 trouxe avanços legais, mas o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, permaneceu intocado. Os juízes que interpretavam a Carta Magna eram os mesmos do período militar, muitos com uma visão elitista e autoritária do Direito. O resultado foi que, muitos dos avanços democrático da constituição foram relativizados e nunca foram de fato implementados. Provocando uma “desidratação democrática” do direito brasileiro.

Uma recente matéria do jornal El País mostrou os laços de parentescos existentes entre os membros do judiciário, do Ministério Publico e de alguns juristas importantes. Segundo Rodolfo Borges, o jornalista responsável pela matéria: “Se os laços familiares dos dois magistrados parecem comprometê-los, talvez todo o sistema jurídico nacional teria de ser visto com lupa. Na verdade, todas as famílias de juristas brasileiros se parecem e, por vezes, se entrelaçam. Mas cada uma delas enfrenta uma suspeita diferente de conflito de interesse”. Os cargos públicos são passados como herança aos seus descendentes.

O caso da filha do ministro Luiz Fux, Marianna Fux, ficou famoso e suscitou várias discussões. Marianna, com 35 anos e com um currículo modesto, desbancou nomes muito mais experientes e foi nomeada desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. A OAB/RJ recebeu denuncias de que o ministro Fux estaria pressionando os conselheiros para que sua filha tivesse o “sonho realizado”. O sonho de Marianna, que acabou realizado, é o pesadelo da política de compadrio e troca de favores que nos remete às práticas seculares e que teimam em não desaparecer.

Limites Democráticos do Poder Executivo

Os limites democráticos do poder executivo estão relacionados ao presidencialismo de coalizão. Tal prática parte do pressuposto de que o presidente precisa formar maioria no congresso para governar. O problema é que não há coerência ideológica entre os votos desses dois poderes. Não raro um executivo progressista é obrigado a dialogar com um legislativo conservador. O resultado é que pautas reformistas são paralisadas e o presidente precisa se equilibrar ante tais contradições. O filósofo Marcos Nobre chamou esse processo de peemedebismo ou “imobilismo em movimento”.

Essa prática começou a ganhar corpo já nas primeiras eleições após o fim da Ditadura. O presidente Fernando Collor, eleito pelo PRN, partido sem nenhuma representatividade, tinha apenas 5% dos deputados em sua base de apoio. Não havia, portanto, sustentação política. A personalidade do presidente também não ajudava na coordenação política. O resultado, todos sabem qual foi, o ex-governador de Alagoas não terminou seu mandato.

Após esse episódio, ficou evidente que o legislativo era fundamental para que o executivo tivesse governabilidade, palavra que ficou famosa. Fernando Henrique Cardoso governou com ampla maioria. No primeiro governo Lula, houve uma tentativa de romper com esse modelo, mas, com a crise do “mensalão”, o petista também se aproximou do PMDB.

A importância do PMDB nesse sistema precisa ser melhor explicada. O partido ocupa uma posição estratégica na política nacional. Enquanto as eleições estavam cada vez mais polarizadas entre PSDB/DEM X PT/PC do B, o partido de Eduardo Cunha e companhia se colocava como o “fiel da balança”. Aquele capaz de garantir a governabilidade. Obviamente que esses acordos tinham um preço, que deveria ser pago com cargos públicos. Mas o que era desejado não era ajudar na conformação de um governo plural, mas parte do poder. Esse poder era usado em benefício próprio. O legislativo não participava de um projeto político nacional. Mas era um freio às reformas estruturais enquanto montava “feudos” nas empresas estatais que eram usadas para fortalecer certas lideranças.

No segundo governo Dilma, o presidencialismo de coalizão entrou em crise. Desde 2013, a política fora ficando mais polarizada ideologicamente. Ideologia não combina com troca de favores. A falta de habilidade política da presidenta também permitiu que o deputado Eduardo Cunha, com dinheiro desviado e de propina, formasse sua própria base. O deputado tinha um projeto político alternativo ao do PT, e não ficaria satisfeito apenas com cargos, mas usaria seu prestígio para chantagear o poder executivo. O que antes era um acordo tácito virou guerra explícita. Ou, nas palavras de um ex-ministro, achaque. Foi esse embate que permitiu a aprovação do impeachment na câmara.

O presidencialismo de coalizão, portanto, tal qual estruturado desde as eleições de Fernando Collor, tornou-se um enorme empecilho para a aprovação de formas estruturais. O presidente conseguiu aprovar a maioria dos projetos enviados ao congresso, mas tais propostas deveriam ser tímidas para não desarticular a base de apoio. Sem falar que esse sistema favoreceu, e muito, a corrupção e fortaleceu práticas seculares de mandonismo.

Limites Democráticos do Poder Legislativo

Muitos cientistas políticos dizem que o poder legislativo é o coração da democracia, por ser supostamente o espaço mais plural. Temos 513 deputados e 81 senadores. Ao contrário do poder executivo, em que a votação é majoritária, portanto apenas uma parcela da sociedade se vê representada, o legislativo é o espaço das diferenças. Do diálogo. Do consenso. É onde a política se realiza em sua plenitude. Tudo isso na teoria.

Na política brasileira, este poder tem sido a trincheira das oligarquias e a principal arma desses grupos na manutenção dos seus privilégios. Seja qual for a definição que você dê ao povo brasileiro, ele não se encontra representado no parlamento.

As diferenças entre a composição da câmara e o senado e a sociedade é gritante e reflete a distribuição do poder econômico e simbólico da sociedade. As diferenças econômicas explicam o tamanho das bancadas empresarial e ruralista. E as hierarquias culturais, a pouca representatividade de negros, mulheres e o crescimento da bancada evangélica. Mas os problemas não terminam aí.

Segundo matéria do El País, apenas 36 deputados foram, de fato, eleitos pelo voto popular. Apenas 7% dos deputados superaram o coeficiente eleitoral e podem afirmar que chegaram onde estão por vias democráticas. Os outros foram eleitos pelos votos na legendas e, principalmente, pela alta votação dos chamados “puxadores de votos”, que são candidatos que conseguem um grande número de eleitores e, com eles, abarcam mais vagas para o partido, que são preenchidas por outros membros da coligação. Esse sistema permite que um deputado seja eleito sem ter sequer um voto. E isso já aconteceu. Em 2002 o deputado Tocera chegou à câmara sem sequer precisar votar em si mesmo. Seu companheiro de partido, Enéias Carneiro, havia tido uma votação recorde e garantiu a vaga do desconhecido parlamentar. Em 2014, os votos recebidos pelo humorista Tiririca elegeram mais cinco deputados. Será que algum eleitor do “abestado” sabe quem são essas pessoas? Duvido.

Essa distorção eleitoral levou as legendas a buscarem incessantemente figuras públicas para serem os “puxadores de votos” do partido. Atores, dançarinos, comediantes, participantes de reality shows e atletas, que, com raríssimas exceções, não tinham nenhum vinculação com causas políticas, passaram a quase que monopolizar os programas eleitorais. Tal fenômeno tem um peso considerável no atual descrédito das duas casas legislativas.

Outra questão, que talvez seja ainda mais séria, é a influência do dinheiro. Não há tetos de gastos nas campanhas. Empresários doam livremente. O caixa dois é uma prática comum. A pobreza do debate público e a espetaculização da política colocaram o marketing como o principal fator nas campanhas eleitorais. O problema é que, para isso, é preciso dinheiro. Sem bases partidárias solidas que permitissem as doações dos eleitores, os políticos, em sua imensa maioria, financiam seus gastos com doações feitas por empresas, que obviamente não repassam tais verbas por motivos ideológicos. Esse fenômeno já era conhecido há muito tempo, porém, recentemente com as delações premiadas, ele voltou a estar no centro do debate público deixando muitos assustados em função de certas revelações. Por já que fosse esperado, escutar um empresário dizendo que comprava deputado da mesma forma que comprava boi, ou um ex candidato a presidência afirmar numa escuta telefônica, com naturalidade, que dinheiro não caí do céu, não deixa de ser espantoso.

A compra de deputados tem efeitos catastróficos na democracia. A pauta do parlamento passar a ser controlada pela “mão invisível” da propina e deixa de ter aderência social. A população, que não pode comprar nem boi e nem deputado, não se vê representada e perde o interesse pela política. Os valores democráticos passam a ser questionados, a política criminalizada, e os fantasmas do autoritarismo voltam a assombrar nossa jovem, porém desgastada república.

Limites Democráticos dos Direitos Políticos

Os direitos políticos e civis conquistaram importantes avanços formais com a Constituição. Mas eles não deixam de ter problemas. A ânsia de romper em definitivo com as estruturas do período militar suscitou outros problemas.

A legislação eleitoral, em oposição ao bipartidarismo do modelo anterior, passou a ser extremamente flexível. Ter um partido político passou a ser um grande negócio. Só para dar um exemplo, o PRTB, partido do performático Levi Fidelix, participou de doze das quinze eleições disputadas de 1986 até 2014. Até 2012, somando todos os votos do partido, foram contados cerca de 120.000 eleitores. Ou seja, somando os votos de 10 eleições – incluindo deputado (estadual e federal), prefeito e governador – o PRTB conseguiu um coeficiente eleitoral que não elegeria um deputado em SP ou no RJ. Somente nos últimos seis anos, porém, a legenda de Fidelix recebeu cerca de 10,5 milhões entre repasses do fundo partidário e doações de eleitores. Um caso a ser investigado é como um partido que não possui eleitores recebe doações de eleitores. As derrotas eleitorais são motivos de comemoração, Fidelix viu seu patrimônio crescer em seis vezes (602%) nos últimos anos.

A excelente matéria de Marcelo Duarte, de onde tiramos os números apresentados aqui, também faz referência à candidatura de Hernani Fortuna, candidato menos votado nas eleições presidenciais de 1994 pelo PSC. Na ocasião ele afirmou: “O PSC precisava de um candidato para o partido não morrer, então me chamaram”. O PSC é o feudo político de outro eterno candidato, José Maria Eymael. O “democrata cristão” registrou um aumento de 520% no seu patrimônio nos últimos oito anos.

Como vimos, o resultado da atual legislação eleitoral foi um número crescente de legendas, sem base social ou ideológica, que usam o espaço concedido para negociar apoio em troca de cargos. A fragmentação eleitoral está na base do presidencialismo de coalizão que, por sua vez, é um dos pilares da corrupção. Políticos profissionais como Eymael e Fidelix, além de atrapalharem o debate público com tiradas histriônicas e preconceituosas, colaboraram ao longo dos anos para o atual descrédito institucional. Assim, para combater a crise de representação é fundamental repensarmos os partidos políticos, suas bases sociais e sua forma de financiamento, para que eles cumpram sua função democrática e deixem de ser um lucrativo balcão de negócios.

Outra distorção, que teve início com os militares, mas permanece inalterada, é a representação regional parlamentar. Ao estabelecer um piso de um teto para o número de deputados eleitos por cada estado, a Constituição vai de encontro ao princípio de isonomia. Segundo o historiador José Murilo de Carvalho, em 1994, o voto de um eleitor de Roraima valia 16 vezes o do eleitor paulista. Essa distorção foi pensada pelos militares para favorecer o partido governista, Arena, que tinha sua base eleitoral no interior. O historiador diz, o que é discutível, que esse modelo favorece o conservadorismo. Fazendo algumas ressalvas – afinal Eduardo Cunha, Jair Bolsonaro, Marcos Feliciano, Tiririca e companhia foram eleitos nas grandes capitais – é possível afirma que o poder da bancada ruralista, que controla 40% da câmara – vem daí. No senado, tal desproporção é ainda maior. O argumento é que, nesse caso, como no modelo Norte Americano, os senadores representariam os estados não os cidadãos. Na prática não é bem assim. Os políticos seguem a tendência partidária e, não raro, é possível ver senadores do mesmo estado assumindo posições antagônicas por motivações ideológicas.

As coligações partidárias também dificultam o exercício democrático. O exemplo das eleições de 2014, mostrado pelo cientista político Jairo Nicolau é bastante ilustrativo. Em Pernambuco havia 4 coligações, todos elas formados sem o mínimo de coerência ideológica. Assim, digamos, um militante do [PT?] ajudou a eleger o deputado Jorge Real (PTB), que depois anos depois diria sim ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Outra aberração foi a coligação “Frente Popular de Pernambuco”, que elegeu nomes como Mendonça Filho (DEM) e Luciana Santos (PC do B). O deputado estaria na linha de frente na queda do PT, assumindo o Ministério da Educação no governo Temer, enquanto a deputada comunista seria uma ardorosa defensora do governo petista.

Limites Democráticos dos Direitos Civis

Direitos políticos e civis possuem íntima relação. Um indivíduo que não goza de certas liberdades não pode participar ativamente da política nacional. Segundo José Murilo de Carvalho, os direitos civis seriam os mais retardatários na construção da nossa cidadania. A Constituição garantiu vários direitos formais que antes eram negados, como a liberdade de expressão. A liberdade de ir e vir. O racismo e a tortura foram definidos como crimes inafiançáveis. Entre vários outros avanços.

O problema é que, na prática, a maioria dessas garantias não são respeitadas. Segundo José Murilo de Carvalho, em 1997, numa pesquisa feita na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, 57% das pessoas entrevistadas não sabiam mencionar sequer um direito civil. “Os resultados mostram que só 20% das pessoas que sofrem alguma violação de seus direitos – furto, roubo, agressões etc. – recorrem à polícia para dar queixa. Os outros 80% não o fazem por temor da política ou por não acreditarem nos resultados” (José Murilo de Carvalho). Não seria um absurdo afirmar que no interior o desconhecimento é ainda maior.

A desinformação não é sintoma apenas da ignorância ou da falta de estudo. Os números podem enganar porque a medida que a escolaridade aumenta a porcentagem de pessoas que conhecem seus direitos é maior. Todo cidadão, por exemplo, independente da renda sabe que roubar é legalmente proibido. Porém, eles também sabem que o estado não é capaz de garantir esse direito. Na prática, na divisão de José Murilo, os brasileiros podem ser divididos em três categorias, no que concerne às liberdades civis:

1) Primeira classe, que são aqueles que estariam acima da lei ou “que sempre conseguem defender seus interesses pelo poder do dinheiro e pelo prestígio social”;

2) São os cidadãos simples, que poderíamos chamar de classe média. E essa parcela da população que a lei incide, com seus benefícios e rigores;

3) Por fim, estão aqueles que o historiador chama de “elementos”, usando o jargão policial. Esses, em sua maioria pretos e pobres, seus direitos civis são uma abstração distante. “Esses elementos são parte da comunidade política nacional apenas nominalmente”. Eles não conhecem as liberdades constitucionais porque estas não fazem parte do seu cotidiano. Para essa parcela da população, o código aplicado é o penal, não o civil.

A polícia é outra barreira. Durante os governos militares, as polícias foram postas sob o comando dos oficiais das Forças Armadas, completando um longo processo de militarização dessas instituições. Os policiais eram treinados de acordo com a Doutrina de Segurança Nacional, ou seja, eram preparados para combater e destruir um inimigo. Esse modelo não foi alterado. O policial brasileiro não é preparado para ser um garantidor de direitos, o que seria esperado num país democrático, mas para anular ou matar inimigos.

O símbolo da Tropa de Elite da PM/RJ, por exemplo, não é a Marriene, mas uma caveira. A música que os policiais mais se orgulham de cantar traz versos como: “Homem de Preto, qual é sua missão? Entrar na favela e deixar corpo no chão! Homens de Preto, que é que você faz? Eu faço coisas que assustam o Satanás”. A letra não poderia ser mais direta quanto aos seus objetivos e aos seus alvos. Portanto, não precisamos interpretá-la. Só lembrar os seus autores não eram membros das SS, mas são servidores públicos que trabalham num estado que, em tese, seria regido por uma constituição apelidada de cidadã.

Limites Democráticos Dos Direitos Sociais

Os direitos sociais são os mais problemáticos e enigmáticos do Brasil. Eles também revelam o que há de mais profundo e tenebroso na nossa cultura política. Somos um país formado na escravidão. Essa forma de trabalho compulsório é caracterizada pela total ausência de direitos. Portanto, nossa cultura política é marcada pela tensão entre, de um lado, grupos marginalizados que lutam pelo direito à cidadania e, de outro, forças conservadoras que dificultam essa ascensão. O assunto é mais completo do que parece num primeiro momento.

Como podemos observar, há padrão curioso que se repete. As três crises políticas que colocaram fim a governos democraticamente eleitos, com a exceção do impeachment de Fernando Collor, aconteceram em momentos de alta do poder de compra do salário mínimo. Tais dados seriam mera coincidência? Pode ser. Mas eu estou convencido que não.

As semelhanças entre o golpe de 1964 e o impeachment de 2016 são muitas e não se reduzem apenas ao salário mínimo. Em ambos os casos houve intensa participação da classe-média. Com pesos diferentes, nos dois momentos também houve um surto moralista e um medo de um suposto golpe comunista. Explicar a relação entre a participação política de setores da classe média, o valor do salário mínimo e o combate a corrupção é fundamental para desvendar esse enigma dos direitos sociais.

O cientista político Jessé de Souza tem realizado instigantes pesquisas a respeito do comportamento e da estrutura da sociedade brasileira. Segundo o professor, o Brasil seria dividido em quatro grupos:

1) A elite do dinheiro;
2) A classe média;
3) Os batalhadores;
4) A ralé.

Essa classificação difere, daquela proposta por José Murilo de Carvalho, em um aspecto, Jessé considera a precedência dos fatores culturais sobre os econômicos na classificação desses grupos. Para ele, as classes têm relação com referências simbólicas que os indivíduos trazem a partir do meio em que vivem e não o valor do seu salário. Explico. Um professor universitário tem uma renda próxima a de muitos funcionários especializados que, muitas vezes, sequer possuem curso superior. Porém, o padrão de comportamento, de consumo e as referências culturais de ambas as categorias são muito distintas. Se essa ideia ainda não está clara, pense no caso mais famoso, o do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva. Lula já deixou há muito tempo de ser considerado uma pessoa pobre. Suas palestras estão entre as mais bem pagas do mundo. Porém, os membros da classe média não o veem como um igual. Suas qualidades são relativizadas. Sua maneira de falar é motivo de chacota. Sua baixa formação escolar é lembrada a todo momento. Seu comportamento é ridicularizado. Tais práticas funcionam como uma barreira simbólica que marcam a distância entre grupos sociais distintos. Quanto menor for a diferença entre as rendas, maior será está busca de elementos imateriais que separem as pessoas.

Os direitos sociais desarticulam tais hierarquias. Eles trazem as camadas mais baixas para o consumo e, ao realizarem tal movimento, rompem determinadas barreiras culturais e reacendem preconceitos que antes permaneciam latentes. “Apesar do ciclo virtuoso ter dinamizado a economia como um todo, muitos, especialmente na classe média tradicional, não gostaram de ter de compartilhar espaços sociais antes restritos com os novos bárbaros das classes populares ascendentes” (Jessé de Souza).

Não faz muito tempo, ouvíamos com certa frequência queixas que os aeroportos haviam virado rodoviárias ou que a culpa dos acidentes nas estradas eram porque “qualquer idiota passou a ter um automóvel”. Tais frases são reveladoras. Rodoviária e aeroporto, ônibus e avião, possuem basicamente a função de transportar pessoas. Mas são destinados a grupos diferentes. No momento em que pessoas de classes diferentes viram-se na mesma fila para comprar uma passagem aérea, as tensões e os preconceitos reascenderam. Algo estava errado. O espaço destinado a um grupo estava sendo invadido por outro.

Segundo o mesmo Jessé Souza, foi nesse contexto que a “linha do moralismo” foi estabelecida para demarcar essas diferenças de classes, “como forma alternativa de produzir solidariedade interna entre os privilegiados e construir formas aparentemente legítimas de exercer preconceito e racismo”. O historiador Rodrigo Patto tece explicações semelhantes: “os efeitos simbólicos e políticos das mudanças sociais são desproporcionais, já que a perda de alguns privilégios e de status são percebidos como agressão por pessoas das classes superiores (pobres viajando de avião, empregadas com direitos sociais etc)”.

Parcela da classe média via a si mesma como educada, politizada e, sobretudo, virtuosa. Não precisava de Bolsa Família. Não vendia seu voto em troca de esmola. Sabia que as cotas eram uma forma de racismo inverso. Não aceitavam a corrupção que havia sido profissionalizada nos governos petistas, pois o partido bolivariano tinha um projeto de poder. Enfim, esse grupo era superior por ter plena consciência de que as políticas sociais eram mero populismo. E quem não repetia tais clichês estava recebendo pão com mortadela.

Foi, com efeito, essa linha moralista e essa missão salvacionista que levou uma parcela significativa da classe média às ruas, tanto em 64 quanto em 2016, formando as bases sociais que permitiram a deposição de Goulart e da Dilma. É interessante notar também que, nos dois momentos, tais golpes foram seguidos do achatamento da renda dos mais pobres e de um retorno das antigas hierarquias. Aeroporto voltou a ser aeroporto e os acidentes no trânsito voltaram a ser mera imprudência do motorista.

Esse é, com efeito, o grande desafio para a construção do Estado de bem estar social no Brasil. A distribuição de renda “politiza” setores da sociedade e aguça o moralismo. As panelas recebem novos usos. Enfim, em dois momentos da nossa história, o crescimento da renda e dos direitos sociais foi impedido por este “gatilho social” que é disparado com o aumento do salário-mínimo. Ainda não conseguimos superar esta barreira que permanecerá como um desafio para as próximas gerações na difícil tarefa de construir uma nação plural.

Conclusão

Desde o pensamento grego, oligarquia e democracia são vistos como conceitos antagônicos. A democracia seria o governo de todos os cidadãos enquanto a oligarquia de poucos. Essa definição parte de uma visão geral dos tipos de governo.

Aristóteles, porém, não conhecia a história brasileira. Nossa República nasceu oligárquica. Nossa democracia permaneceu, por muito tempo, formal. Seria mais produtivo definir oligarquia e democracia não como sistemas antagônicos, mas como práticas que podem perfeitamente conviver numa mesma realidade. Ou melhor, podemos entender as práticas democráticas como armas que visam transformar um país historicamente oligárquico num lugar mais plural.

Nossa constituição é democrática. Mas não é respeitada. Nosso direito é democrático. Mas nosso judiciário não. Enfim, é preciso reconhecer, para além dos discursos, as falhas em nosso sistema político para combatê-las. A ideia de república nasce com o princípio de isonomia e a de democracia com o de cidadania. Ambos, porém, chocam-se com relações de poder e divisões hierárquicas que teimam em não desaparecer. Portanto, mais do que uma conquista, democracia e república são valores que devem guiar permanentemente as ações políticas. E que precisam ser avaliados, pensados e repensados. O trabalho é árduo e nunca será concluído. Mas é necessário, pelo menos para aqueles que sonham com um país mais justo e plural.

Referências:

Cidadania do Brasil: o longo caminho – José Murilo de Excluir Carvalho

Representantes de Quem? os descaminhos do seu voto da urna à Câmara dos Deputados

O Brasil à beira do abismo, de novo. Rodrigo Patto

O direito constitucional passa, o direito administrativo permanece – Gilberto Bercovic

A Radiografia do Golpe – Jessé de Souza

• El País – Dos 513 deputados na Câmara do Brasil, só 36 foram eleitos com votos próprios. Por quê?

• Guia dos Curiosos – Quanto um partido como o PRTB, de Levy Fidelix, fatura num ano eleitoral?

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

4 × 5 =